Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
A justiça que pune um é ofuscada pela estrutura que protege todos. Enquanto o país celebra vitórias simbólicas, a velha coreografia da conciliação oligárquica segue seu curso, adiando direitos e blindando privilégios
O Brasil de setembro de 2025 escancarou uma ferida que nunca cicatriza: o país não rompe, apenas sutura conciliações podres que mantêm as mesmas elites no comando. Em poucos dias, o Supremo Tribunal Federal sentenciou um ex-presidente por tentativa de golpe, fato inédito em nossa história republicana. Ao mesmo tempo, a Câmara correu para aprovar a PEC da Blindagem, convertendo o parlamento em abrigo de criminosos engravatados, e o Congresso promulgou a chamada PEC da Providência, agora Emenda Constitucional nº 136, que posterga precatórios e reabre parcelamentos previdenciários. É a coreografia da farsa: pune-se um, protege-se todos os outros.
O julgamento histórico
Entre 7 e 11 de setembro, a Primeira Turma do STF expôs provas consistentes: transferências financeiras, caravanas organizadas, mensagens cifradas. Jair Bolsonaro recebeu 27 anos de prisão, Walter Braga Netto, 26, outros cúmplices civis e militares também foram condenados. O gesto judicial parecia um marco, quase uma ruptura com a tradição de impunidade que protege as elites políticas. Manchetes internacionais falaram em “lição democrática”, como se o Brasil tivesse enfim superado seu passado de complacência.
Mas paira a dúvida: foi o início de uma era de responsabilização ou mais uma repressão seguida de conciliação? O país já conhece o roteiro. Afinal, em 1988 também se acreditou que a Constituição Cidadã inauguraria um ciclo capaz de romper a alternância entre autoritarismos e conciliações oligárquicas. A aposta era de que, com a democracia restituída, os crimes de Estado seriam punidos e a cidadania ampliada.
Trinta e sete anos depois, o julgamento de Jair Bolsonaro mostra tanto a força simbólica da lei quanto a fragilidade do pacto de 1988, incapaz de sustentar sozinho uma democracia popular. O risco é repetir a história: punir os excessos mais visíveis, preservar os privilégios mais profundos e retomar o ciclo da conciliação que prometia ter sido superado.
PEC da Blindagem
Enquanto o STF condenava, a Câmara aprovava a PEC nº 45/2025. O texto amplia o foro privilegiado, retira processos do STF, dificulta impeachments e abre caminho para anistiar crimes políticos recentes. O voto secreto caiu por falta de quórum e foi ressuscitado pelo relator Cláudio Cajado, aprovado com 314 votos a 168.
No Senado, o clima é de resistência. Otto Alencar, presidente da CCJ, qualificou a decisão da Câmara como “juízo de valor incorreto” e prometeu tramitação regimental, mas com repúdio ao conteúdo. Alessandro Vieira apresentou parecer pela inconstitucionalidade, reforçado por seu partido, o MDB. Eduardo Girão classificou a PEC como “indefensável”, e Jaques Wagner, líder do governo, afirmou que a proposta “nasceu morta”.
A pressão das ruas acelerou o desfecho. No dia 19 de setembro, após parecer contrário da CCJ, o plenário do Senado rejeitou a PEC por 53 votos a 24. Foi a primeira derrota explícita da Câmara no tema desde 2023. Movimentos sociais comemoraram como vitória parcial, mas com a consciência de que novas tentativas de blindagem virão.
A conciliação fiscal do atraso
Promulgada em 9 de setembro de 2025, a Emenda Constitucional nº 136 ficou conhecida como PEC da Providência. Mais do que um ajuste fiscal, tornou-se um pacto oligárquico escrito em linguagem contábil. Retirou do cálculo das despesas primárias os precatórios de 2026, prometendo incluí-los gradualmente a partir de 2027.
Nos estados e municípios, a equação foi ainda mais torta: se o passivo não ultrapassar quinze por cento da receita corrente líquida, o ente paga apenas um por cento ao ano; se ultrapassar oitenta e cinco, paga até cinco. Em outras palavras, o devedor estatal premia-se com o alívio da própria inadimplência.
Também foi autorizada a renegociação de débitos previdenciários em trezentas parcelas e ampliada a desvinculação de receitas municipais, liberando recursos que deveriam financiar políticas públicas para manobras fiscais. A norma se cobre de solenidade jurídica para encobrir a banalidade do calote.
Na superfície, a PEC da Providência aparece como medida de responsabilidade. No subsolo, é a consagração do calote institucionalizado. Professores, aposentados e trabalhadores que venceram ações contra o Estado terão de esperar mais uma década.
A Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou ação no STF, alegando violação da coisa julgada e do direito de propriedade. Barroso convocou sessão virtual, mas o julgamento foi adiado. A incerteza reforça o sentimento de insegurança jurídica e mostra que, no Brasil, a lei protege antes o devedor do que o credor.
A Reuters destacou que o Congresso brasileiro havia decidido excluir temporariamente os precatórios do cálculo fiscal, enviando a investidores externos a mensagem de que contratos firmados com o Estado podem ser reescritos conforme a conveniência política. As agências de risco mantiveram a nota do Brasil, mas alertaram para fragilidades estruturais. Escritórios de advocacia internacionais passaram a recomendar cautela a fundos que compraram precatórios como ativos.
Essa conciliação fiscal lembra pacto de jagunços: hoje se mata a dívida, amanhã se promete paz, depois se trai de novo. Restam carcaças de direitos, urubus rodando sobre precatórios não pagos, poeira cobrindo esperanças mortas.
O sertão é metáfora e realidade: chão duro, sobrevivência na espera, esperança seca. Francisco de Oliveira descreveu o ornitorrinco; Ruy Mauro Marini, a dialética da dependência; Florestan Fernandes, a revolução passiva. Todos cabem na imagem de um país que promete chuva e entrega pó. O sertão não é só geografia, é destino: vereda torta, pés sobre brasas, coração apavorado.
A crítica
As cenas de setembro revelam que a democracia brasileira continua sequestrada pela lógica da conciliação oligárquica. A condenação de Jair Bolsonaro foi histórica, mas não significou ruptura. A rejeição da PEC da Blindagem foi celebrada, mas não dissolveu o pacto subterrâneo que permite novas tentativas de autoproteção parlamentar. A promulgação da PEC da Providência mostrou que, diante da crise fiscal, a elite redistribui perdas sempre no mesmo sentido: preserva cofres de governadores e prefeitos, posterga direitos de credores, esmaga trabalhadores.
O Brasil insiste em repetir o roteiro da conciliação, em que o castigo é simbólico e a proteção é estrutural. A história longa mostra que a Constituição de 1988 não bastou para frear os golpes da elite sobre a cidadania. Hoje, como ontem, a democracia é cercada por mecanismos de blindagem.
A lição de setembro é amarga: a conciliação continua sendo a regra, o sertão continua sendo o destino. A esperança de ruptura só poderá florescer se a sociedade recusar a naturalização do calote e da autoproteção política, e se ousar construir um pacto novo, não entre elites, mas entre povo e democracia substantiva. Mas, ainda há a esperança na CCJ do Senado.
Os desdobramentos mais recentes confirmam que a PEC da Blindagem se tornou um marco de desgaste político para a Câmara e de afirmação de resistência no Senado. O relator Alessandro Vieira (MDB-SE), designado por Otto Alencar na CCJ, apresentou parecer pela rejeição, sustentando que a proposta traria “enormes prejuízos aos brasileiros” e representaria obstáculo às investigações criminais.
O parecer ecoou a posição oficial do MDB e de outros partidos que antes hesitavam, mas que agora explicitam oposição ao texto aprovado na Câmara. Nas ruas, o desgaste se intensificou, com pesquisas apontando rejeição majoritária e redes sociais dominadas por críticas. No plano internacional, veículos como El país e The New York Times classificaram a PEC como ameaça institucional, enquanto Donald Trump reforçou ambiguamente que “o Congresso brasileiro faz o que precisa para proteger quem está no poder”. Esses elementos consolidam a percepção de que a blindagem fracassou politicamente, mas também expõem a persistência de uma lógica de autoproteção que pode ressurgir sob novas roupagens.
Os acontecimentos que se seguiram ao fechamento deste texto reforçam seu diagnóstico: o parecer de Alessandro Vieira, relator da PEC da Blindagem no Senado, recomendando sua rejeição por “enormes prejuízos aos brasileiros”, consolidou uma resistência institucional mais nítida; ao mesmo tempo, a repercussão internacional ampliou a gravidade da proposta, com o New York Times e o El País denunciando retrocesso democrático e Donald Trump endossando ambiguamente a blindagem como proteção do poder. Esse desfecho imediato mostra que, mesmo derrotada, a PEC revela a permanência de uma lógica de autoproteção que insiste em retornar sob novas formas.
Conclusão
O Brasil de 2025 reviveu velhos dilemas: conciliação ou ruptura, democracia ou autoritarismo. A condenação de Bolsonaro foi um marco, mas a aprovação da PEC da Blindagem, a tramitação da anistia e a promulgação da PEC da Providência revelaram a persistência da autoproteção oligárquica. Não se trata de uma anomalia passageira; é a regra do jogo, inscrita nas veredas tortas do país desde a proclamação da República.
Para o governo, o resultado imediato foi a conquista de fôlego fiscal e a garantia de governabilidade junto ao centrão e aos governadores. Mas esse alívio é curto. O preço é a corrosão da legitimidade, a perda de autoridade moral diante de uma população que vê direitos adiados e promessas frustradas.
Para a Câmara dos Deputados, a emenda foi celebrada como vitória. Mas na verdade consagrou o parlamento como espaço de autoproteção, em que os representantes legislam em causa própria, blindando-se contra a Justiça e contra o povo. Consolida-se como abrigo dos que temem a lei e como laboratório de um novo pacto oligárquico.
Para os cidadãos comuns, o saldo é amargo. Professores, aposentados, servidores, trabalhadores que venceram o Estado em disputas judiciais são novamente derrotados. Pagam à vista impostos e contribuições, mas recebem a prazo seus direitos.
A herança social dessa balbúrdia é devastadora: na saúde, menos recursos chegam ao sistema; na educação, professores desmotivados e escolas sem manutenção; na previdência, regimes frágeis e aposentados inseguros; na mobilidade, cidades paradas. Do ponto de vista externo, a imagem do Brasil se deteriora: investidores e agências de risco veem um país instável, que muda regras ao sabor da política.
Esse episódio não é conjuntura. É regra no Brasil. O pacto de 1988, que ainda preservava a esperança de uma democracia ampliada, chegou ao fim. Em seu lugar, forma-se outro pacto, elaborado pelas elites políticas e econômicas, herdeiras das oligarquias que proclamaram a República em 1889. A conciliação de hoje é filha direta da conciliação de ontem. A forma pode mudar, mas a substância é a mesma: proteger privilégios, redistribuir perdas para os mais fracos, preservar a elite à custa da maioria.
Alessandro Vieira, relator da proposta, já anunciou que apresentará formalmente seu relatório de rejeição na próxima semana, destacando os “enormes prejuízos” que o texto traria aos brasileiros. A pesquisa Quaest, que registrou 83% de menções negativas à PEC nas redes sociais, reforçou o desgaste político e a pressão popular. Nas ruas, manifestações em várias capitais reuniram movimentos sociais, sindicatos e artistas como Caetano Veloso, Daniela Mercury, Anitta, Emicida e Chico Buarque, que apelidaram a proposta de “PEC da Bandidagem” e a transformaram em símbolo de resistência democrática.
A conciliação é o método recorrente de autopreservação das elites, uma engrenagem que se reinventa a cada crise, deslocando custos para a maioria e blindando os de cima contra qualquer responsabilização real. Essa prática não surge como improviso, mas como herança de uma tradição histórica que atravessa impérios, repúblicas e pactos constitucionais.
O que muda é a roupagem: ontem foram as anistias, hoje são as emendas constitucionais; ontem a promessa de abertura democrática, hoje a retórica da responsabilidade fiscal. O conteúdo, porém, permanece: neutralizar o risco de transformação social, sufocar possibilidades de ruptura, domesticar o desejo popular. É por isso que a cada “infração punida” corresponde uma anistia subterrânea, e a cada gesto simbólico de justiça se acopla um dispositivo de autoproteção.
O Brasil insiste em girar sobre o mesmo eixo: a democracia não amadurece, apenas sobrevive entre remendos. Nesse movimento circular, o país parece condenado a caminhar como no sertão: sempre à espera de uma chuva que não vem, sempre entre a promessa e a frustração.
O sertão, mais que metáfora, é espelho da política brasileira: nele, a sobrevivência se faz de espera, o tempo se arrasta entre secas e promessas de chuva que nunca se cumprem. Assim como o jagunço que muda de lado conforme o poder do dia, as elites revezam pactos de conveniência, vendendo como novidade o que não passa de reciclagem do atraso.
No sertão, a poeira cobre a esperança, mas também ensina a resistência; o povo sabe que a travessia é dura e que a palavra das autoridades, como nuvem distante, pode desaparecer sem nunca chover. A conciliação se mostra, então, como seca institucional: prolongada, devastadora, mas sempre apresentada como destino natural.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]
Referências
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