A China não é capitalista

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Alberto Gabriele e Elias Jabbour*

Resposta ao artigo de Branko Milanovic publicado no jornal El Pais.

O artigo “A China é realmente capitalista?” (El Pais, 15/04/2020) é um exemplo impressionante de equívocos grosseiros sobre quais são as diferenças realmente importantes entre capitalismo e socialismo.

Determinados simplismos, mesmo que venham de acadêmicos ilustres e bem-intencionados, não apenas criam muita confusão intelectual. Eles também minam e desmoralizam qualquer tentativa de encontrar uma saída do profundo buraco da miséria e do desespero em que os multibilionários estão chutando a grande maioria da humanidade. Logo, este tipo de artigo deve ser posto à forte crítica.

De acordo com Branco Milanovic: “Para ser capitalista, uma sociedade deve ser caracterizada pelo fato de que a maior parte de sua produção é realizada usando meios de produção de propriedade privada (capital, terra), que a maioria dos trabalhadores sejam assalariados (não vinculados legalmente à terra e que não sejam trabalhadores autônomos que usam seu próprio capital) e que a maioria das decisões relacionadas à produção e aos preços seja tomada de maneira descentralizada (isto é, sem ser imposta a empresas). A China atende aos três requisitos para ser considerada capitalista”.

Quanto ao terceiro requisito, Milanovic (acredita) que demonstra sua tese afirmando: “No início das reformas, o Estado estabeleceu preços para 93% dos produtos agrícolas, 100% dos produtos industriais e 97% das mercadorias vendidas no varejo. Em meados da década de 1990, essas proporções foram revertidas: o mercado determinou preços para 93% das mercadorias vendidas no varejo, 79% para produtos agrícolas e 81% para materiais de produção. Hoje, uma porcentagem ainda maior de preços é determinada pelo mercado”.

Esses números (diferentemente de muitos outros no artigo) estão corretos, mas são insuficientes para comprovar a tese de Milanovic. Pelo contrário, são totalmente consistentes com a essência do modelo socialista de mercado da China. De fato, o governo não define o preço do sorvete. O que nós chamamos de planejamento compatível com o mercado concentra-se mais nos principais objetivos estratégicos, como promover o investimento e a acumulação de capital, (quase) pleno emprego, inovação e progresso técnico, proteção ambiente e implementar megaprojetos de longo prazo como a Nova Rota da Seda e o Made in China 2025. Talvez Milanovic seja teoricamente ingênuo para entender esse ponto.

Vamos agora aos equivocos mais óbvios. Milanovic afirma: “(…) é altamente improvável que o papel do Estado no PIB total, calculado em termos de produção, exceda 20%, enquanto a força de trabalho empregada em empresas públicas e de propriedade coletiva representa 9% do total emprego rural e urbano (…).  Antes das reformas, quase 80% dos trabalhadores urbanos estavam empregados em empresas públicas. Agora, após um declínio que continua avançando ano após ano, essa parte representa menos de 16%. Nas áreas rurais, a privatização de fato da terra sob o sistema de responsabilidade transformou quase todos os trabalhadores rurais em agricultores do setor privado”.

Estas afirmações não são verdadeiras.

Não houve privatização de terras na China. A terra ainda é de propriedade do Estado e, como o próprio Milanovic reconhece, “os agricultores não são assalariados, mas principalmente trabalhadores independentes, enquadrados no que a terminologia marxista chama de ‘pequena produção mercantil’” e, portanto, não estão submetidos a relações capitalistas de produção.

No que diz respeito às áreas urbanas, as estatísticas oficiais básicas mostram uma imagem muito diferente. O “Anuário Estatístico da China” (AEC) apresenta dados anuais para todas as empresas industriais acima de um tamanho determinado. Eles incluem dois títulos principais, empresas financiadas com fundos nacionais e empresas com investimento direto estrangeiro. As empresas de capital nacional incluem empresas Estatais, Coletivas, Cooperativas, Empresas de Capital Fechado, Sociedades de Responsabilidade Limitada (SRL), Holdings Industriais (HI) e Empresas Privadas (EP). Algumas SLRs são apenas corporações financiadas pelo Estado, mas a maioria é classificada sob o subtítulo “como outras SLRs”.

