A crise: circulando em terra firme

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Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

A civilização entrou novamente numa era de catástrofe, em que crises múltiplas se sucederão num processo de agravamento

O notável historiador britânico Adam Tooze escreveu em seu blog uma nota seminal – Policrise: pensando na corda bamba – com a finalidade de ressaltar a importância e a relevância da noção de policrise, a qual julga necessária para pensar a difícil situação da humanidade no contemporâneo. Aí, definiu esse termo novo do seguinte modo: “policrise é uma maneira de capturar a mistura emaranhada de desafios e mudanças que interagem de perto umas com as outras, torcendo, desfocando e ampliando umas às outras”.

Desse modo, circunscreveu o termo na perspectiva da teoria dos sistemas que, como se sabe, apresenta-se como uma técnica analítica e construtivista de modelização dos sistemas complexos. Estes, por sua vez, são compreendidos como plexos de partes ou elementos em interação que possuem uma organização específica ou ainda, mais do que isso, uma auto-organização. Desse modo, definem-se os sistemas complexos pelos nexos externos entre as partes, ou seja, por suas interações, as quais se dão supostamente segundo determinados padrões de regularidade.

Ocorre que há outro modo de definir sistema complexo, não apenas por meio dos nexos externos, mas como um plexo de relações internas entre as partes que o compõem. Essas relações não apenas estruturam as interações, mas também põem contradições dialéticas, ou seja, formam polaridades contrárias, mas unidas entre si. Eis que tais relações se constituem já como contradições, como conjunção de negações determinadas O todo do sistema deixa assim de ser apenas uma composição, mas precisa ser pensado como uma totalidade. Ora, isso significa, simplesmente, que as parte e o todo não podem ser rigorosamente pensados – ontologicamente – sem as suas conexões internas.

Ao fazê-lo – repetindo aqui o que se escreveu no passado – evolui-se do modo de pensar do entendimento para o modo de pensar da dialética; esse trajeto, no entanto, tem de ser feito sob a condição de um duplo reconhecimento: o entendimento é tanto necessário quanto insuficiente para uma boa compreensão do mundo. A dialética visa apenas suplementar o entendimento na compreensão de sua complexidade constitutiva que não é estática, mas, ao contrário, encontra-se em devir.

Ora, essa elucidação – algo críptica e talvez pretenciosa – tornou-se necessária aqui porque Adam Tooze, em seu pequeno artigo, desafia os marxistas a dar uma explicação que seja capaz de abarcar a complexidade da crise contemporânea. Sugere, então, que não basta dizer “que tudo se resume ao capitalismo e seu desenvolvimento em crise”. Não duvida, entretanto, que essa modalidade de reflexão crítica “seja capaz de oferecer uma resposta, mas, para que seja convincente” – diz –, “teria de ser uma teoria marxista da complexidade e da policrise”.

Argumenta-se diante desse desafio que o marxismo não se fixa na noção de policrise – eis que se trata de uma noção que cobre apenas aparência – justamente porque tem o conceito de totalidade, o qual deve ser compreendido – julga-se – na perspectiva de Theodor Adorno de que o todo é falso. A disposição do pensamento à totalização é necessária, mas é preciso saber que se trata de um método orientado por uma utopia cognitiva; eis que a boa razão dialética opera também sob o princípio da não-identidade entre o sujeito cognoscitivo e o real a ser apreendido. Ora, isso evita a positivação do todo tal como é feita pelo marxismo vulgar e, assim, em última análise, o totalitarismo que ele engendra.

De qualquer modo, vale ressaltar, o conceito de totalidade é necessário porque “o concreto é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. A crise, nesse sentido, figura sempre uma crise única, mas que tem múltiplas dimensões. Ela aparece pela eclosão de diversos problemas, os quais resultam de diversas contradições e, assim, produzem tensões.

Julga-se nessa perspectiva, ademais, que a noção de policrise ainda está no campo do saber positivo já que não deixa de examinar os fatos como ocorrências discretas, ainda que como participantes de uma composição, de um sistema de interação – e não em isolamento, juntados apenas por meio de funções matemáticas. Veja-se, mesmo pelo que foi apresentado acima, que o sujeito do conhecimento se mantém externo ao objeto – e não de um modo imanente a ele como pretende toda teoria crítica.

É evidente que Marx examinou a crise capitalista por meio de uma visada econômica em O capital. Para ele, como se sabe, não apenas ocorrem crises no capitalismo, mas as crises fazem parte da própria lógica de desenvolvimento da acumulação de capital. As crises – disse em O capital, ainda na perceptiva fornecida pelo capitalismo de meados do século XIX – são momentos disruptivos no curso de evolução das contradições inerentes ao próprio sistema do capital, eclosões que as distensionam temporariamente e que o preparam para um novo ciclo de acumulação.

