Por DIOGO ALMEIDA CAMARGOS*
A anistia de 1979, vendida como reconciliação, chocou o ovo da serpente da impunidade. Meio século depois, colhemos os frutos amargos de uma democracia que nunca ousou enfrentar seus algozes
1.
Afirmam que a anistia foi um gesto de grandeza nacional. Um gesto de pacificação para a redemocratização brasileira. Dizem que foi a ponte que nos trouxe dos porões da ditadura para a luz da democracia brasileira. Pois é. Dizem, e dizer é fácil. Mas será que temos a certeza deste fato?
A anistia de 1979 permitiu o direito de retorno de exilados políticos, é verdade. Trouxe artistas, intelectuais que haviam sido expurgados pelo regime. Todavia, jamais podemos esquecer que concomitantemente, blindou torturadores. Permitiu a volta de indivíduos perseguidos? Sim. Mas também não omitiremos que absolveu algozes. Anunciada e vendida como redenção, serviu como salvo conduto às violências praticadas pelo Estado, além de transformar verdugos em figuras de cultos e ídolos para a caserna e consolidando uma pedagogia da impunidade.
Quase meio século depois, com uma nova roupagem, a discussão da anistia ressurge na sociedade brasileira. Anistiar o 08 de janeiro de 2023 não é perdão, mas consentimento. É conivência. É criar um salvo conduto para a barbárie, o reacionarismo e o golpismo. Aliás, nos perguntemos: Anistiar o que? Ataques à democracia é ato político legítimo? Depredação de patrimônio público e ameaças a indivíduos são atos de liberdade de expressão? Creio que não. E tenho a qualquer pessoa com o mínimo de honestidade intelectual há de concordar comigo.
Ora, mas de onde vem a ousadia de propor uma anistia para golpistas? Ahhh, a resposta é cristalina como a água: vem de 1979. Vem do pacto que demonstrou a este país que a violência, o golpismo e os ataques à democracia são passíveis de perdão. A anistia de 1979 foi o ovo da serpente que começou a se insurgir a partir de 2019, tendo seu ápice em 2023. Mas também não se pode destacar a linha que argumenta que se insurge a partir de 2016.
Enquanto vizinhos latino-americanos, enfrentaram seus fantasmas, com julgamentos, memória e justiça. Em solo brasileiro optou por adotar uma “conciliação” e a “pacificação nacional”. E qual o resultado? Torturadores morreram em paz, outros livres de suas barbáries se tornaram heróis do reacionarismo brasileiro. Desta maneira, criamos uma tradição: perdoar o passado como consentimento para a repetição dos mesmos erros no futuro.
O Chile julgou Augusto Pinochet, a Argentina julgou e condenou militares pelos seus crimes cometidos; o Uruguai reconheceu a carência de memória e reparação. Em solo brasileiro, contudo, preferiu o silêncio. Silêncio o qual perdura até os dias atuais, permitindo que grupos antidemocráticos, herdeiros do autoritarismo, sintam-se no direito de desafiar as instituições, pedir novamente golpe militar e cultuar a ditadura de 1964.
2.
São por esses motivos que deve ser repudiado o projeto de anistia que tem circulado nos meios de comunicação e defendido por apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. O texto prevê uma anistia ampla, geral e irrestrita de crimes cometidos contra a democracia brasileira, sendo uma verdadeira aberração e um atentado à memória e à ordem democrática.
Trata-se de um documento cuja sua autoria é atribuída à dois advogados, cujos nomes não são citados aqui: oferecer palco a este tipo de produção é alimentar o esgoto reacionário que insiste em abalar e corroer o Estado democrático brasileiro. Este projeto não é apenas um mero projeto de anistia, mas uma prova nítida de que a pedagogia da impunidade funcionou. Ao invés de repulsa, sente orgulho. Ao invés de justiça, esquecimento.
O discurso de quem propõe anistia segue um padrão. Fala-se sobre uma possível pacificação nacional e virar a página, usam até mesmo o discurso da estabilidade econômica. Entretanto, como anistiar aqueles que atacaram e continuam a atacar sistematicamente a democracia? Não há divisão nacional, não existe o famoso “nós contra eles”, mas sim o que existe é a certeza que aprovação de uma anistia é dar continuidade à trama golpista ainda em andamento.
Ademais, vale lembrarmos do discurso de Ulysses Guimarães, no 05 de Outubro de 1988, no Congresso Nacional, durante a promulgação da Constituição: “Traidor da Constituição é traidor da pátria. (…) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina”.
Pois bem, a declaração fez 37 anos e ainda é atual. A Constituição de 1988 nasceu sob o emblema da resistência, mas também sobre a sombra da impunidade herdada de 1979. A transição pactuada, na verdade, não atingiu seu objetivo em plenitude, pois nos entregou uma democracia ainda frágil estruturalmente: uma democracia tutelada, onde as forças armadas e os golpistas jamais foram derrotados de fato.
Se a anistia de 1979 foi o ovo da serpente, não há dúvidas: a de 2023 será sua eclosão. A serpente uma vez solta, não volta para o ovo. A história já nos demonstrou que onde não há memória, não há justiça, e onde não há justiça, não há plena democracia. O Brasil precisa escolher de uma vez por todas: ou rompemos com a pedagogia da impunidade do autoritarismo, ou continuaremos condenados a viver sob a sombra do autoritarismo e das forças militares, sempre travestidos de conciliação. Por fim, deixo um trecho de O Que Será (À Flor da Terra) de Chico Buarque e Milton Nascimento (1976) para reflexão
“O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos”
Talvez a resposta esteja de forma óbvia nesse “o que será”. O Brasil parece estar condenado a viver em um ciclo temporal, onde os seus fantasmas não foram exorcizados, como se houvesse sempre uma dívida com o passado autoritário. A Anistia de 1979 não foi apenas um mero pacto de silêncio, mas um fator determinante para a construção de uma cultura política que de maneira sempre volta a normalizar o autoritarismo.
Caso decidamos por não enfrentar essa tradição neste momento, o que será do futuro? Talvez esteja na hora de transformar a pergunta em ação: romper com a pedagogia da impunidade e afirmar, sem medo, sem receio, que a democracia não se negocia.
*Diogo Almeida Camargos é advogado, pós-graduado em ciências criminais e em direito penal econômico pelo Centro Universitário União das Américas.
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