Por ESTER GAMMARDELLA RIZZI*
Mulheres, indígenas, independentes e jovens – a cara da Convenção constitucional chilena
Desde que voltei ao Brasil, muitas pessoas já me perguntaram “Ester, o que você achou? Quais foram suas impressões de lá? Convenção Constitucional acontecendo, Boric eleito, tudo”. Foi minha mãe, Regina, quem foi direto ao ponto: “Se você tivesse que escolher uma coisa para contar, aquilo que mais chamou sua atenção, o que seria?”.
Respondi de bate pronto, sem ensaiar nem pensar muito: É impressionante ver um espaço político com tantas mulheres e pessoas tão jovens. Tão diferente de tudo o que já vi no Brasil. Além disso, eles têm uma tarefa política imensa e muito pouco tempo. Têm que entregar uma Constituição pronta até o dia 4 de julho. Isso é um pouco angustiante, mas voltei otimista.
A Convenção Constitucional chilena é paritária – são atualmente 77 mulheres e 77 homens entre os Convencionales Constituyentes. Essa paridade foi garantida por meio das regras eleitorais que organizaram o processo. Além disso, também foi permitida a participação, em iguais condições, de candidatos independentes, sem nenhum vínculo partidário. Por fim, reservaram-se 17 cadeiras para indígenas. Mulheres, independentes e indígenas são presenças marcantes entre os 154 convencionales, e isso parece ser uma consequência direta da maneira como foi feita a eleição. Menos fácil de explicar é a questão geracional. 42,6% dos convencionales (66 representantes) têm menos de 40 anos. 36,8% têm entre 40 e 55 anos (57 convencionales), e apenas 20,6% têm mais de 55 anos. https://interactivo.latercera.com/tu-match-constituyente-los-elegidos/ A geração com maior presença na Convenção, assim, é a mais jovem, com menos de 40 anos.
A forma das eleições que gerou essa composição da Convenção Constitucional começou a ser desenhada no turbulento final de 2019. Em 15 de novembro de 2019, os partidos firmaram o “Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución” (link aqui). Pamela Figueroa Rubio, professora da Universidade de Santiago do Chile, conta que, logo depois de assinado o documento, foi instituída uma Comissão Técnica paritária da qual participou (metade de membros indicados pela oposição e metade de membros indicados pela situação). O objetivo da Comissão foi transformar em texto normativo o acordo político que havia sido firmado. Esse texto normativo foi incluído como reforma à Constituição Chilena de 1980, por meio da Ley 21.200, de 23 de dezembro de 2019. Ela criou um capítulo completo (arts. 129-143) que prevê os procedimentos para a elaboração de uma nova Constituição. Muito mais detalhado do que o acordo assinado em novembro, teve que ser aprovado por consenso na Comissão Técnica e respeitou, em linhas gerais, o que havia sido combinado no documento político original.
O artigo 130 da Constituição de 1980 reformada, assim, passou a regular o plebiscito convocatório realizado com as seguintes questões:
“a) ¿Quiere usted una nueva Constitución? (Apruebo o Rechazo)
b) ¿Qué tipo de órgano debiera redactar la nueva Constitución? Convención Mixta Constitucional o Convención Constitucional.”
Por conta da pandemia de COVID-19, o plebiscito inicial foi realizado apenas em 25 de outubro de 2020. Para a pergunta “¿Quiere usted una Nueva Constitución?“, 78% dos eleitores chilenos responderam “Apruebo” e apenas 22% responderam “Rechazo”. Nesse mesmo plebiscito, perguntou-se também à população se a Convenção Constituinte seria uma convenção exclusiva (com membros eleitos exclusivamente para realizar o processo constituinte) ou se seria uma Convenção Mista, com convencionales eleitos para esse específico propósito ao lado de parlamentares já em exercício. A resposta foi semelhante à da primeira pergunta: 79% dos eleitores votaram a favor da constituinte exclusiva. O plebiscito indicava que o processo que levaria a uma nova Constituição para o Chile contava com grande apoio popular.
Antes de o voto ser voluntário no Chile, as porcentagens de participação ficavam em torno de 60 a 80% de comparecimento. Após a aprovação do voto voluntário, não chegou mais a 50% de participação, chegando ao mínimo de 35% nas eleições de 2016. (https://twitter.com/mmlagoscc/status/1397279209639358465/photo/1) Assim, o plebiscito de outubro de 2020 foi a votação que obteve a maior adesão desde 2011: 49,2% dos eleitores habilitados compareceram às urnas.
Antes do plebiscito, porém, a sociedade chilena já começava a estabelecer o desenho institucional que determinaria a composição da Convenção Constitucional. Em 20 de março de 2020, foi aprovada a Ley 21.216/2020, que trazia duas importantes mudanças para as eleições de 15 e 16 de maio de 2021: (a) “Para la elección de los integrantes de la Convención Mixta Constitucional o Convención Constitucional se podrán presentar listas de candidatos independientes, las que se regirán por las siguientes reglas” e “la lista de un partido político, pactos electorales de partidos políticos o listas celebradas entre candidaturas independientes, deberán señalar el orden de precedencia que tendrán los candidatos en la cédula para cada distrito electoral, comenzando por una mujer y alternándose, sucesivamente, éstas con hombres.”