O capitalismo do final do século XX e começo do século XXI reclamou, como já é de conhecimento bem difundido, a necessidade do conceito de crise estrutural porque a sua eclosão imanente não produz mais, de modo necessário, um reequilíbrio temporário; ao contrário, o desequilíbrio pode persistir tendendo a permanecer por um tempo longo – ou talvez mesmo de modo permanente. Pois, a destruição necessária do capital acumulado para repor um certo equilíbrio não pode mais ocorrer sem que o próprio capitalismo entre em colapso – uma ameaça que pintou no horizonte com a crise de 2008, mas não ocorreu apenas porque a ação do Estado impediu o desencadeamento do processo de desvalorização avassaladora do capital fictício acumulado e, em consequência das quebras sucessivas, do próprio capital industrial.

O próprio Marx sabia que a crise econômica engendra a crise social – ou seja, o aguçamento da luta de classe e o tensionamento consequente das lutas políticas. Anotou que os economistas clássicos, e em especial Ricardo, sabiam disso porque se preocuparam com a tendência à queda da taxa de lucro, indicativo da existência de superacumulação, no curto e no longo prazo. “Daí o temor dos economistas ingleses em relação à diminuição da taxa de lucro – diz – (…) O que inquieta Ricardo é que esse acicate da produção capitalista (…) venha a colocá-la em perigo pelo próprio desenvolvimento dessa produção”.

O que Marx não sabia, entretanto, é que as crises, mesmo as mais profundas, da produção capitalista não engendrariam necessariamente uma oportunidade de transformação socialista. Se essa possibilidade ainda era verdadeira no século XIX, tornou-se no correr do século XX motivo de grande incerteza, um advento pouco provável. Pois, esse século viu a ascensão de extremismos de direita que podem ser caracterizados grosso modo como fascistas.

Em virtude de sua situação histórica, ele não pode compreender as interligações complexas entre as condições objetivas da crise econômica, o estado da cultura e a formação do caráter – ou da personalidade. Eis que essas conexões, como se sabe, só começaram a ser apreendidas por meio, primeiro, do freudo-marxismo (Wilhelm Reich, Erich Fromm entre outros) e, depois, da teoria crítica (Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, principalmente).

Uma história bem completa dessa investigação e sua exposição se encontra no livro Teoria crítica e psicanálise de Sérgio Paulo Rouanet. Aqui apenas se pode abrir a questão. Sugere-se, no que se seque, que o extremismo fascista pode ser visto como uma formação política que captura certos desejos de segurança e proteção que surgem quando o caráter, especialmente dos indivíduos pertencentes às classes médias, mas também de “sujeitos” que estão fora delas, entra em crise.

Para restringir o escopo dessa nota, não mais do que uma peça informativa para eventuais interessados, fica-se somente com as teses de Erich Fromm apresentadas em seu livro clássico, O medo à liberdade.

Um primeiro ponto, trazido por esse autor, é que a sociedade moderna não cria indivíduos firmes e racionais como diz a lenda da teoria econômica corrente, mas sobretudo, às vezes sob essa aparência, caráteres medrosos e inseguros que se incomodam com as flutuações e as incertezas da vida econômica, assim como com os conflitos políticos que medram na sociedade em certas circunstâncias.

Quando o próprio sistema da relação de capital entra em crise estrutural, uma parte significativa desses indivíduos tornam-se às vezes dispostos a sacrificar a sua liberdade. Erich Fromm se vale então das descobertas de Freud para desvelar as forças irracionais e inconscientes determinantes do comportamento humano e que levam os indivíduos sociais a desejar e a clamar, quando se sentem fracos e desamparados, até mesmo por ditaduras fascistas.

Como se sabe, as relações sociais no capitalismo se dão como relações de coisas; os sujeitos econômicos, por sua vez, são assujeitados, não-sujeitos, já que atuam e tem de atuar como personificações das coisas – das mercadorias, da força de trabalho e do capital. Como tais, têm apenas a “liberdade” negativa. A liberdade positiva, entretanto, está reservada, de um modo efetivo, apenas para a burguesia.

Referindo-se especialmente aos não-burgueses, para Erich Fromm, os indivíduos no capitalismo, ao se tornarem independentes dos pais, ou seja, “sujeitos” em si, tem “dois caminhos (…) para superar o estado insuportável de impotência e solidão”: ele pode lutar pela liberdade positiva tornando-se um ativista ou pode se acomodar, fugir da luta, abdicar da autoafirmação, tornando-se grosso modo um “neurótico”. Pois, a rota de fuga, orientada pelo medo e, eventualmente, pelo pânico, caracteriza-se por sua natureza compulsiva.

Alguns daqueles que optam pela rota da fuga entram no caminho do autoritarismo. Ao renunciar à luta pela independência, por certa autonomia do próprio ego, tendem a se identificarem com alguém ou algo do mundo exterior com a finalidade de adquirir potência. São tomados, assim, pelo anseio de submissão e de dominação, ou seja, por impulsos masoquistas ou sádicos, os quais – diz – existem “em grau variável tanto nas pessoas normais quanto nas neuróticas”.

Esses impulsos em contradição amparam de algum modo o indivíduo, evitando que ele se sinta só e impotente diante do mundo. O caráter sadomasoquista, encontrado especialmente nos indivíduos de classe média – em especial, atualmente, naqueles que se encaram com empresários de si mesmo –, é autoritário porque vem a ser sempre uma atitude que reconhece e mesmo valoriza a autoridade, o poder dos “vencedores”. São esses indivíduos que se oferecem como a massa ao fascismo quando a incerteza inerente à crise econômica, social e política se instala na sociedade. Ou seja, o caráter autoritário é uma estrutura de personalidade que dá uma base humana ao fascismo.

Fromm distingue também uma outra forma de responder à solidão e à impotência do indivíduo no mundo competitivo criado pelo capitalismo – algo que não afeta apenas a esfera econômica da sociedade, mas se espraia pelas relações sociais em geral, criando assim um mundo inóspito. Alguns indivíduos, para escapar do sentimento de franqueza diante de um sistema que ele não controla e que lhe parece marcado pela fatalidade, assumem um caráter marcado por impulsos de agressividade contra tudo e todos, ou seja, do que denomina de destrutividade – algo que Freud captou por meio da noção de pulsão de morte. “A destrutividade” – diz esse autor – “é o produto da vida não vivida”.

Finalmente, o psicanalista que se está aqui compulsando menciona a existência ainda de um outro caminho de fuga possível diante do estranhamento que a sociedade moderna impõe às pessoas: o alheamento do mundo. Segundo ele, trata-se do caminho adotado, usualmente sem consciência, pela maioria dos indivíduos “normais” da sociedade moderna. Esse tipo de caráter se forma quando o indivíduo simplesmente adota inconscientemente os padrões culturais que vigoram mais amplamente na sociedade. Trata-se de um mimetismo, ou seja, o indivíduo busca apagar a diferença entre ele e o mundo, tornando-se idêntico à maioria que figura como silenciosa. Fromm caracteriza esse caminho por um termo bem sugestivo: “conformismo de autômatos”.

Com base nessas duas noções abstratas de caráter, o autoritário e o autômato”, com a noção complementar de destrutividade, Erich Fromm, em seu livro, tornou-se capaz de apresentar fundamentos psicológicos tanto para o advento do fascismo e do nazismo quanto da “normalidade” da democracia moderna. É claro que a sua explicação dessas formas sociopolíticas não pretende substituir, mas complementar, as análises sociológicas e da ciência política. Eis que ambas são fenômenos moldados por fatores enraizados na economia e na sociedade.

De qualquer modo, essa estrutura analítica – assim como aquelas desenvolvidas depois pela teoria crítica – parece também relevante para pensar o advento “inesperado” do fascismo nas “margens plácidas” em que brilha o “sol da liberdade” e em que a terra é “mãe gentil”. Ora, esses termos grandiloquentes que caracterizam ideologicamente a brasilidade na mente de muitos estão certamente em contradição com tudo o que o bolsonarismo representou nos últimos quatro anos.

É preciso, pois, saudar o “brado retumbante” da vitória eleitoral da coalisão das forças democráticas que ganhou uma batalha do fascismo neoliberal – uma noção eminentemente política que tem sido utilizada por muitos para caracterizar em grandes traços o bolsonarismo.

As adversidades trazidas pela crise estrutural do ocaso do capitalismo, crise esta que atinge todos os países do mundo, não podiam ter sido revertidas no Brasil, por ele e seu chefe inominável – ao contrário, tudo se agravava dia após dia.  Mas também ela não será revertida significativamente pelo movimento cívico que o sucedeu. Um enigma político para o futuro, assim, está posto. É preciso ter clareza que a civilização humana entrou novamente numa era de catástrofe, em que as crises múltiplas se sucederão num processo de agravamento, tal como se tentou indicar na postagem anterior: a economia pós-global. De qualquer modo, como sempre, é preciso duvidar de tudo.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Ed. Lutas Anticapital).

 

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