As empresas estrangeiras incluem Fundos de Hong Kong, Macau e Taiwan (EEHKMT) e Fundos Estrangeiros (FE – do “resto do mundo”). Portanto, existem três grupos de empresas capitalistas na China: EP, EEHKMT e FE. Para cada um deles, o AEC também distingue vários subgrupos. Para as empresas privadas, em particular, estas são cinco: Empresas (totalmente) de Capital Privado, Empresas de Sociedade Anônima Privadas (ESAP), SRLs privadas, Sociedades de Participação Industriais Privadas (SPIP) e outras empresas. Para cada tipo de dados (número de empresas, ativos, produção, ganhos etc.), a soma dessas cinco legendas corresponde exatamente ao valor atribuído às EP como um todo, o que indica inequivocamente que todas as outras empresas não pertencem ao setor privado nacional.

A única interpretação plausível das estatísticas industriais da China sobre empresas mistas é que existe uma parte substancial dos LSRs e as SPIPs não pertencem a capitalistas nacionais ou estrangeiros. Esse agrupamento residual, mas longe de insignificante, é classificado como Outras LCRs e “… pode incluir qualquer grau de propriedade estatal abaixo da propriedade total” (Hubbard P., 2015, Reconciling China’s official statistics on state ownership and control. EABER Working Paper Series Paper No. 120, p. 5)

Em resumo, a maioria das LCRs e SPIPs deve ser vista como joint ventures indiretamente controladas pelo Estado. Eles são o resultado do grande processo de corporatização realizado desde a virada do século e constituem o componente mais crucial da estratégia de desenvolvimento econômico de orientação socialista no que cerce a evolução dos direitos de propriedade. Portanto, são empresas conceitualmente não capitalistas. No setor industrial, as empresas não capitalistas incluem tanto diretamente (empresas estatais, coletivos, cooperativas, empresas estatais de propriedade conjunta e corporações financiadas exclusivamente pelo Estado) quanto empresas indiretamente controladas pelo Estado.

Dito isto, o que diz as estatísticas do AEC?

O papel das empresas financiadas por Investimento Estrangeiro Direto (IEDs) é importante, mas não primordial, e vem declinando nos anos 2010. As EPs se multiplicaram e agora são de longe a maior categoria no setor industrial da China em termos de número de empresas. Em termos de ativos e produção, eles também vêm crescendo, mas, em média, ainda são muito pequenos: as EPs representam mais de 25% do capital industrial da China e 45% de sua produção.

No entanto, as empresas não capitalistas consolidaram sua posição dominante em termos de ativos. Sua participação na produção industrial tem declinado, mas a uma taxa progressivamente decrescente, o que parece ter levado até agora a uma estabilização substancial de cerca de 48% do total. Sua participação nos lucros e no emprego industrial também se estabilizou em cerca de 40%.

A elaboração elementar de outros dados da AEC mostra que o grau de capitalização das empresas industriais não capitalistas é maior que o das empresas financiadas por IDEs e mais do que o dobro do das empresas públicas. Desde meados dos anos 2000, sua produtividade do trabalho também é maior que o das empresas capitalistas nacionais e estrangeiras. Seu nível médio de produtividade também é saudável, embora não tão saudável quanto o das empresas estatais.

Esse desempenho geral das empresas industriais não capitalistas é resultado de tendências muito diferentes em seus dois subcomponentes.

A relação capital/trabalho de empresas controladas diretamente pelo Estado mais que dobra a média da indústria e continua a aumentar, pois essas empresas carregam o fardo estratégico de levar a acumulação de capital da China além dos limites que enfrentaria um ambiente capitalista comum. Por terem que carregar essa cruz para o bem de todo o país, as empresas diretamente controladas pelo Estado pagam um preço em termos de indicadores de produtividade e rentabilidade no nível da empresa.

Por outro lado, as joint ventures controladas indiretamente pelo Estado têm amplo grau de liberdade para perseguir objetivos orientados ao mercado. Portanto, elas tiveram um desempenho melhor (pelo menos no nível da empresa); têm investido pesado e sua taxa de crescimento da produtividade do trabalho tem sido a mais alta da indústria chinesa, à medida que superam as empresas estatais e capitalistas. Em termos de lucratividade, as joint ventures indiretamente controladas pelo Estado têm um desempenho melhor do que suas contrapartes diretamente controladas pelo Estado, embora inferiores às das empresas capitalistas que maximizam o lucro.

Os dados sobre o emprego total (industrial e outros) confirmam que a relevância quantitativa do componente capitalista da economia chinesa não deve ser exagerada. A proporção de trabalhadores urbanos empregados em empresas privadas nacionais e estrangeiras tem aumentado e, em 2016, constituiu mais de 1/3 do total. A parcela de trabalhadores rurais empregados por empresas estatais também aumentou, atingindo 16% em 2016. A proporção geral de trabalhadores que trabalham para empresas capitalistas tem aumentado constantemente, atingindo mais de 25% em 2018.

