Por FERNÃO PESSOA RAMOS*
Os números digitais são o cálculo daquilo que se descarta num mundo de brutalismo
1.
Vamos definir que as imagens circulando nas redes sociais são em grande parte imagens-câmeras, ou imagens que sofrem sua mediação. Isso implica que esteja havendo, ou tenha havido, uma cena – em outras palavras, uma circunstância voltada para a composição desta imagem. Nosso objetivo aqui é analisar três tipos de cenas, ou encenações, do bolsonarismo como modos de ser nas redes sociais.
Para nossa abordagem vamos isolar três tipos-ideais de encenação bolsonarista compostas pela instauração de figuras particulares: a degustação narcisista do horror; as pulsões do transe sequestradas pelo ordenamento religioso e a exploração da cena da culpa e má-consciência. Concretamente, as figuras que analisaremos são: (i) as selfies tiradas após as ações bárbaras durante os eventos de 8 de janeiro, com destroços sustentando a profundidade da imagem-câmera (Imagem 1); (ii) imagens de transe de êxtase religioso, especificamente as do evento com glossolalia da primeira-dama Michelle Bolsonaro, durante as comemorações da indicação do ministro André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (Imagem 2); (iii) o retrato de Bolsonaro exibindo seu corpo com as cicatrizes da facada que recebeu em Juiz de Fora na campanha eleitoral de 2018 (Imagem 3).
Imagem 1 (selfies)
Imagem 2 (transe)
Imagem 3 (retrato/cicatriz)
A encenação, na tomada da imagem-câmera, compõe uma individuação que tem a característica de receber o reflexo do mundo como matéria exterior. Ele (o reflexo) habita a encenação como uma “instauração”. O processo de “instauração” compõe a individualidade tecnológica que chamamos sujeito-da-câmera, aquele que toca o mundo como cena.
A reflexão, ou reflexo, é sua extensão, sua res extensa por assim dizer, uma substância externa contínua que aparece na e pela sua agência, estando lá. Podemos então dizer que a encenação na tomada (no “take” da imagem) é um modo particular de existência daquilo que reflete. O maquinismo-câmera e o sujeito que o sustenta na tomada funcionam como um ponto de gravidade que, dentro de seu raio, processam a experiência do agir como encena-ação.
Em seu modo de encenação, as imagens acima promovem três modalidades vitais de afeto: o narcisismo (nas selfies); o êxtase (nas figurações de transe); a culpa e o arrependimento (no retrato da cicatriz). Detalhando os modos de afeto na instauração do sujeito-da-câmera como individuação tecnológica temos que:
(a) Na Imagem 1, o afeto narcísico da selfie é a experiência de um sujeito-da-câmera que se admira e tem como pano de fundo a paisagem extensa do horror; (b) Na Imagem 2, a constrição do transe pela exultação transforma o júbilo livre subtendo-o às correias da autoridade de uma entidade superior (Deus); (c) Na Imagem 3, as cicatrizes corporais de Bolsonaro recebem o culto da culpa e da compaixão como suplemento, submetendo a autonomia do sujeito ao flagelo corporal sofrido por outrem.
As imagens são, portanto, compostas em circunstâncias nas quais uma carga de afeto congrega ações para a câmera. Um centro originalmente volátil é deslocado pela idolatria e colado pela sobreposição na figura bolsonarista. Um corpo fragmentário/estilhaçado recebe a subjetividade bolsonarista que a câmera instaura na modalidade das selfies na terra arrasada do Planalto (Imagem 1); no transe cooptado pela exaltação no êxtase da entidade divina (Imagem 2); pelo retrato de uma figura bovina paralisada na má-consciência do flagelo do ídolo (Imagem 3).
As três funções da interioridade como afeto, ou emoções arquetípicas, integram dominação e prazer. O sujeito-da-câmera abre-se, pela cena, à figuração brutal da matéria num mundo de violência e alienação que ele mesmo configura nas maneiras necessárias para processamento de valor.
2.
Vejamos mais de perto estas figuras da encenação bolsonarista. No transe religioso, a rememoração ancora e restringe a ocorrência de pulsões livres que de outra forma se mostrariam como modos virtuais de vontade e poder. Por exemplo, nos filmes de Jean Rouch (Os Mestres Loucos/1955, entre outros); ou em obras de Glauber Rocha (Terra em Transe/1967, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro/1969 ou A Idade da Terra/1980), o sujeito-da-câmera em transe aparece liberado, em sua potência, para além da consciência e de memória. Assim, múltiplas configurações pulsionais livres são possíveis. As cadeias de dominação pela culpa e pelo narcisismo retrocedem e o poder do impulso aumenta, relacionando a vontade numa virtualidade aberta.
A imagem-câmera de Michelle Bolsonaro em êxtase na experiência da glossolalia instaura o transe como o sujeito para câmera numa cena (ou encenação) em cerimônia neopentecostal evangélica. O transe emerge ligado a um ser externo (Deus) que regula e dosa a saída livre da potência. A experiência do transe se dispõe através de estrutura de submissão à uma entidade superior que concede e autoriza.
No transe bolsonarista a inconsciência livre é canalizada no louvor, já pronto como forma para se acoplar no ídolo agregador. A pulsão livre que liberaria auto-satisfação e felicidade torna-se uma forma de débito pela tristeza ou ressentimento. Estabelece uma dupla concentração entre bem e mal, de um lado, e o poder chamado Deus, ou Bolsonaro, de outro. Limitando a energia livre, um todo selado é instaurado para unificar o impulso de poder que, originalmente, no modo de ser aberto do transe, é disperso em sua virtualidade.
No retrato de Jair Bolsonaro a exibição da cicatriz instaura a culpa como misericórdia por outrem, fortalecendo os afetos que amarram as pulsões livres num núcleo volátil, pois vazio. Nas imagens-câmera da cicatriz bolsonarista domina a circunstância que promove a piedade do corpo sofredor. O sujeito-da-câmera “sente-se” culpado pela dilaceração da alteridade. Remorso e má-consciência negam o prazer e constituem a contrição como descarga.
Há uma analogia com a compunção cristã na cruz. A presença aurática do corpo ferido de Jair Bolsonaro na tomada da cena permite que a culpa se torne uma disposição geral de controle. Ela, a culpa, aprisiona no arrependimento a potência da vontade. O sofrimento corporal é o elemento central na figuração do bolsonarismo congregando, no horror, a dilaceração da carne na cicatriz. O sofrimento clama “que a experiência de minha ferida seja tua compaixão”: “Primeiro, compartilhamos a culpa em minha carne e depois você é meu corpo, sofrendo comigo as múltiplas facadas.” Os afetos sobrepostos em torno da piedade e da compaixão são assim mantidos cativos na culpa – e a responsabilidade retém fluxo livre da vontade para a catexia centrada na figura de Jair Bolsonaro.
Podemos encontrar movimento similar na imagem das selfies bolsonaristas. Têm como motivo a exibição narcisa na auto-imagem do corpo de si, trazendo como complemento (fundo da imagem que aparece em profundidade) a destruição da matéria provocada pelos acontecimentos de 8 de janeiro. A função de individuação que chamamos de ego, ou consciência, mostra-se aqui como um modo de existência. É o ser tecnológico do ‘eu’ aberto em sua composição de auto-imagem – ou o reflexo do sujeito-da-câmera “eu mesmo estando no palco” como “minha” figura. A imagem fotográfica da selfie carrega em si o afeto narcisista da “imagem-minha do corpo-meu” que emerge na cena. A satisfação na emergência relaciona-se com o afeto narciso (meu eu-belo) sobreposto a brutal destruição da matéria-bela ao fundo (arquitetura do Planalto, obras de arte, esculturas, vidros, etc).
O filósofo Achille Mbembe menciona que “a paixão narcisista é a chave para o novo imaginário” (Mbembe, Achille. Brutalismo. n-1 edições, p. 97) na sociedade midiática das redes sociais. Nela, “o sujeito é uma série de combinados parciais no meio de um campo refratário a qualquer unificação” (idem, ibidem). No sujeito narcisista encontramos a necessidade recorrente de congregação, com um tênue eu oscilando numa estrutura social vazia, exalando miséria e agonia. O suplemento narcisista ativa uma tela de satisfação, mas não reúne nada além de sua própria auto-inflação.
A selfie bolsonarista é esta inflação, feita de destruição e caos. Sublinha o júbilo de uma presença corporal que encena pela sobreposição do deslumbre egóico, mesclando-se em figuras do horror. Na circunstância intensa da tomada, carrega a cicatriz da singularidade e o sujeito-da-câmera é o terreno baldio da destruição, extensão exterior da selfie-eu.
3.
As três figuras-tipo do bolsonarismo revelam, portanto, funções estruturais da imagem-câmera. Elas compõem formas tecnológicas de individuação no aparato maquínico do ser-aí que chamamos de sujeito-da-câmera. O reflexo é sua abertura ao exterior na instauração da mise-en-scène, ou encenação. A circunstância particular da ‘tomada’ é um “modo de existência”, espécie de dobra técnica enraizada na “teatralidade do ser”. A visibilidade do reflexo na virtualidade de seu processo é o evento ou, em outras palavras, o evento é a “tomada” em sua imanência.
Seu acolhimento compõe um regime específico de individuação tecnológica, tal como o analisa Gilbert Simondon. A visibilidade do contato é própria articulação pelo hiato com o mundo, que está fora. Sua individuação é a correspondência da existência com o maquinismo câmera. Vindo de fora, compõe o que a semiótica chama de secundidade, apontando para o ser-superfície que é afetado no contato pela reação ou relação. O exterior está aí, aberto em sua virtualidade para a instauração, ou existência em processo.
Ainda em seu livro Brutalismo, Mbembe desenvolve um discurso pós-humanista mencionando a entrega das forças vitais à ordem do capital, seguindo demandas brutais de energia e matéria para realização de valor. O corpo físico, nosso corpo humano, torna-se a materialidade crua, a carne do processamento no valor. A maquinação da subjetividade bombeia a força vital da existência para se acumular como matéria através do cálculo linear de uma agência tecnológica.
