Por VALERIO ARCARY*
Há momentos na História em que as massas exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível.
Não há dúvida de que, levado pela paixão revolucionária e pelo exagero na apreciação de indícios objetivos, Marx fez a proposição de uma necessidade histórica, que se desprendeu da fundamentação empírica e discursiva. Desta maneira, preparou o mais difícil impasse que a doutrina por ele fundada hoje enfrenta. As explicações a respeito da força do reformismo no seio da classe operária, embora esclarecedoras, não foram, segundo penso, ao fundo da questão. É incontestável a influência da ideologia burguesa e das concessões materiais prodigalizadas pela burguesia de países como a Inglaterra do século XIX, privilegiada pela obtenção de ganhos extraordinários. Porém, mais a fundo, vamos encontrar algo que os teóricos revolucionários do marxismo evitaram admitir e, no entanto, nas circunstâncias atuais, já é impossível negar. Isto é, que a classe operária é ontologicamente reformista. Toda a experiência histórico-mundial demonstra que, dia a dia, no transcurso cotidiano de sua existência, a classe operária não ultrapassa as fronteiras da ideologia do reformismo. Fora do cotidiano, trava, às vezes, lutas sangrentas, de alta intensidade no que se refere aos meios empregados, mas o faz por objetivos de reforma, não de revolução. Quanto mais desenvolvida e poderosa a classe operária, mais reformista é a sua conduta política, maior sua preferência pelos benefícios de possível obtenção dentro do regime capitalista e mais taxativa sua rejeição de iniciativas revolucionarias. Ou seja, a condição ontológica reformista da classe operária não se enfraquece, mas se fortalece com o seu desenvolvimento [1].
No plano teórico é muito duvidoso o método que pretende retirar conclusões definitivas sobre o protagonismo político do proletariado considerando que o intervalo dos últimos cem anos, a época do imperialismo moderno, teria sido suficiente para demonstrar a incapacidade terminal da classe trabalhadora de liderar um bloco social, suficientemente, forte para derrotar o Capital, em escala internacional. Cem anos seriam o bastante? Por quê? Afinal, cem anos são um intervalo, historicamente, breve, curto, insuficiente para uma conclusão tão categórica (e céptica).
Claro que o tema do intervalo histórico de cem anos merece alguma reflexão. Porque pode parecer razoável, se a escala de nossas vidas é muito menor, e é nela que fazemos as apostas de luta política. Mais ainda, se considerarmos que os últimos cem anos, pela sua intensidade qualitativa, valem por dois ou três séculos. As medidas da História não são lineares como as dos calendários e relógios, em que todas horas têm sessenta minutos.
Mas essa tese é precipitada, portanto, errada. Tanto metodológica, quanto historicamente. Do ponto de vista do método, a figura filosófica de um proletariado, ontologicamente, reformista, como concluiu Gorender, fecha uma análise que não pode ser, teoricamente, conclusiva, pelo menos, enquanto o sujeito social existir e lutar.
Se o capitalismo viesse a evoluir, hipoteticamente, no sentido de um novo modo de produção, seja ele qual fosse, e sejam quais fossem as novas relações sociais de produção, de tal forma que prescindisse do proletariado e, por isso, se extinguisse o trabalho assalariado, retrospectivamente, seria possível um balanço dessa natureza. Enquanto existir luta um sujeito social não pode renunciar à luta para se defender, nem se render. Tem que se mover na defesa de seus interesses. Nesse sentido, a última palavra ainda não foi dada, e o proletariado poderia voltar a agir, revolucionariamente, como já fez inúmeras vezes no passado.
Não importa examinar se o mais provável serão derrotas ou vitórias nas lutas futuras, mas considerar se é possível, senão provável, que elas venham a ocorrer. A luta é sempre uma aposta no futuro. As lutas decisivas, a abertura de situações revolucionárias podem tardar, mas são incontornáveis; a solução política, a conquista do poder, a vitória, seriam possíveis, mas incertas.
As vacilações e inseguranças do proletariado diante dos confrontos decisivos permanecem sendo o argumento final que sustenta o desalento e desesperança nas perspectivas de triunfo de uma estratégia revolucionária: a classe operária teria faltado ao encontro com a História. O argumento é forte, mas não é novo.
Essas posições não surpreendem em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias. O impressionismo é, no entanto, perigoso em política e fatal em teoria. As angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia, que atua, poderosamente, no sentido de manutenção da ordem. As forças de inércia histórica, se apóiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.
A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária prometia ser um processo muito difícil, e sem precedentes. Afinal, a luta pelo poder de uma classe explorada, economicamente, oprimida, socialmente, e dominada, politicamente, é o maior desafio histórico do nosso tempo.
São necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas uma aposta política de luta pelo poder.
O que se quer dizer, todavia, com uma aposta na política? Isso significava, para o marxismo clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes. A História está repleta de episódios de rendição política de forças, movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta.
As classes podem agir, por um período maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não fazem “harakiri” ou “seppuku”. As batalhas, os combates, cada luta, são nessa escala, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças se alteram, e podem ser mais desfavoráveis ou menos, as derrotas e as vitórias podem ser políticas ou históricas, com seqüelas mais duradouras ou mais superficiais.
Entretanto, não existe possibilidade histórica do suicídio político para uma classe social. Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já ocorreu variadas vezes na História. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará.
Se o fará com disposição revolucionária ou não é uma outra questão. Esse é o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas sobre o papel do proletariado. Uma aposta na política, para o marxismo, significa que o proletariado, mesmo com todas as limitações objetivas e subjetivas que o condicionam, mais cedo ou mais tarde, se verá diante da última alternativa, o caminho da revolução. Pode precisar de um longo período de aprendisagem sindical-parlamentar para esgotar e vencer as expectativas nas possibilidades de reformar o capitalismo.
Mas pode, também, dispensar ou abreviar as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e, mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua. Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classes trabalhadora, aprendam com a experiência dos sectores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.
Há momentos na História em que as massas exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis.
Mas esses momentos são mais freqüentes do que se pensa. E quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E se esse sentimento for compartilhado por milhões, então essa força social se transforma em uma força material terrível, maior que os exércitos, que as polícias, que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias.
Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro. Essa é a aposta marxista na capacidade da classe trabalhadora de inspirar todos os oprimidos na luta contra o capitalismo.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã)
Nota
[1] Jacob Gorender. Marxismo sem Utopia, São Paulo, Ática, 1999, p. 37-38.