A esfinge do domingo

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SÁVIO BONES*

No tempo urgente em que se vive, não há espaço para quem remói os erros e abandonos cometidos no passado, por rancores ou idiossincrasias

No último dia 7 de junho, várias capitais brasileiras registraram manifestações contrárias ao Governo Bolsonaro e suas políticas e de combate ao racismo. Houve protestos em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em Belém, houve repressão justificada pela impossibilidade de aglomerações. Foram atos muito importantes e merecem ser analisados na sua devida grandeza para que se possa tirar deles os ensinamentos que o momento exige.

Por todo o País, participaram uma parcela de militantes e ativistas de movimentos democráticos, de caráter popular, e setores de massa avançados. Para além do significado de retirar do bolsonarismo protofascista a exclusividade das ruas, é preciso reconhecer que os atos foram restritos e fragmentados.

Em algumas cidades foram realizados mais de uma atividade, com motivações e eixos diferentes e composição sociais distintas. Contudo, a maioria dos componentes eram jovens proletários ou trabalhadores autônomos empobrecidos – e por isso mesmo, a maior parte era de negros e pardos, e estudantes, mobilizados por entidades com pouca tradição de luta ou vinculação político-partidária, como torcidas organizadas e de produção artístico-cultural.

As manifestações tiveram como centro a questão democrática e trouxeram no seu bojo um viés antirracista – fruto da influência das mobilizações populares amplas detonadas nos EUA a partir da morte de George Floyd e sua combinação com tragédias locais.

Nas convocações, nas mobilizações e durante os atos e passeatas; a questão central da conjuntura, a defesa do regime político democrático constitucional, foi abordada em forma difusa e dúbia.

De um lado, muitos participaram lutando “por democracia” como se o arcabouço democrático-constitucional já não existisse mais e o Brasil vivesse tempos ditatoriais.

Outros tantos, corretamente, adotaram a palavra de ordem em “defesa da democracia”, entendida como a preservação das liberdades democráticas diante das ameaças constantes feitas por Bolsonaro e seus asseclas.

As palavras de ordem antirracistas tiveram o mérito de estarem vinculadas diretamente às camadas populares e à denúncia da violência policial – e, assim, assumiram também uma dimensão democrática.

Mesmo com abordagens dúbias e contraditórias, o número reduzido de militantes e ativistas envolvidos, a ausência de entidades democráticas da sociedade civil na convocação e mobilização, incluindo aquelas de caráter popular como as centrais sindicais e partidos políticos, as manifestações contribuíram para o acúmulo da luta democrática em curso no País. E, por isso mesmo, merecem uma avaliação positiva.

Mas é preciso conter a euforia do desejo. Há quem tenha visto nas manifestações a abertura de um novo ciclo na vida política nacional e uma apoteótica renovação “das esquerdas”, que, a partir de então, estariam purificadas pela distância dos partidos políticos e das entidades populares de massa, agora reduzidas à condição de esquerda tradicional e impotente.

É bom lembrar, que muitos dos que anunciam o último domingo como ponto inaugural de um novo período, saudaram, anteriormente, com a mesma vã ilusão, autoengano ou oportunismo, os desdobramentos advindos das jornadas de junho de 2013.

Por mais corajosas e importantes que tenham sido as manifestações do domingo, elas também deixaram claras as deficiências do campo democrático. Tais empecilhos precisam ser superados, consciente e coletivamente, para que se possa desafiar consequentemente o atual Governo, barrar o avanço da extrema-direita bolsonarista e o derrotar o autogolpe.

A simples ocupação, simbólica ou não, das ruas não é ou será capaz de colocar um fim neste Governo. Fosse assim, com as jornadas de luta do povo chileno, o governo Piñera teria vindo ao chão e Trump estaria com seus dias contatos.

O Governo Bolsonaro não cairá por lutas e mobilizações desordenadas, desarticuladas e desconectadas entre si. Para derrotá-lo, é preciso reunir amplamente as forças democráticas do País para agirem, articulada e permanentemente, em todas as esferas da vida nacional – buscando graus de organicidade cada vez mais elevados.

Para potencializar a “guerra de posição”, é urgente a adoção de objetivos claros a serem alcançados a cada iniciativa – tendo os consensos como pontos de partida, tanto na sociedade política como na sociedade civil.

As mobilizações, e suas convocações, devem ser unitárias e garantir o envolvimento de entidades populares representativas de massa e proporcionar a participação efetiva das grandes maiorias brasileiras.

Ao mesmo tempo, é preciso estar atento para os adoradores do gueto, os semeadores de intrigas e aqueles que se nutrem das divisões e dos interesses internistas.

No tempo urgente em que se vive, não há espaço para quem remói os erros e abandonos cometidos no passado, por rancores ou idiossincrasias. Para quem formula políticas a partir de interesses próprios, particulares ou grupais, em detrimento da construção de um movimento de salvação nacional.

Entre os consensos existentes nos setores democráticos e progressistas, mais ou menos avançados, está o reconhecimento da determinação do atual Governo em destruir o regime político democrático, erguido na Constituição de 1988.

Diante da gravidade do risco, alguns segmentos populares, apartados da vontade nacional, não têm respondido com posições político-concretas à altura de suas próprias avaliações e análises. Diante da intensidade do momento, é preciso uma resposta com a mesma potência.

A resposta mais ofensiva, profunda e duradoura à extrema direita bolsonarista, à marcha autogolpista e à destruição do regime político é uma frente ampla que envolva todas as forças políticas, entidades e indivíduos que se disponham a isolar, barrar, derrotar e reduzir o protofascismo tupiniquim àquilo que ele tem que ser: um momento triste e curto na história brasileira.

Uma ampla unidade democrática é a conclusão mais radical que se tem hoje contra as pretensões bolsonaristas. Afinal, diante da gravidade do momento, todas as forças são indispensáveis.

*Sávio Bones, jornalista, é diretor do Instituto Sergio Miranda (Isem) e do Observatório Sindical Brasileiro Clodesmidt Riani (OSB-CR).

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES