A cultura do judeu da diáspora

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Por SAMUEL KILSZTAJN*

O moderno sionismo político e a criação do estado de Israel como um estado judeu sempre foi matéria controversa, tanto entre judeus laicos como no meio religioso

Antes do Holocausto, os judeus de origem europeia (ashkenazim), que falavam yiddish, representavam 90% dos judeus no mundo (hoje representam 80%), os demais eram sephardim e mizrahim. Os judeus ashkenazim, durante a diáspora, desenvolveram uma cultura humanista, internacionalista e pacifista, que pode ser conferida na pujante literatura yiddish gerada entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX.

Em meio à cultura ocidental, o pacifismo judeu era considerado sinônimo de fraqueza e de pouca virilidade. Esses judeus, que sempre se posicionavam contra as desastrosas guerras entre os países europeus, foram vítimas de pogroms, submeteram-se a ser escravos do III Reich e caminharam pacificamente para o matadouro. Contudo, Jean-Paul Sartre escreveu que a brandura dos judeus, utilizados como bode expiatório, frente às injustiças e à violência era a verdadeira marca da grandeza do povo judeu.

O Plano de Partição da Palestina foi aprovado pelas Nações Unidas em 1947 como uma alternativa para o assentamento dos judeus sobreviventes que estavam alojados nos campos de refugiados na Europa. Para os países membros das Nações Unidas era mais conveniente a criação de um Estado judeu na Palestina do que autorizar a imigração desses judeus sobreviventes para seus respectivos países.

Na formação do Estado de Israel, ao se empenharem em sobrepujar a passividade com que os judeus enfrentaram os pogroms e o Holocausto, os israelenses decidiram soterrar o yiddish, a milenar língua materna dos judeus ashkenazim, e declarar a língua sacra, o hebraico, como idioma oficial. Em Israel, a tradição humanista, internacionalista e pacifista dos judeus da diáspora, junto com a sua língua, o yiddish, foi banida.

Era necessário criar o novo judeu, o judeu nacionalista e viril, capaz de expulsar 80% dos palestinos do território que passou a ser Israel, para garantir uma maioria judia no país; e submeter militarmente os 20% dos palestinos que foram autorizados a permanecer em Israel, bem como os refugiados e os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os judeus de Israel são chamados de sabras (frutos do cacto, figos da índia), grossos e espinhentos por fora e, como gostam de acreditar, macios e doces por dentro.

Na década de 1950, dezenas de milhares de judeus sobreviventes do Holocausto que haviam imigrado para Israel a partir de 1948, não se adaptando à cultura do novo judeu israelense, resolveram abandonar a Terra Prometida. Milhares de israelenses, por obra do destino, aportaram em terras brasileiras, imigração deveras desconfortável para os judeus sionistas brasileiros.

Essa aliyah às avessas, até hoje, não encontra registro na história da imigração judaica pela Confederação Israelita do Brasil – CONIB.

O yiddish, uma língua com uma riqueza cultural mágica, autêntica, cheia de cores, aromas e sabores, sempre foi mesmo uma língua sem estado. A pátria dos judeus da diáspora era o livro, a Torah, e sua única arma sempre foi a caneta. Nos anos 1950, o primeiro-ministro David Ben-Gurion proibiu formalmente a nomeação de oficiais com sobrenomes yiddish para as forças armadas e para o corpo diplomático, forçando a substituição dos sobrenomes yiddish para sobrenomes hebraicos.

Em Israel, falar yiddish nas ruas era mal visto, quase uma contravenção. O poeta Menke Katz, depois de ter sido conduzido à prisão em Israel por falar yiddish com seu filho na rua, fez as malas mais uma vez e voltou para os Estados Unidos.

Mas os judeus nos Estados Unidos, que sempre foram considerados pacíficos, tolerantes e pouco viris na sociedade agressiva e competitiva norte-americana, resolveram enaltecer os “heroicos” israelenses, trair a cultura do judeu da diáspora e abraçar a cultura do novo judeu sionista, lutador viril, durão e armado até os dentes. Pankay Mishra, em artigo postado no site A Terra é Redonda, analisa o empenho tanto dos sionistas como dos nacionalistas hindus em substituir suas pregressas experiências de humilhação por uma cultura heroica.

Israel deu início a uma ofensiva militar em Gaza após 7 de outubro de 2023. A OTAN, hipocritamente, se empenha em um cessar fogo enquanto a guerra segue em Gaza, com o povo palestino sendo exterminado, e a vida em Israel segue seu curso normal, comércio, restaurantes e bares abertos, adultos indo trabalhar e crianças frequentando as escolas. Esta guerra é uma farsa, é uma chacina.

Em 1982, as Nações Unidas, por 123 votos a favor, nenhum contra e 22 abstenções, condenaram o massacre de Sabra e Chatila declarando-o um ato de genocídio. A Corte Suprema de Israel considerou o Ministro da Defesa responsável pelo massacre e recomendou a sua demissão. Seria possível imaginar, como uma reação ao massacre de Sabra e Chatila, uma ofensiva palestina em Tel Aviv que a deixasse aos escombros, como está hoje reduzida a Faixa de Gaza? Imaginar o extermínio de milhares de homens, mulheres e crianças israelenses na proporção das atuais mortes perpetradas pelo exército israelense em Gaza? Para os países membros da OTAN, a mera imaginação de uma ofensiva palestina no calibre da ofensiva israelense é mais aviltante que a efetiva ofensiva militar em andamento em Gaza.

Em 2016, a IHRA (Aliança Internacional para a Memória do Holocausto) divulgou uma Definição Prática de Antissemitismo, que inclui “negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo, afirmando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista”. Vários países membros da OTAN aderiram à definição de antissemitismo da IHRA, substituindo judaísmo por sionismo e se empenhando em silenciar as vozes dissidentes em apoio à causa palestina, perseguir professores, pesquisadores e acadêmicos, cancelar palestras, exposições, eventos, shows, desconvidar pessoas para receberem prêmios etc.

Em 2020 vários acadêmicos, jornalistas e intelectuais palestinos e árabes expressaram suas preocupações com a definição de antissemitismo da IHRA. Em agosto de 2023, a centenária organização judia norte americana The Workers Circle rompeu com as demais organizações judaicas nos Estados Unidos por discordar da definição de antissemitismo da IHRA. Em março de 2024, o governador do Estado de São Paulo achou por bem aderir à Definição Prática de Antissemitismo da IHRA.

O moderno sionismo político nasceu no final do século xix, mas era muito pouco expressivo até a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha. Parte significativa dos judeus europeus aderia ao ideário socialista; e parte significativa imigrava para os Estados Unidos. O Bund, a União Geral dos Trabalhadores Judeus na Lituânia, Polônia e Rússia, fundado em 1897 no seio do Império Czarista, constituiu-se em um expressivo movimento em prol da democracia e do socialismo.

O Bund era internacionalista e abertamente antissionista. Entre 1881 (início dos pogroms no Império Russo) e 1914 (início da Primeira Guerra Mundial), três milhões de judeus abandonaram o Leste Europeu, dois milhões dos quais imigraram para os Estados Unidos. Jerusalém, para a grande maioria dos judeus, permanecia sendo a Jerusalém Celeste, espiritual, messiânica, o paraíso, a Terra Prometida para a qual, durante o Pessah, anualmente, se dizia querer ir “no próximo ano”, l’shana haba’ah b’Yerushalayim.

O moderno sionismo político e a criação do estado de Israel como um estado judeu sempre foi matéria controversa, tanto entre judeus laicos como no meio religioso. Para o judaísmo, a unanimidade é considerada estúpida e é recriminada.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Yiddish amz.run/7C8V.


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