Por ESTER GAMMARDELLA RIZZI*
Uma nova Constituição está muito frequentemente em tensão com a realidade social que vai regular
“Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que, à maneira de Perseu, eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos…” (Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio).
Vivi em fevereiro de 2022 um verão ensolarado em Santiago. Não apenas porque havia um sol constante e intenso entre 7h e 21h30. Não apenas porque foram 14 dias sem nenhuma chuva e pouquíssimas nuvens (a região central chilena vive um preocupante processo de desertificação e disputas políticas pela água). Não apenas. Também porque o Chile vive um período histórico ensolarado, em que as pessoas estão dedicando tempo e energia para pensar em como o Chile e a sociedade chilena podem ser melhores no futuro. Estão “grávidos” de projetos e desejos de mudança que vão ser cristalizados no texto constitucional ora debatido.
Voltar para o Brasil é voltar para um país que vive um período difícil, e que tem como presidente uma figura funesta. Um país que está em processo de olhar para seus podres históricos e enfatizá-los, que deixou de ser o “país do futuro” para ser o país em que muitos só veem violência e dor. E… é difícil querer mudar e querer planejar um futuro melhor para aquilo por que não se tem amor (como sempre me lembra Tiago Tranjan). Enfim, vivemos por aqui uma “esquina da história” difícil. Não no Chile. Ou também no Chile. Mas no Chile as dificuldades parecem agora iluminadas pelo sol. Aliás, é possível se sentar ao sol nascente, ainda fraquinho, e esquecer por alguns momentos a escuridão que está ficando para trás. E planejar e desejar o sol intenso que está por vir. Um futuro melhor, menos excludente e desigual, com mais direitos.
Um dos “cabildos constituyentes” (uma instância participativa auto-organizada para discutir a nova Constituição) realizado em Valparaíso tinha as seguintes perguntas disparadoras (por assim dizer, perguntas “para começar a conversa”): “¿Qué le duele en Chile? ¿Qué le encanta en Chile?”. Dor e encanto. E essa dor, mas também esse encanto pelo país, estão movendo a sociedade para uma nova Constituição, para novas normas capazes de empurrar a sociedade para um lugar melhor.
Ao viajar para o Chile eu voei, tal como o Perseu da citação de Italo Calvino, para outro espaço, para outro ponto de observação, com o objetivo de observar o mesmo período histórico que, daqui, talvez estivesse parecendo muito pesado e sombrio. Voltei ensolarada: há a possibilidade de um futuro melhor se não abandonarmos o encanto por nossa terra, por nossa gente, por nós mesmos, por quem somos. Se conservarmos algum sentimento de pertencimento. (Perguntei também para meus entrevistados se ainda fazia sentido “chamar o Chile de Chile”, dadas as diferentes nações indígenas que estão sendo reconhecidas. Aparentemente, se o objetivo é escrever uma nova constituição para o Chile, alguma unidade e algum pertencimento têm que fazer sentido). O que percebi foi que chilenas e os chilenos estão fazendo, coletivamente, esse esforço de imaginação para dizer para onde querem ir. E vão colocar esses desejos no texto da Constituição que está sendo discutido e aprovado neste exato momento.
1.
Como, porém, esse esforço coletivo pode ganhar forma?
No finzinho de setembro e início de outubro de 2021, juntamente com o Regimento Geral, a Convenção Constitucional aprovou seu Reglamento de Mecanismos, Orgánica y Metodologías de Participación y Educación Popular Constituyente. Nele estão previstos uma série de instâncias e processos participativos que buscam caminhos para incluir politicamente “grupos historicamente excluídos”, como indicado no título que tem início no artigo 55. Cabe destacar os mais relevantes desses processos: (1) Iniciativa popular de norma constitucional (arts. 31-35); (2) encontros autoconvocados (ou cabildos constituyentes) (art. 36); (3) plebiscito intermediário dirimente (arts. 37-41) e, por fim, (4) audiências públicas obrigatórias (art. 42).
Em 11 de fevereiro de 2022, o periódico El país acusava a Convenção Constitucional de viver “El desorden, las posiciones extremas y la falta de liderazgo”. A crítica não poderia ser mais injusta, segundo observei. Os constituintes chilenos parecem comprometidos com o bom funcionamento da Convenção e com a entrega de um texto constitucional que respeite – ao menos procedimentalmente – as instâncias participativas planejadas. Como julgar como “desordem” um local em que os membros sussurram para conversar entre si (como se estivessem em uma silenciosa biblioteca ou mesmo em um local religioso)? Fazem isso para não atrapalhar as votações ou o desenrolar da reunião coletiva. Pelo que observei, os membros da Convenção Constitucional são solenes e avaliam corretamente a importância da instituição que compõem, a magnitude histórica da tarefa que lhes foi conferida. Essa solenidade toda, facilmente sentida dentro do prédio da Convenção, de alguma forma contrasta com as roupas informais que vários usam e com as práticas “fora dos muros”: é frequente ver convencionales fazendo reuniões ou tomando sol sentados na grama de fora do edifício do ex-Congresso Nacional Chileno. Não há nenhuma desordem política, porém.
