A construção da hegemonia neoliberal

Imagem: Tanya Gorelova
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Por EMIR SADER*

Todas correntes foram surpreendidas pela extinção da URSS, não por alguma daquelas vias, mas por um tipo de restauração do capitalismo, sem exibir nem sequer formas democráticas de regime político. Predominaram não anseios democráticos, mas expectativas de consumo, induzidas pelas sociedades ocidentais

1.

Essa concepção se expressa na polarização proposta pelo neoliberalismo entre estatal e privado que, para essa visão do mundo, sintetizaria as alternativas do nosso tempo. Trata-se de uma polarização que interessa ao neoliberalismo, porque reivindica uma esfera valorizada – a privada –, se deixa como alternativa a esfera que eles destruíram – a estatal – e se esconde a real alternativa – a esfera pública.

Uma confluência de fatores promoveu a transição de uma época histórica em que o Estado teve um papel central – desde as reações à crise de 1929 –, chegando ao seu auge quando Richard Nixon, um presidente conservador dos EUA, declarou, em 1971: “Somos todos keynesianos”, refletindo a hegemonia desse modelo.

O diagnóstico expresso por outro presidente republicano, Richard Nixon, apenas uma década depois, de que “O Estado deixa de ser solução, para ser problema”, coincidia com o esgotamento do período keynesiano do capitalismo, que desembocava numa estagflação, resultado do fim da era desenvolvimentista a nível mundial, combinado com os elevados gastos estatais dessa fase.

A adoção de variante do neoliberalismo por parte da social-democracia europeia – primeiro pelo governo de François Mitterand, na França, seguido pelo de Felipe González, na Espanha – consolidou essa nova hegemonia.

Na América Latina, onde a variante foi introduzida pela ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, para depois se estender a correntes nacionalistas e social-democratas, foi se dando um fenômeno similar. Primeiro, pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI) no México, seguido pelo governo de Carlos Menem, na Argentina, ambas as correntes de origem nacionalista.

Eles depois foram seguidos por correntes de origem social-democrata, como os socialistas chilenos, a Ação Democrática (AD) na Venezuela, o Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) no Brasil, entre outros.

Paralelamente, o fim da URSS e do campo socialista corroboravam a desqualificação do Estado, que aparecia como ineficiente, burocrático, corrupto, e origem da inflação. Como uma de suas consequências no plano teórico, junto com o retorno do liberalismo no plano econômico e político, reapareceu também o conceito de “sociedade civil”, como contraponto do Estado, e de um de seus correlatos, as ONGs.

2.

A crise política e ideológica da esquerda, decorrente dos reveses sofridos pelo fim da URSS e pela redefinição ideológica da social-democracia na direção do neoliberalismo, colocou uma série de questões, até ali consensuais, para diversas correntes.

A primeira era uma certa visão evolucionista da história, que, tendo seu início no comunismo primitivo, teria passado por vários períodos históricos, passados por distintos modos de produção, até ir do feudalismo ao capitalismo e, deste, apontaria ao socialismo e ao comunismo.

Mesmo as concepções distintas do socialismo – como, por exemplo, a social-democracia e o comunismo – assumiam essa temporalidade, diferenciando-se no ponto de chegada – o socialismo ou o comunismo.

O fim da URSS e do campo socialista representou um duro golpe para a ideia, até então corrente na esquerda, de que “a roda da história não volta para trás”. Qualquer que fosse a avaliação que se tivesse do modelo soviético, não se poderia, nessa visão, prognosticar o fim desse modelo, substituído pela restauração do capitalismo.

3.

Alguns, como as correntes trotskistas, previam uma saída pela esquerda, com a restauração dos critérios leninistas do socialismo, pela sua democratização via socialização e não estatização dos meios de produção.

Outros, como as correntes social-democratas, supunham que a crise do modelo soviético se daria pela instauração de alguma variante de alguma forma de socialismo democrático. Ambos consideravam que o socialismo soviético era a primeira expressão histórica do socialismo, que teria se deformado e seria substituído por outra forma de socialismo.

Mas todas essas correntes foram surpreendidas pela extinção da URSS, não por alguma daquelas vias, mas por um tipo de restauração do capitalismo, sem exibir nem sequer formas democráticas de regime político. Predominaram, nessas transformações iniciais, não anseios democráticos, mas expectativas de consumo, induzidas pelas sociedades ocidentais.

Combinando o triunfo ideológico do neoliberalismo no Ocidente com o fracasso do modelo estatizante do socialismo soviético, o Estado passou a ser satanizado e culpabilizado pela estagnação econômica, pelas elevadas tributações, pelos serviços públicos ruins, pela baixa produtividade e pela falta de competividade das empresas estatais, pelos gastos com enorme corpo de funcionários públicos ineficientes, pela proteção do mercado interno, evitando a competição com o mercado externo e pela corrupção. A combinação dessas visões levou à retomada das velhas teses do liberalismo ortodoxo, segundo as quais o estatismo levaria ao totalitarismo.

A hegemonia neoliberal, instaurada no mundo desde os fins do século XX, implicou não apenas a generalização de políticas de prioridade da estabilidade monetária, mas também a hegemonia dos valores mercantis, que passara a se multiplicar por toda a sociedade.

Alavancas centrais dessa difusão são os shopping centers, a publicidade das grandes marcas, a multiplicação das formas de marketing em esferas cada vez mais amplas da sociedade e o consumismo, com sua cultura do consumismo, com sua cultura da riqueza e do acesso aos bens materiais como os valores supremos da vida.

Nunca se viu uma extensão tão ampla das relações mercantis no mundo. Ao colocar no centro do campo teórico a polarização entre estatal e privado, um elenco de novas categorias passou a invadir os debates e as elaborações teóricas. Entre elas “sociedade civil”, “cidadania”, “redes”, “empreendedorismo”, “voluntariado”, “parcerias”, “terceiro setor”, “filantropia”, “exclusão e inclusão social”, – em substituição de categorias como “classes”, “contradições”, “política”, “estratégia”, “tática”, “Estado”.

O que Pierre Bourdieu chama “vulgata planetária” apaga categorias como exploração, classe, capitalismo, dominação, desigualdade, alienação, em uma ação de sucesso a partir da mídia. Constituiu-se assim, um quadro semântico, supostamente científico, desqualificador do Estado – e, com ele, de um conjunto de categorias que apareciam como obstáculos à visão liberal – e, por oposição, uma lista de categorias exaltadas como expressão da liberdade, do desejo, da imaginação, do dinamismo, do futuro.

*Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo).

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