Depois do plebiscito de outubro de 2020, ainda uma outra importante modificação no modo de compor o que viria a ser a Convenção Constituinte do Chile foi aprovada, na Ley 21.298, de 23 de dezembro de 2020 (https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1153843) : “la Convención Constitucional incluirá diecisiete escaños (assentos) reservados para pueblos indígenas.”
Pronto. Eleições por meio de listas, encabeçadas por mulheres, que poderiam ser compostas por independentes, e fixação da paridade: metade dos eleitos teria que ser mulher e metade homem. Além dessas regras, 17 vagas foram reservadas para indígenas. Estava completo o quadro normativo que possibilitou mulheres, indígenas, independentes e jovens terem uma presença tão marcante na Convenção Constitucional que está trabalhando atualmente em Santiago. (Veja aqui o facsímile de uma das cédulas eleitorais usada para a eleição dos convencionales em maio de 2021)
Como chamou a atenção Pamela Figueroa, porém, é possível que esse desenho institucional que claramente ampliou a possibilidade de participação política de setores antes excluídos ou sub-representados tenha sido usado como moeda de troca para que as características principais do Estado chileno fossem difíceis de mudar. Voltemos, assim, a analisar a Ley 21.200, de 23 de dezembro de 2019, que incluiu artigos na Constituição Chilena de 1980 e regulou o processo de mudança constitucional.
O artigo 136 trata do procedimento de “controle de constitucionalidade” da Convenção Constitucional. Como uma instituição que está elaborando uma nova constituição poderia sofrer controle de constitucionalidade? Frente à Constituição anterior, de 1980? É exatamente isso o que determina o artigo. Nele está claro que o funcionamento da Convenção deveria ser regido pelos procedimentos aprovados naquela Emenda Constitucional de dezembro de 2019 e, em caso de descumprimento, poderiam ser julgados por cinco membros da Corte Suprema Chilena. A Convenção Constitucional, assim, poderia escrever uma nova Constituição a partir de uma “página em branco”, sem um pré-projeto, porém respeitando os procedimentos estabelecidos nas regras da Lei 21.200/2019.
Ainda sobre os limites que a Convenção Constitucional deveria respeitar, o artigo 135 trazia algumas disposições acerca do conteúdo da nova Carta: “El texto de Nueva Constitución que se someta a plebiscito deberá respetar el carácter de República del Estado de Chile, su régimen democrático, las sentencias judiciales firmes y ejecutoriadas y los tratados internacionales ratificados por Chile y que se encuentren vigentes.”
É importante observar, nesse sentido, que alguns dos tratados bilaterais e multilaterais de livre comércio ratificados pelo Chile com 65 países do mundo, assim como tratados de livre investimento e de patentes, estabelecem limites importantes, por exemplo, à garantia do direito à saúde e à mudança da ordem econômica do Estado chileno. Uma parte do debate sobre a nova Constituição diz respeito a quanto esta regra, inserida na Constituição de 1980, pode limitar a atividade dos convencionales na sua elaboração normativa.
O novo capítulo da Constituição de 1980 estabelece ainda outros limites ao poder constituinte originário chileno. Como o artigo 133, que dispõe sobre os quóruns de aprovação: “La Convención deberá aprobar las normas y el reglamento de votación de las mismas por un quórum de dos tercios de sus miembros en ejercicio.” E o artigo 137, que estabelece um prazo curto de funcionamento: “La Convención deberá redactar y aprobar una propuesta de texto de Nueva Constitución en el plazo máximo de nueve meses, contado desde su instalación, el que podrá prorrogarse, por una sola vez, por tres meses.”
Duas das principais dificuldades que a Convenção Constitucional enfrenta neste março de 2022 são decorrentes justamente dessas normas. Em primeiro lugar, o alto quórum de dois terços para aprovação de normas constitucionais, o qual foi respeitado e incorporado aos artigos 96 e 97 do Regimento Interno da Convenção Constitucional (ou Reglamento), aprovado em 8 outubro de 2021.
Em segundo lugar, o prazo curto: o texto da Constituição finalizado e aprovado deverá ser entregue até o dia 4 de julho de 2022. Tal prazo é curto sobretudo considerando o esforço que a Convenção Constitucional tem feito para realizar um processo constituinte participativo.
No dia 11 de março de 2022, Gabriel Boric tomou posse como presidente do Chile. Em seu discurso, afirmou “En este primer año de Gobierno también nos hemos impuesto como tarea acompañar de manera entusiasta nuestro proceso constituyente por el que tanto hemos luchado. Vamos a apoyar decididamente, decididamente el trabajo de la Convención.”.
*Ester Gammardella Rizzi é professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
Publicado originalmente na revista Consultor Jurídico.
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