No entanto, mais de 70% dos trabalhadores na China ainda são autônomos ou empregados em empresas não capitalistas e organizações públicas. Portanto, a grande maioria dos trabalhadores chineses não é diretamente empregada pelos capitalistas (veja Gabriele A., 2020 [a ser publicado], “Enterprises, Industry And Innovation In The People’s Republic Of China – Questioning Socialism From Deng To The Trade And Tech War”, Springer).

A China não é uma sociedade socialista perfeita. Nem sequer, e por variados motivos, se tomada por outras dimensões, poderá não ser vista como socialista em um sentido completo. (levando em conta, por exemplo, os resultados ainda lentos dos esforços em andamento para combater a desigualdade e a degradação ambiental). Mas certamente não é capitalista.

*Alberto Gabriele é ex-economista da UNCTAD. Pesquisador independente.

* Elias Jabbour é professor de Relações Internacionais e de economia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Löwy Mário Maestri Rodrigo de Faria Eugênio Trivinho Eliziário Andrade Andrés del Río Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Afonso da Silva Lorenzo Vitral Bruno Machado Luiz Renato Martins Gilberto Lopes Marcos Aurélio da Silva Rafael R. Ioris Michael Roberts Manchetômetro Marjorie C. Marona Yuri Martins-Fontes Priscila Figueiredo Alexandre de Freitas Barbosa Francisco de Oliveira Barros Júnior Samuel Kilsztajn Paulo Capel Narvai Bruno Fabricio Alcebino da Silva Kátia Gerab Baggio Andrew Korybko Denilson Cordeiro José Geraldo Couto Vanderlei Tenório José Micaelson Lacerda Morais André Márcio Neves Soares Jorge Branco Luiz Carlos Bresser-Pereira Julian Rodrigues Luiz Werneck Vianna Fábio Konder Comparato Annateresa Fabris Leonardo Sacramento Caio Bugiato Fernando Nogueira da Costa Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Carlos Loebens Luiz Eduardo Soares Celso Frederico Tales Ab'Sáber Ronaldo Tadeu de Souza Carlos Tautz Jean Pierre Chauvin Benicio Viero Schmidt André Singer Francisco Pereira de Farias Liszt Vieira Luciano Nascimento Leda Maria Paulani Leonardo Boff Luis Felipe Miguel José Machado Moita Neto João Paulo Ayub Fonseca José Dirceu Eduardo Borges Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Heraldo Campos Bernardo Ricupero Henri Acselrad Ricardo Musse Sandra Bitencourt Elias Jabbour Sergio Amadeu da Silveira Gabriel Cohn Luís Fernando Vitagliano Atilio A. Boron Thomas Piketty Ricardo Fabbrini Chico Alencar Matheus Silveira de Souza João Feres Júnior José Raimundo Trindade Lincoln Secco Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Vinício Carrilho Martinez Alysson Leandro Mascaro Luiz Roberto Alves Berenice Bento Leonardo Avritzer Antônio Sales Rios Neto Claudio Katz Valerio Arcary Luiz Bernardo Pericás Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Eleutério F. S. Prado Daniel Costa José Luís Fiori Carla Teixeira João Sette Whitaker Ferreira Antonio Martins Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira Flávio R. Kothe Renato Dagnino Alexandre de Lima Castro Tranjan José Costa Júnior Armando Boito Marcelo Módolo Jorge Luiz Souto Maior Maria Rita Kehl Osvaldo Coggiola Paulo Martins Everaldo de Oliveira Andrade João Lanari Bo Antonino Infranca Flávio Aguiar Valerio Arcary Tadeu Valadares Paulo Sérgio Pinheiro João Adolfo Hansen Marilena Chauí Michel Goulart da Silva Vladimir Safatle Paulo Nogueira Batista Jr Mariarosaria Fabris Ricardo Abramovay Chico Whitaker Eugênio Bucci Igor Felippe Santos Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Ladislau Dowbor Afrânio Catani Celso Favaretto Ronald León Núñez Gilberto Maringoni Dennis Oliveira Walnice Nogueira Galvão Juarez Guimarães Marcus Ianoni Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Anselm Jappe Ricardo Antunes Daniel Brazil Salem Nasser Remy José Fontana Marcos Silva Ari Marcelo Solon Henry Burnett João Carlos Salles Eleonora Albano Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tarso Genro Fernão Pessoa Ramos Rubens Pinto Lyra Érico Andrade Jean Marc Von Der Weid Gerson Almeida Francisco Fernandes Ladeira Lucas Fiaschetti Estevez

NOVAS PUBLICAÇÕES