A imagem-câmera é composta por um destes cálculos que trazem à tona, em nossa sociedade, o predomínio da ordem do algoritmo. Encontramos uma espécie de redução animista do todo social que parece habitar tudo com o mesmo e uno espírito vazio e tem sua experiência reduzida às demandas e conformações do número digital. As imagens-câmeras bolsonaristas nas redes trazem a redução nos modos da exacerbação pela diluição narcisista, pelo transe e pela culpa.
O algoritmo que cobre a matéria liquidifica a dureza do concreto e a brutalidade do trabalho que o transforma. Sua redução comprime o todo num objeto descartável que engloba desmaterializando, pois é dígito, espécie de espírito animado universal. O animismo das coisas torna a acumulação linear e progressiva, traduzindo como número abstrato e espiritual aquilo que da matéria valor são procedimentos de extração bem concretos. A terra arrasada aparece como uma gosma manipulável, inclusive na própria imagem de seu reflexo. A expansão universal dos detritos torna uniforme a proporção da substância espiritual animada que flui, borbulhando em dígitos niveladores.
Os números digitais são o cálculo daquilo que se descarta num mundo de brutalismo. Ou seja, aço, concreto, plástico, cinzas, corpos-compostos sem órgãos, lixo orgânico, detritos químicos, alimentam a substância da matéria disforme, na ordem esmagadora que implementa a razão do capital e sua reprodução. A redução ao desperdício engole tudo, inclusive estruturas biológicas.
As “lógicas de fraturamento e da fissuração”, “do esgotamento e da depleção” compõem a prática da demolição que “com efeito, é uma tarefa gigantesca” (Mbembe, op.cit. p. 14 e 16). O acúmulo da matéria bruta para a “quebra, apedrejamento, pilhagem e esmagamento” (idem, p. 16), serve para acender o que se reduz à “queima do mundo” na fabricação de valor. Lógica que é o motor de uma “necropolítica” (outro conceito de Mbembe), tão bem exemplificada na crueldade dos métodos da intervenção bolsonarista no extermínio em massa e seleção para a vida nas margens durante a pandemia. Espécie de estágio superior da biopolítica foucaultiana, surge agora na extensão horizontal dos “mundos da morte”, interiorizando a manipulação vital como elemento essencial de produção de valor na reprodução do capital.
Neste sentido, a circunstância violenta exterior que habita o sujeito-da-câmera na tomada da imagem não é apenas um algoritmo. Sendo bruta é feita pelo homem na substância exausta de seu trabalho que assola o processo de valor. Reflete a vasta extensão de escombros, de plásticos, de lixo orgânico e concreto, que cerca a circunstância da tomada em sua virtualidade renovada no fora arrasado que se impõe pelo de-dentro.
A ‘apreensão’ pelo maquinismo do sujeito-da-câmera é a circunstância do fraturamento e sua cena é a teatralidade do mundo. A horrível concretude da matéria bruta está no que é exaurido, refletindo a cena do valor universal. O ‘transe’ cooptado transforma o impulso livre na unidade congregada pronta para a captura na rede (social) e a ‘culpa’ serve como retorno da tristeza na compaixão imobilizadora, espécie de garantia para embalar o cooptar no modo de existência da religião.
O “ego narcisista” é a cola que costura a ordem bolsonarista, suturando o consórcio combinatório. Todos eles preparam o modo de ser na extração brutal, espaço físico dos resíduos e da exclusão dos miseráveis cercados para permanecer do lado de lá da fronteira. A substância das imagens é o “pathos” da demolição. É o reino do capital em sua reprodução nesse estágio da “criação destrutiva”. Transe, culpa e narcisismo operam a tecnologia feita para transformar sem sobressaltos o lixo da demolição nas superfícies desoladas da extração de valor. O resíduo é o que nos resta – caminho para sobreviver na substância universal dos detritos.
Contudo, uma fundamentação antropológica poderia ainda liberar o catálogo brutal de sentimentos e afetos servidos pelo valor do algoritmo. A mão mecânica da câmera seria uma das figuras capazes de fazer o gesto tecnológico para fundar a humanidade. É necessário aqui que a contraposição ao número possa habitar o reflexo como a carne habita a transformação do corpo na imanência empírica.
Em outras palavras, perfurar a matéria e estourar o cálculo (do algoritmo e suas redes), liberando a virtualidade do evento como aquilo que reflete no modo de um empirismo radical. O evento liberado no processo é o empenho de sua imanência não como a cenografia de uma construção (a ser revelada ou desconstruída pelo sujeito onisciente), mas enquanto hiato que funda a própria rede de associações. Assim, o sujeito-da-câmera torna-se o martelo da vontade em sua potência, para além da representação.
Ou seja, um agenciamento que não apenas compartilhe como inócua a substância reduzida a dígitos, mas que figure também a negação da humanidade no modo de uma coletividade feita para a reprodução de valor na lógica da fissuração da terra devastada.
*Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Instituto de Artes da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A imagem-câmera (Papirus).
Texto originalmente apresentado no simpósio XXIX Visible Evidence/University of Udine, em setembro de 2023.
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