Por BRUNO HUBERMAN
O genocídio em Gaza aprofundou a crise da esquerda sionista. Em Israel, onde estão alijados do poder desde 2001
A expressão “shooting and crying” (atirando e chorando, em inglês) nasceu do remorso que os soldados israelenses expressam pela violência empregada contra os palestinos numa tentativa de se eximir dos seus crimes. Fábio Zuker, em sua resposta ao meu artigo — ambos postados no site A Terra é Redonda —, mantém essa tradição que busca as mais diferentes formas de expiar a responsabilidade sionista pela colonização dos palestinos desde a Nakba.
A Nakba – catástrofe em árabe – foi a expulsão de 750 mil palestinos e a destruição de 500 vilarejos na fundação de Israel, em 1948. Por décadas, os palestinos afirmaram ter sido expulsos por milícias sionistas. A história de Israel, entretanto, dizia que os palestinos fugiram voluntariamente.
Nos anos 1980, a desclassificação de documentos israelenses provaram a narrativa palestina. Como demonstrou Arlene Clemesha em artigo na Folha de S. Paulo, os documentos oficiais comprovam que os palestinos foram vítimas de processo planejado de limpeza étnica. A revelação do seu papel colonial na Nakba provocou uma grave crise de identidade entre os sionistas.
Contudo, historiadores israelenses, como Avi Shalim, buscaram expiar a responsabilidade sionista na Nakba. Ele culpou os palestinos pela sua própria catástrofe por erros da sua liderança. A respeito dessa manipulação, o palestino Nur Masalha escreve: “Os palestinos deveriam compartilhar a culpa pela sua própria Nakba. Claro que Shlaim está certo em apontar a liderança estrategicamente desastrosa do Mufti, Haj al-Husseini. A própria ideia que alemães e judeus tenham uma culpa compartilhada pelo Holocausto judeu seria corretamente considerada uma ofensa profunda. Quando o assunto é […] a limpeza étnica dos palestinos, padrões éticos completamente diferentes são aplicados.”
Como nota Nur Masalha, responsabilizar qualquer judeu pelo Holocausto seria um absurdo. Mas o mesmo padrão ético não é conferido aos palestinos por causa do racismo colonial israelense. Historicamente, os colonizadores representam os colonizados como “bons” e “maus”, demonstra Arun Kundnani, para justificar medidas violentas contra os “maus”.
Se no passado foi preciso inventar que o Haj al-Husseini teria convencido Hitler do extermínio dos judeus, como afirmou o premiê Benjamin Netanyahu, hoje esse “mau” palestino é o Hamas, também representado como nazista por Benjamin Netanyahu.
Diferente das mentiras frágeis da direita, a esquerda sionista age de forma sofisticada. Para eles, as milícias de direita Irgun e Stern foram responsáveis por massacres e expulsões dos palestinos na Nakba. O objetivo é eximir o establishment da esquerda sionista de responsabilidade pela limpeza étnica.
No processo de paz dos anos 1990, a esquerda sionista recriou a narrativa de culpar a extrema direita israelense e os palestinos, agora na figura do Hamas, pelo suposto fracasso da criação do Estado palestino. Assim, foi desresponsabilizado o primeiro-ministro trabalhista Yitzhak Rabin, que afirmou em discurso no parlamento israelense, em 1995, que a “entidade” palestina seria “menos que um Estado”.
Hoje, a esquerda sionista repete a fórmula ao colocar Benjamin Netanyahu e os palestinos, novamente através do Hamas, como “corresponsáveis” pelo genocídio, segundo Fábio Zuker. Em sua tréplica, ele reafirma a importância de “não confundir os palestinos com o Hamas” para imputar as vítimas pelo extermínio em Gaza.
Para Fábio Zuker, a única saída dos palestinos é aguardar pressão internacional para ver quanto de terra Israel estaria disposto a “ceder” pela paz. O autor diminui a descolonização a um ato de generosidade do colonizador. E constrói o “bom” palestino como o moderado que espera Israel e EUA decidirem quando será livre. Assim, apaga a agência do palestino que luta por libertação, o que não é o que defendia Edward Said, famoso por jogar pedras contra Israel.
Anular a agência do colonizado é estratégia paternalista das esquerdas coloniais. Os intelectuais anticoloniais Frantz Fanon e Aimé Césaire romperam com a esquerda francesa por causa do apoio, conferido ao Estado francês, à repressão da libertação nacional argelina sob a justificativa de que a resistência da Frente de Libertação Nacional seria excessivamente violenta.
Tal qual os franceses, a esquerda sionista rejeita o palestino real para justificar a violência colonial. Fábio Zuker se coloca como defensor da causa palestina, mas copia a extrema-direita ao reduzir os palestinos a manipulados pelo Hamas, ignorando que Israel é o carcereiro da prisão a céu aberto chamada Gaza.
Ele afirma ainda que aqueles que apoiam a violência do ataque palestino devem “aceita[r] que esse será o caminho da resposta”. Segundo pesquisa, 61% dos palestinos desejam que o Hamas governe Gaza e Cisjordânia. Isso forçou o Fatah, o “bom” palestino que administra a Cisjordânia a mando de Israel, a fazer um acordo de “unidade nacional” com o Hamas. Todos seriam agora “maus” palestinos que devem ter a sua morte justificada?
Sem dúvida, é preciso condenar os crimes ocorridos no 07 de outubro. Contudo, a representação racista do Hamas como demônio “corresponsável” pelo genocídio serve para desumanizar e dividir os palestinos, justificar o extermínio israelense e eximir a esquerda sionista de responsabilidade.
Crise da esquerda sionista
O genocídio em Gaza aprofundou a crise da esquerda sionista. Em Israel, onde estão alijados do poder desde 2001, os partidos Trabalhista e Meretz viram seus votos cair a cada eleição. Isso forçou a fusão entre os partidos para o próximo pleito.
Além disso, há o fortalecimento global da extrema direita, como visto na filiação de judeus brasileiros ao bolsonarismo; o crescimento de movimentos judaicos antissionistas, que protagonizaram a luta contra o genocídio nos EUA; e o abandono do sionismo pelas esquerdas, como demonstrado no apoio ao corte de relações do Brasil com Israel.
Os textos de Fábio Zuker fazem parte de luta da esquerda sionista por sobrevivência. A sua reivindicação do sionismo como anticolonial e dos judeus como indígenas é uma estratégia da esquerda sionista em todo mundo de criar um mito nativista para enfrentar a esquerda radical e a extrema direita.
O projeto da direita, de anexação da Cisjordânia e apartheid, e da esquerda, de Estado único democrático, ameaçam a visão da esquerda sionista de Israel como Estado democrático de maioria judaica. Cresce a rejeição à resolução de dois estados.
A esquerda sionista deseja salvar a Israel que eles imaginam ter existido até 1967. Para eles, a ocupação de Cisjordânia e Gaza teria desvirtuado o sionismo. A defesa do fim da ocupação busca salvar o que está na raiz da Nakba: a maioria étnica judaica obtida com a expulsão de 750 mil palestinos.
Contudo, mesmo sem a ocupação, Israel não é uma democracia liberal: a minoria palestina é discriminada por mais de 40 leis e sistematicamente expulsa de suas terras; e não há casamento civil, apenas religioso. Etnocracias, aponta o israelense Oren Yiftachel, são, por definição, anti-democráticas.
Para Frantz Fanon, a ideia de retorno na história é reacionária pois parte de representação idealizada do passado. A tentativa de reconstrução resulta na violência contra grupos que não integram essa imagem.
A exclusão dos não-judeus, os palestinos, não é um desvio do sionismo ou algo exclusivo da extrema direita. É orgânico do esforço sionista de restaurar Israel.
A ancestralidade é fundamental como horizonte histórico para construir um futuro sem opressões, não para reconstruir o passado. Um futuro de paz envolve o abandono de projetos mitológicos, seja o da Terra de Israel bíblica, do Estado de Israel pré-1967 ou da Palestina pré-1948. Por um futuro onde todos, do rio ao mar, sejam iguais e livres sob um regime democrático, laico e plurinacional.
*Bruno Huberman é professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autor de A colonização neoliberal de Jerusalém (EDUC). [https://amzn.to/3KtWcUp]
Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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