A ferocidade de Bolsonaro

Imagem: George Grosz
image_pdf

Por TARSO GENRO*

A política democrática é complexa e lenta, o fascismo é direto e rápido. A política democrática é minimamente ética e o fascismo é a máxima urgência da facilidade mentirosa

Um país está realmente dividido entre civilização e barbárie, entre fascismo e o que resta de democracia, entre o respeito às regras do jogo e o uso da exceção, quando o seu Presidente agride e assedia os jornalistas de qualquer corrente ideológica, estimula os seus que o façam e ataca, pessoalmente, altas autoridades do Estado, quando estas cumprem sua missão constitucional. Está dividindo radicalmente o país, quando o máximo dirigente da nação confessa que quer, sim, uma Polícia de Governo, e não de Estado; e que seu objetivo confessado é não legitimar eleições que lhe derrotem e as classes dominantes da nação – mesmo com tudo isso – o mantenham como alternativa de poder.

A Itália que é a origem da renascença e a Alemanha – pátria da filosofia clássica moderna – no século passado derrotaram a inteligência iluminista e fizeram, do lado perverso do progresso e da técnica, a base das políticas necrófilas vindas das lutas intestinas do capital.  A simplificação imposta pelo conceito de pátria – premissa para autorização do mal – e a identificação (simplificada) de comunidades inteiras –políticas e raciais – como portadoras de culturas e sangues “decadentes”, seriam produto de tradições nacionais milenares. E assim a política, disputada entre as nações e as classes, tornou-se “simples”: transformar a ideologia em guerra e os vivos em (“inimigos”) mortos. Com ou sem sepultura.

Quando duas pessoas isoladamente não se suportam e se atacam com fórmulas reais ou imaginárias, sua contenda é inofensiva para o futuro da Humanidade e dos seus nacionais, que aliás ignoram os fundamentos dos seus conflitos. São conflitos “simples” e inofensivos, como os de Borges e Cortázar, que não se suportavam: o primeiro, apoiador dos generais argentinos (disse depois…” ingenuamente”); o segundo, amigo pessoal de Guevara. Ambos os autores, sem muita penetração popular e lidos nas camadas médias superiores e na inteligência acadêmica, deixaram obras complexas para muitas gerações. Suas características: não “simplificaram” sua literatura e sabiam separar – na criação dos seus respectivos estilos – as formas inovadoras dos maneirismos sem talento.

O último ataque de ferocidade de Bolsonaro contra as instituições ocorreu logo após o ministro Barroso ter aceito pedido de antecipação de tutela, proposto por um partido político (Rede) do campo oposicionista, contra a abertura dos portões do país ao vírus da última cepa, proibindo estrangeiros sem comprovante de vacinação entrarem no Brasil. Tal decisão, nitidamente de competência do STF,  suscitou uma reação brutal do Presidente, que não surpreende mais ninguém, pois sua previsibilidade perversa já acostumou os Poderes e uma boa parte do povo a “respeitar” seus impulsos demoníacos, naturalizando-os, como elementos lógicos de uma exceção em processo.

São momentos em que, depois de simular uma compreensão da complexidade da política, Bolsonaro volta ao seu estado normal e “simplifica”: Barroso é um “canalha!”, esbravejou, segundo as redes sociais; e esta “porra” (o STF) “deve ser fechada”. O discurso direto de Bolsonaro, que a sociedade já se acostumou a aceitar, entra direto nas mentes hipnotizadas pela sofreguidão do mercado, que promete recompensas longínquas no futuro, mas esmaga o cotidiano do presente com as pulsões do consumo impossível. Assim, Bolsonaro “organiza”, psicologicamente, uma parte da sociedade direcionando de forma “simples” as suas frustrações e os seus ódios.

A política democrática é complexa e lenta, o fascismo é direto e rápido. A política democrática é minimamente ética e o fascismo é a máxima urgência da facilidade mentirosa. O escritor Cabrera Infante (1929-2005), que jamais foi fascista, foi um intelectual que rompeu com o regime cubano em 1965 e se tornou um detrator da Revolução, a partir do momento que teria percebido que os soviéticos dominaram a Ilha. Ao citá-lo, meu propósito não é discutir suas posições nem os méritos da sua crítica ao regime, mas observar que as simplificações não são uma arma específica do fascismo, mas de qualquer postura “sectária”, que quer dispensar a reflexão sobre fenômenos complexos.