Os convencionales tiveram a difícil tarefa de elaborar um método de decisão capaz de lidar com os muitos potenciais textos constitucionais trazidos, por meio de participação popular, para apreciação da Convenção Constitucional (a principal via para inclusão de texto foram as iniciativas populares de normas constitucionais). Nesse processo, privilegiaram votações no lugar de discussões. Assim, ouviam as propostas sendo expostas e faziam uma rodada de perguntas para os proponentes. O passo seguinte era votar se o texto continuaria em debate ou seria descartado. Os acordos políticos entre os muitos grupos que compõem a Convenção Constitucional acontecem, na maior parte das vezes, fora dos microfones oficiais do prédio da Convenção.
Além da necessidade de criar um método de deliberação política capaz de responder aos processos participativos e, concomitantemente, escrever uma Constituição, há mais um elemento que precisa ser levado em conta: o prazo extremamente curto para que essas decisões sejam tomadas. Eles devem entregar a versão final da Constituição, para apreciação da sociedade chilena, no dia 4 de julho deste ano.
O prazo para declarar apoio às iniciativas populares (eram necessárias 15.000 assinaturas para que o texto entrasse em discussão na Convenção) e para apresentação de iniciativas pelos membros da Convenção (cada proposta tinha que ser apoiada por pelo menos oito convencionales) se encerrou no dia 1 de fevereiro de 2022. A própria Convenção prometeu em seu cronograma entregar um primeiro esboço da Constituição para a Comissão de Harmonização até 16 de maio deste mesmo ano. Entre o momento inicial de discussão dos textos, em 1 de fevereiro, quando todas as mais de mil normas e capítulos estavam sobre a mesa, e o dia 16 de maio, quando o esboço de Constituição tem que estar pronto, são apenas três meses e meio. É uma tarefa monumental em um tempo mínimo. O trabalho para enfrentá-la demanda seriedade e concentração.
Por que não estender esse prazo? Essa é uma pergunta que me pareceu natural, e que eu fiz a muitas das pessoas que entrevistei. Ouvi de algumas delas que a Convenção não quer tentar, por exemplo, uma alteração de prazo de funcionamento porque isto poderia trazer problemas. Por um lado, a própria Convenção poderia decidir – por meio de votação – estender seu prazo além do limite previsto no artigo 137 da Constituição de 1980, mas esse procedimento poderia ser questionado pelo mecanismo de Controle de Constitucionalidade do artigo 136. (Como já explicado na Parte 4 desta série, o processo constituinte foi incluído como reforma constitucional na Constituição de 1980).
Por outro lado, a Convenção poderia fazer um pedido para o Congresso Nacional chileno e esperar que, por meio de uma mudança constitucional no próprio artigo 137, um novo prazo seja estabelecido. Neste segundo caminho, porém, a Convenção Constitucional poderia sair fragilizada politicamente. Além disso, a decisão sobre a extensão ou não de prazo não estaria sob seu controle.
Debate semelhante aconteceu quando se discutiu o quórum de dois terços para aprovação de normas constitucionais. A decisão da Convenção foi aprovar – em votação por maioria simples – um regimento que confirmava o quórum de dois terços inicialmente previsto no artigo 133 da Constituição de 1980 e confirmado nos artigos 96 e 97 do Reglamento. Além disso, em seu artigo 103, o Reglamento estabeleceu que, para modificar os tais dos dois terços previstos nos artigos 96 e 97, seriam necessários dois terços, diferentemente do resto do regimento, que poderia ser modificado por maioria simples.
As decisões políticas da Convenção até agora foram no sentido de respeitar inteiramente o estabelecido em dezembro de 2019: quórum de dois terços e prazo máximo de um ano. Sérgio Grez, professor de história da Universidade do Chile, analisou em entrevista os prováveis efeitos desse alto quórum de aprovação. Ele afirma que as normas aprovadas serão menos transformadoras do que poderiam ser caso fosse adotada a deliberação por maioria simples, ou caso fosse adotada uma solução intermediária, com propostas polêmicas sendo submetidas a plebiscito.
O “plebiscito dirimente intermedio”, com efeito, foi previsto nos artigos 77 e 97 do Reglamento General da Convenção. Além disso, foi regulado nos artigos 37-41 do Reglamento de Mecanismos, Orgánica y Metodologías de Participación y Educación Popular Constituyente. É interessante observar, porém, que o artigo 37 desse documento normativo adotou um texto aberto, no qual se menciona apenas a possibilidade de se utilizar esse mecanismo, e não sua obrigatoriedade: “Artículo 37.- Definición. La Convención Constitucional podrá resolver la realización de un plebiscito dirimente respecto de determinadas normas constitucionales (…)”.
A proposta era de que aquelas normas que não alcançassem os dois terços no pleno da Convenção, mas alcançassem três quintos, seriam levadas a um plebiscito único em que a população poderia opinar sobre o conteúdo de várias normas constitucionais controversas. Quer porque tal amplitude de participação não era desejável por partes conservadoras da Convenção, quer porque o prazo para a conclusão dos trabalhos da Convenção é extremamente exíguo, a ideia de um plebiscito intermediário acabou sendo abandonada e não foi incorporada ao cronograma de funcionamento da Convenção Constitucional. Escolheu-se, assim, não realizar a possibilidade que estava prevista no artigo 37.
Se fosse realizado o plebiscito intermediário, seria um caminho efetivo para a participação popular direta sobre temas específicos – polêmicos, provavelmente –, e não uma consulta sobre a Constituição final, pronta e completa, como provavelmente acontecerá no segundo semestre deste ano. Sergio Grez lamenta que o Chile tenha perdido a oportunidade de consultar a população sobre temas sensíveis, que provavelmente não obterão os dois terços necessários para ser aprovados no pleno da Convenção, mas que eventualmente conseguiriam a maioria para avançar até uma consulta popular.
Por fim, o plebiscito final em que a sociedade chilena vai dizer se aprova (apruebo) ou rechaça (rechazo) o texto constitucional elaborado pelos convencionales ao longo deste ano de trabalho será, diferentemente de outras eleições no Chile, de comparecimento obrigatório para os eleitores alistados (artigo 142 da Constituição de 1980). Como o fim do trabalho da Convenção está previsto para 4 de julho, se o cronograma se cumprir, o plebiscito final deve ser realizado em meados de setembro.
Além do quórum de dois terços e do prazo exíguo, a Convenção Constitucional chilena também sofreu com uma precariedade institucional e orçamentária desde o início de seus trabalhos. Em julho de 2021, quando foi instalada, nem o prédio em que ela funcionava estava preparado, nem um orçamento adequado para a contratação de assessores e outros serviços técnicos estava adequadamente previsto. Também não havia um esforço do governo de Piñera para resolver esses problemas.
Aos poucos, porém, essas fragilidades foram sendo enfrentadas. Funcionários do Congresso Nacional e das universidades públicas foram cedidos; prédios e salas de trabalho emprestadas; sociedade civil com competências técnicas específicas – por exemplo, em softwares de participação – foram convocadas. A Convenção Constitucional resolveu suas fragilidades e fraquezas pedindo ajuda para outras instituições da sociedade chilena. Essa foi uma forma informal de se abrir à participação de outros membros. Por uma deficiência, tornou-se mais democrática.
2.
É muito interessante ver uma Constituição sendo elaborada. Elaborar uma Constituição parece ser um exercício de imaginação institucional, de criação de um documento normativo que vai, ao mesmo tempo, estabelecer uma forma de organizar o Estado; criar formas de distribuir (e limitar) o exercício de poder na sociedade; estabelecer direitos e princípios que organizam a vida social e estabelecem, entre outras coisas, quais são as funções que o Estado deverá desempenhar neste futuro que está sendo construído com muitas palavras, debates e textos normativos.
Uma nova Constituição está muito frequentemente em tensão com a realidade social que vai regular. Não faria sentido que a sociedade chilena elaborasse uma Constituição absolutamente “adequada” à sua sociedade. Foi o desejo de mudar que levou à convocação da Convenção para elaborar uma nova constituição. Ela vem, de alguma forma, responder às perguntas: “Como a sociedade chilena quer ser no futuro, o que ela quer ver mudado, alterado?”. Assim, ganhar nas disputas políticas do Pleno da Convenção Constitucional é ganhar um texto normativo que contém um desejo de mudança. O caminho para que este texto se torne realidade na sociedade chilena é muito mais longo. De qualquer forma, é um privilégio ver este exercício de imaginação institucional, de adensamento político e de organização de desejos sociais sendo realizado por 154 representantes eleitas/os. Voltei do Chile ensolarada.
*Ester Gammardella Rizzi é professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
Publicado originalmente na revista Consultor Jurídico.
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