A aventura da democracia

Imagem: Cole Redfearn
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Por LUIZ MARQUES*

A democracia nasceu como um furacão participativo na Grécia e na Revolução Francesa; hoje, sobrevive como uma brisa anêmica, ameaçada pela necropolítica e pelo despotismo moderno

1.

Cidadãos de Atenas nos séculos V e IV a.C. inventam a democracia e lhe dão a acepção que não coincide com a atualidade: ontem se cobrava participação; hoje obediência à representação. “A democracia representativa moderna muda a ideia de democracia a ponto de fazê-la irreconhecível, deixando de ser a ideia relacionada aos irremediáveis perdedores da história para se identificar com os contumazes vencedores”, diz o professor da Universidade de Cambridge, John Dunn, em A história da democracia: um ensaio sobre a libertação do povo.

Na antiguidade, participar da esfera pública não é um direito; é uma obrigação cívica. Considera-se quem privatiza a vida alguém inútil. O debate não bloqueia a ação; instrui a hora de agir. A inusitada comunidade política deixa de fora o sexo feminino, os escravos e os estrangeiros (metecos). O projeto retrata as limitações ideológicas da época. Calcula-se em cem mil o contingente de cidadãos livres, um terço com cidadania plena por ascendência de várias gerações; quarenta mil mulheres e crianças; e cento e cinquenta mil escravizados majoritariamente no campo.

A liberdade política serve de assoalho para a igualdade dos livres na polis, onde a existência social é repleta de satisfação. A democracia mantém os ricos sob controle para enaltecer o valor da isonomia. “As pessoas não querem um bom governo no qual sejam escravas; elas querem ser livres e governar”, sublinha Péricles no Discurso aos gregos mortos na guerra do Peloponeso.

O compartilhamento de valores, ideais e perspectivas em movimento (camponeses, artesãos) faz as disputas pelo interesse público serem vibrantes. Os parlamentos modernos, com a receita anódina de acordos, em nada lembram o entusiasmo dos que assumem a parrhesia (“pan” / tudo, rhema / o dito) para pregar com franqueza e responsabilidade a verdade.

O que derrota a empreitada de 175 anos não são os fatores endógenos, os ódios de classe, e sim o poder militar do reino da Macedônia. A condenação à morte de Sócrates por uma corte colegiada é a mancha na honra da democracia. Atribui-se ao acontecimento a ojeriza demonstrada por Platão ao participacionismo.

Na filosofia clássica, Aristóteles opta pelo governo correspondente à politeia: mistura constitucional equilibrada entre uma oligarquia (governo de poucos, com posses) e uma democracia (governo de muitos, em especial pobres). Governantes de classe média assegurariam a virtuosa gestão no interesse de todos cidadãos. A politeia tem sentido normativo. Em doses homeopáticas, alguns sábios rejeitam a democracia direta pura.

2.

Na Revolução Americana (1776), o termo democracia não aparece. A terminologia não é do agrado dos fundadores dos Estados Unidos: George Washington, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, John Adams, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. A designação evocativa é adotada em retrospecto, com o conveniente esquecimento da supressão das liberdades individuais e coletivas durante 350 invernos. Coube ao historiador francês Alexis de Tocqueville escavar “a democracia na América” sob a barbárie impiedosa e violenta do trabalho forçado, em plantations.

O princípio da representação no centro da república estadunidense difere da democracia, na origem. A extensão territorial e a superpopulação são argumentos correntes para ocultar o desestímulo à participação e evitar a formação de uma maioria capaz de confrontar os privilégios dos poderosos proprietários. Os pais da grande potência adotam diversos mecanismos para precaver a nação da aplicação prática do direito a ter direitos.

O conceito de democracia hiberna 2000 anos; desperta para a Revolução Francesa. A experiência inflama a imaginação dos jacobinos. De novo, praças reúnem a multidão para decisões de cunho público. O ápice ocorre ao pé da Avenue Champs-Élysées, na Place Luís XV, depois Place de la Révolution – onde o rei Luís XVI e Maria Antonieta perdem a cabeça literalmente; até virar Place de la Concorde. No lugar exato da temida guilhotina do Terror fica, agora, um portentoso obelisco egípcio.

Jacobinos intuem a energia explosiva do frêmito democrático para detonar o poder da aristocracia e erguer o igualitarismo. Enquanto aríete da política, a democracia promove a Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. Sob tal concepção, a bandeira da participação popular é hasteada como fundamento da legitimidade política. Os cantões comunais da Suíça são o que há de mais próximo da configuração institucional de tipo ateniense. Aos trancos, a história avança. Os títulos nobiliárquicos ou de servos cedem ao tratamento de “cidadão”, credor de direitos frente o Estado.

Para Maximilien de Robespierre: “A virtude pública produziu milagres na Grécia e outros ainda mais incríveis na França republicana”. Prossegue. “A essência da República ou da democracia é a igualdade… permite a uma pessoa priorizar o interesse público ao invés dos interesses particulares”. Deve-se a Robespierre a atração da democracia como fonte de poder. Se a virtude é tão necessária é porque não faltam vilões no ancien régime. No nouveau régime, idem. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, dissimula um absolutismo recauchutado e envergonhado com um oxímoro, a “democracia iliberal”.

3.

A democracia direta pauta a “vontade geral” rousseauniana. Séculos adiante, o Orçamento Participativo (OP) – quando a esquerda governa Porto Alegre e o Rio Grande do Sul – prova que as intervenções sociais diminuem as iniquidades. O exercício democrático da autoridade combate as carências (saneamento básico, transporte, postos de saúde, escolas). Os equipamentos urbanos reduzem injustiças e resgatam o espírito comunitário dos construtores de utopias – os espaços de criação para a fruição de sociabilidades alternativas na cidade e na sociedade.

A experiência, de certa maneira, se enquadra no que Robert Dahl denomina poliarquia. Governo que aspira uma realidade inclusiva, com engajamento e pluralismo. O processo cultural de democratização das deliberações é indeterminado e sempre propositivo. Convive com a liberdade de expressão, associação, sufrágio universal, partidos competitivos, eleições periódicas.

Não promete o inalcançável Jardim do Éden ou a tranquilizadora Paz Perpétua, mas oferece uma racionalidade à esperança no momento em que as nuvens recolhem dados e informações para incrementar o consumo e controlar as mentes. O antídoto reside em uma síntese entre um modelo de autogestão, a democracia direta e a democracia representativa, com a última renovada nos propósitos e estruturas por via de uma reforma política.

Na Europa, o Estado de bem-estar social afunda. Nos Estados Unidos, o nó górdio está na Casa Branca que maldiz a multipolaridade sem conseguir frear a decadência do imperialismo. Na América Latina, a extrema direita invade o Legislativo, em um ataque frontal à República, à democracia e à natureza. A política na coleira privatizante da economia capitalista corrompe o bem comum e saúda o egoísmo hiperindividualista.

A Câmara Federal e o Senado priorizam interesses escusos. Ao término da COP-30, o Congresso derruba 56 dos 63 vetos sopesados pelo presidente Lula à “PEC da Devastação”, liberando o licenciamento ambiental e a necropolítica neoliberal. O deputado Hugo Motta (Republicanos/PB) e o senador Davi Alcolumbre (União Brasil/AP) elidem o significado da Independência do Brasil, no hino da Bahia.

Uma injeção de soberania nacional e popular na veia contribuiria para seu discernimento e qualidade, como homens públicos: “Nunca mais, nunca mais o despotismo / Regerá, regerá nossas ações / Com tiranos não combinam / Brasileiros, brasileiros corações”.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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