Ao contrário da complexa polifonia do seu grande romance Três Tristes Tigres, no qual ousa reconstruir uma Cuba imaginária – teoricamente anterior à política – onde se somam à nostalgia, a recuperação do passado (pela impressão da memória) e a invenção de “estar em lugar nenhum”, Cabrera simplifica e repete. Faz assim um sucesso enorme em toda a direita mundial, inclusive nos que desejavam (e tinham o direito de desejar) outros rumos para a Revolução: a estratégia da simplificação do que é complexo, dispensa que se estude a natureza dos fenômenos históricos, consola a preguiça mental dos polos sectários e substitui a reflexão pelo ódio: compensa, pois, a falta de empatia pela compaixão neurótica de si mesmo.

Ao contrário da complexa política do Presidente Obama – por exemplo – flexibilizando o bloqueio contra Cuba, que fez mais pelos pobres da Ilha do que qualquer somatório  de simplificações de Cabrera Infante (e de outros detratores “puros” do regime), e ao contrário de um livro – como o de Leonardo Padura (O homem que amava os cachorros) – que fez mais do que qualquer obra de Cabrera Infante pela democracia – as simplificações contra o regime cubano tem colaborado para isolar Cuba, aumentar suas dificuldades e alimentar a pobreza da Ilha.

A unidade que Cabrera conseguiu no seu público, quando falava de Cuba, foi produzida pela repetição e pela linearidade: uma revolução que é vista sem nenhuma compaixão, sem considerar as crianças salvas da fome, sem nenhum respeito pela construção – em Cuba – de uma educação de alta qualidade e pela sua resistência aos valores imperiais. É um “ethos” político indiferente ao que o Império legou a todos os países que constituíam o seu “quintal” no século passado. Cabrera apenas reservou para Cuba falar que “em Cuba eles socializaram a pobreza”: as meias verdades e as meias mentiras podem reorganizar a mediocridade com a simplificação. Afinal, não é ali também que, contrariamente ao que ocorre nos países capitalistas que dominam o mundo, as crianças se alimentam e jamais dormem nas ruas?

Não esqueçamos que as simplificações que Bolsonaro faz com a luta política têm uma enorme tradição na história dos totalitarismos, dos fascismos das ditaduras. Respondê-las com uma estratégia de poder não é somente trocar impropérios, mas é sobretudo recriar uma nova vida política e moral – mesmo antes de chegarmos ao poder – para governar solapando as bases aparentemente simples da dominação feita pela voz do Líder, trocando-a pela voz coletiva dos mais amplos setores do povo e da inteligência democrática da nação. Todos os que não querem se curvar perante a besta, penso, devemos pensar nas eleições de 2022 como um ensaio geral deste revertério, cuja peça principal será um programa de combate à fome, pelo emprego, de afirmação da soberania nacional e de defesa da nossa integridade ambiental. Para começar!

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
Estoicismo e mindfulness
16 Dec 2025 Por PAULO VITOR GROSSI: Considerações sobre técnicas mentais para a sobrevivência humana no século XXI
2
Por uma escola com exigência intelectual
19 Dec 2025 Por JEAN-PIERRE TERRAIL: Prefácio do autor
3
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
4
Escalas da liberdade: Hegel e a questão social do nosso tempo
18 Dec 2025 Por TERRY PINKARD: Prefácio ao livro recém-lançado de Emmanuel Nakamura
5
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
6
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
7
A contradição entre o discurso nacionalista e a prática neoliberal do governo Lula
13 Dec 2025 Por VICTOR RIBEIRO DA SILVA: A escolha política por um neoliberalismo de "rosto humano", visível no Arcabouço Fiscal, no leilão do petróleo equatorial e na hesitação com a Venezuela e a Palestina, expõe uma soberania apenas discursiva, que evita confrontar os pilares do poder
8
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
9
Devastação materna – um conceito psicanalítico
16 Dec 2025 Por GIOVANNI ALVES: Comentário sobre o livro recém-lançado de Ana Celeste Casulo
10
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
11
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
12
Amoreira e outros poemas
15 Dec 2025 Por RAQUEL NAVEIRA: Poemas
13
A dança de guerra do Ocidente
17 Dec 2025 Por GILBERTO LOPES: A dança de guerra baseada na expansão da OTAN e na demonização da Rússia ignora os avisos históricos, arriscando uma conflagração final em nome de um mundo unipolar que já se mostra falido
14
Manuela D’Ávila no PSol
20 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: A mudança de Manuela para o PSol sinaliza um projeto que visa derrotar a extrema-direita e construir uma alternativa de esquerda para além da conciliação de classes do governo Lula
15
Marx, automação e a busca pelo tempo livre emancipatório
13 Dec 2025 Por THIAGO TURIBIO: O percurso do pensamento de Marx, dos Grundrisse a O Capital, delineia a automação como condição material para o tempo livre, mas a realidade do capitalismo converte a máquina em arma de guerra contra a classe trabalhadora
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES