A filosofia entre a matemática e a poesia

Marina Gusmão, Hello Stranger, Ilustração digital
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Por ALAIN BADIOU*

A filosofia é uma meditação sobre a existência das verdades que resultam do evento em uma dada situação do ser

Nós começaremos com algumas considerações sobre a filosofia enquanto tal. Vocês sabem que Sócrates foi condenado à morte porque foi acusado de “corromper a juventude”. Temos de assumir esta condenação. Sim, a filosofia corrompe a juventude e, em última análise, corrompe a todos. A filosofia organiza rupturas, uma abertura para uma vida nova, uma vida verdadeira como uma oposta à vida falaciosa que nos oferece hoje em dia a marcha capitalista e o culto ao dinheiro.

A fim de esclarecer as questões e os meios da filosofia nós nos concentraremos nas “condições” da filosofia, as quais são definidas pela relação entre a filosofia e as quatro diferentes formas de verdades, as verdades científicas, artísticas, amorosas e políticas. Nós examinaremos mais precisamente como a filosofia, com a complexidade da linguagem filosófica, fica presa entre a construção rigorosa dos argumentos e a sedução da linguagem.

Tese 1. As demonstrações matemáticas e a filosofia racional nasceram ao mesmo tempo no mesmo lugar, nomeadamente na Grécia no século V a.c. A filosofia surgiu na Grécia condicionada às matemáticas, mas também à linguagem da poesia. A partir de então, sempre houve uma tensão entre sua tendência demonstrativa ou matemática e sua tendência sedutora e poética. Vocês têm, então, Spinoza de um lado, Nietzsche do outro.

Tese 2. Essa tensão pode assumir a forma de um conflito ou de uma contradição. Desta forma, Platão fala de uma “guerra muito antiga entre a poesia e filosofia”. Por sua vez, ele atacou violentamente a poesia, embora muitas vezes declarasse seu amor por ela. Este conflito é, portanto, menos objetivo (no sentido da diferença entre dois materiais de linguagem) do que subjetivo. A poesia e a filosofia, em ambos os casos, tentam produzir, por um único meio de linguagem, dois tipos distintos de conversão dos ouvintes. A ambição da filosofia é a de substituir o discurso autoritário por um discurso argumentativo. Pois um enunciado não é verdadeiro porque é dito por um sacerdote, rei, profeta ou deus. É verdadeiro porque há prova de sua verdade. Assim, qualquer pretensa verdade deve ser submetida à discussão geral e o sujeito do enunciado não pode ser o fiador da verdade de um enunciado. São os enunciados já garantidos como verdadeiros que são prova da veracidade de um novo enunciado. A poesia se situa mais do lado da sedução, da transformação subjetiva, que é produzida pela força e pela beleza da linguagem como tal.

Tese 3. A dificuldade é precisamente que a filosofia, antes de Sócrates, aparece em uma linguagem ainda poética, largamente inspirada nos grandes poemas de Homero. Esta foi a época de Empédocles ou Anaximandro. A transição ocorre na obra de Parmênides: ele também escreveu um grande poema. Mas, na verdade, ele propõe uma prova, a prova lógica de que só o ser é, colocando assim a filosofia entre a poesia e a matemática. Para provar que só o ser é e que não há mais nada, ele usa o método indireto do raciocínio pelo absurdo. De fato, ele tenta demonstrar que o não-ser não pode existir e que, portanto, apenas o ser existe. O fato de que o não-ser não existe parece óbvio, mas na verdade devemos entender que para Parmênides “ser” e “existir” são duas coisas diferentes.

Em todo o caso, a partir de Parmênides a filosofia se situa entre a poesia e a matemática e Platão compromete-se a continuar esta forma demonstrativa, sem sacrificar nada em relação à beleza da linguagem. Na verdade, o gênero de poesia que Platão critica não é a poesia em geral, mas a poesia que ele chama de “mimética”, ou seja, aquilo que é colocado sob a pressão de um modelo natural, cujo objetivo não é criar um novo conhecimento, mas um novo afeto. Para Platão os modelos desta “má” poesia são os épicos de uma parte e, por outro lado, sobretudo o teatro trágico. Trata-se menos de uma questão de linguagem do que uma questão dos efeitos subjetivos produzidos pela poesia, pois a sedução sem controle permite que espectadores e ouvintes se identifiquem com modelos de pensamentos, sentimentos e ações, algo inaceitável para o filósofo. Nós devemos, de modo definitivo, admitir que Platão não se opõe à poesia como tal. Ele aceita a poesia desde que não seja mimética. Seu argumento fundamental é que a filosofia é a criação de algo e não a imitação de algo.

Finalmente, depois de Parmênides, a linguagem da filosofia se situará no meio do caminho entre a linguagem da poesia e a linguagem da matemática. Pode-se dizer que é uma linguagem de sedução, que provoca uma transferência no locutor, e uma linguagem de demonstração, que reduz o ouvinte ao silêncio.

Tese 4. O próprio Platão constantemente fazia uso poético da linguagem, particularmente sob a forma de “mitos”, que são tipos de fábulas que produzem e modificam conceitos inventando uma abordagem fictícia de seu nascimento e de sua história.

Diferentemente das histórias poéticas, das fábulas, resumidamente, da linguagem fictícia, a força da matemática consiste em se apoiar nos símbolos, nas letras, nas figuras ou fórmulas ao invés das palavras, das imagens ou das frases.

Aqui está um exemplo de linguagem matemática:

[(∀y) (y ∉ x)] ↔ (x = ∅)

Esta fórmula significa: “Afirmar que, para todo conjunto y, não é verdade que y pertence à x é equivalente a dizer que x é um conjunto vazio”. Nós podemos dizer que a matemática prova o poder da letra, das puras letras e símbolos, da pura demonstração ou simbolização, enquanto a poesia é o poder da linguagem, do discurso, de suas imagens e de seus desenvolvimentos.

Tese 5. Nunca houve filosofia escrita inteiramente em linguagem matemática, porque a filosofia, mesmo demonstrativa, nunca atingiu este nível de formalização. O sonho ou a ideia de uma filosofia puramente matemática, que seria escrita unicamente em letras e símbolos e onde todas as sentenças seriam teoremas, é impossível. O caso extremo é representado por Spinoza, que escreveu seu famoso livro Ética na forma do grande tratado de Euclides. Por outro lado, existem obras filosóficas que são apresentadas explicitamente de forma poética, como em De rerum natura de Lucrécio ou certas partes de Assim falou Zaratustra de Nietzsche.

Podemos concluir que a filosofia não admite o poder absoluto da letra. Ela precisa do significado das palavras. Certamente ela pode tentar ser demonstrativa, mas ela não pode ser inteiramente formalizada. É por isso que a filosofia se situa entre a matemática e a poesia.

Tese 6. A matemática, como ontologia formal de multiplicidades, é uma ciência independente, que constitui um campo fechado. Já a poesia, enquanto tratamento extraordinário da linguagem comum, pode surgir de qualquer texto.

Além disso, a matemática é escrita em uma única língua, enquanto a poesia é escrita em muitas línguas, o que levanta a questão de saber como a universalidade da filosofia é possível. Na verdade, desde o início os filósofos afirmaram que o que pensavam ou escreviam tinha valor universal. Nesse sentido, um filósofo oferece algo universal para além das línguas nacionais ou através das diferenças entre as línguas. E a matemática poderia representar precisamente uma linguagem universal de seu gênero, uma vez que é baseada no poder da letra; agora vimos que para os escritos filosóficos a letra não é suficiente. É um problema difícil porque, se a filosofia for fortemente escrita em uma língua nacional, sua universalidade será comprovada ou verificada pelas traduções. Devemos, portanto, supor que, no caso da filosofia, há traduções que não apresentam transformações ou modificações reais de seu significado universal. Este ponto abre a delicada questão da relação entre filosofia e tradução.

Tese 7. A filosofia pode e deve perguntar por que a matemática, que é formalizada, é usada em todas as ciências naturais, especialmente na física, que lida com objetos concretos e as leis da natureza. Responderei que isto vem do fato de que a matemática é a ciência de tudo o que existe. Não do que é isto ou aquilo, mas do que é.

Do ponto de vista da filosofia, a matemática constitui o aparato demonstrativo de todo pensamento do ser, do pensamento do ser enquanto tal, do que é como é (não é uma árvore nem uma pessoa). Isto começa com Parmênides, para quem o ser é ser, porque o não ser não é. Vista sob o mesmo ponto de vista, a poesia constitui, no interior da linguagem, a capacidade de apreensão do evento*. Nesse sentido, minha própria filosofia está em relação à poesia, não do lado do ser, do que é, mas do lado do evento, do que acontece e que não é imediatamente identificável como o que é. Pense, por exemplo, nas criações artísticas (que são criações de algo que ainda não existe) ou no amor (que é o que acontece ou não), ou ainda nas invenções científicas que perturbam todo o conhecimento anterior.

Tese 8. A característica comum de tudo é que tudo é múltiplo. Nada na natureza é em si absolutamente um. Novamente, do ponto de vista da matemática, “tudo o que existe é uma forma de multiplicidade”. Nada na natureza é absolutamente um, esta garrafa de água, por exemplo, é composta de várias coisas. Ser é ser múltiplo e a matemática é a ciência do múltiplo. A questão da matemática na filosofia é, portanto, a questão do múltiplo. Em outras palavras, pensar no múltiplo em sua pureza é um objeto para a matemática, enquanto pensar no múltiplo em filosofia às vezes é complexo, às vezes simples (é por isso que a matemática pode ser útil para a filosofia). Talvez Deus seja a única exceção. Se ele existe, Deus é absolutamente Um. Daí a importância de Deus na filosofia: a metafísica trata do Um absoluto na forma de Deus, o grande Um, em oposição a nós porque somos multiplicidades. Tudo o que é natural, ou material, é composto de elementos que também são naturais ou materiais.

Isso nos coloca diante de uma escolha fundamental entre uma ontologia do Um e uma ontologia do múltiplo. Pense, por exemplo, na história da filosofia e nas muitas tentativas de demonstrar a existência de Deus (por exemplo, em Descartes ou Leibniz). Em seu sentido filosófico, Deus não surge do afeto, da crença, ele está relacionado a uma demonstração a respeito da necessidade do grande Um-infinito. O lado matemático é importante, na medida em que se trata do conflito entre uma prova racional, do ponto de vista da filosofia, da existência do Um, por um lado, e uma ontologia matemática que trata de todas as formas possíveis do múltiplo, por outro lado.

A poesia, por seu lado, atesta o poder da atividade intelectual de forçar a linguagem a dizer o que é impossível dizer. Do ponto de vista da filosofia, a existência desse poder permite dizer que as verdades são universais, porque se fundam em eventos. O que significa que elas vão além das leis ontológicas dos mundos em que aparecem.

A poesia é, para mim, a possibilidade de pensar o que acontece: o puro evento. Um evento é necessariamente o que acontece e depois desaparece. Por isso penso que é necessário passar da visão clássica do Um (Deus como o grande Um) ao pensamento do múltiplo puro e à dificuldade de pensar o novo. A história da filosofia torna-se então a história da mudança que ela propõe das questões fundamentais. A velha metafísica trata em geral do que é, em relação ao que não é, ou do Um contra o múltiplo, ou ainda do infinito de Deus separado da finitude do sensível. Hoje, acho que uma questão fundamental diz respeito à lacuna entre o ser (o que é) e o evento (o que acontece). Em qualquer caso, como sempre acontece na filosofia, minha escolha pessoal. A filosofia sempre se impõe para realizar um programa cujo ponto de partida é uma rede de perguntas que ela se faz.

Tese 9. Existem duas ciências possíveis do ser. Se você pensa que Deus existe, tem que haver uma ciência das formas do Um, que se chama teologia. Do contrário, só existe a ciência de todas as formas possíveis do múltiplo. É a ontologia.

Escapando de todas as formas de ontologia, cada poema é o nome de um evento. Aqui está um exemplo que vem do poeta francês Paul Valéry. O título do poema é Ao plátano. O poema é a história de uma tentativa de encerrar a grande árvore na imagem de um objeto da paisagem e do sítio, portanto, não para atribuí-la a um evento, mas à força silenciosa do mundo tal como ele é [1]:

Te inclinas, grande Plátano, e surges despido,
Como um jovem da Cíntia,
Alvos, mas tens o candor preso e o pé retido
Pela força do sítio

Mas, no final do poema, você tem a revolta da árvore contra essa objetivação. A árvore não deseja ser um prisioneiro esplêndido, mas parte de um evento, de um evento violento, de uma tempestade. E ela responde: “Não, não aceito ser apenas uma peça em uma estrutura”.

– Diz a árvore: Não! Diz pelo resplandecer
De sua cabeça altiva
Que a tempestade trata como todo ser
Tal como faz com a relva!

Tese 10. A ontologia só é totalmente pensável na linguagem e na lógica da matemática. Essa ciência pode fazer uso do poder da letra porque as letras não se preocupam com o significado do que é ou com a lei do que é. Sua única aposta é servir para observar, pensar e classificar as formas possíveis do que é, e as relações possíveis entre essas formas. A matemática pode ser literal porque nunca se preocupa com o que é singular, mas apenas com a universalidade das formas que as singularidades assumem. A filosofia, que pensa as verdades como uma mistura de ser e evento, é uma espécie de poetização da matemática.

Tese 11. A matemática pode ser usada para formular as leis da natureza porque todos os objetos singulares da natureza são também e principalmente partes do que é como é. Qualquer objeto que existe está na forma possível de uma multiplicidade. É por isso que a matemática pensa e formula a base ontológica da física. No século 19 e durante grande parte do século 20, o reinado do positivismo e consequentemente da ciência de um lado, da história e consequentemente da política de outro, teve o efeito de criar uma era de poetas que vai de Hölderlin a Paul Celan e inclui Rimbaud, Mallarmé, Trakl, Mandelstam, Pessoa, Stevens, Vallejo e alguns outros. Ao longo deste período, a poesia assumiu as tarefas que costumam ser da filosofia, em particular: pensar sobre tudo o que é imprevisível, impossível, o funcionamento do acaso e as novas figuras do heroísmo.

Tese 12. A filosofia deve estar situada além da teologia, que é a ciência religiosa das formas do Um, mas também além da ontologia pura, que é a ciência secular das formas do múltiplo (a matemática). A filosofia começa quando se trata de pensar não só o que é, mas o ser do que não é e o efeito do que não é sobre o que é. A filosofia deve, portanto, pensar sobre o evento e esclarecer a importância do que acontece e desaparece. Porque tudo isso não é redutível à forma da multiplicidade. Um evento é um evento em um contexto concreto e, portanto, poético por natureza. É por isso que a filosofia deve saber o que está acontecendo no campo da poesia. Daí também a relação muito estreita entre poesia e amor, que é o principal exemplo do que pode acontecer de universal e de criador na vida humana.

Nos últimos anos do século XX, o fracasso do segundo período do comunismo (o dos Estados socialistas) e a crise da ciência (deixada aos interesses comerciais) restauraram a independência da filosofia e puseram fim à era dos poetas.

Tese 13. A filosofia deve conhecer a ontologia matemática com precisão. É seu dever compreender o pensamento de todas as formas possíveis do múltiplo e, especialmente, as teorias matemáticas modernas profundas sobre as formas do infinito. No entanto, a filosofia é o pensamento não apenas do que é, mas também do que acontece com o que é. Não só do ser, mas também de evento. Não apenas formas do possível, mas a conformação daquilo que, em determinado momento, é considerado impossível. É por isso que, hoje mais do que nunca, não há filosofia digna desse nome sem uma meditação dos poetas, em particular dos poetas prodigiosos da era dos poetas. A filosofia é uma meditação sobre a existência das verdades que resultam do evento em uma dada situação do ser. A verdade é algo novo, porque é sempre uma construção composta, por um lado, de múltiplos que pertencem a uma situação, e por outro lado, de um evento que ocorre à situação. Esta relação é crucial: o resultado do evento é a realização, no interior do ser, do processo que faz surgir uma nova verdade, a criação da verdade no quadro das suas quatro condições (ciência, arte, amor e política). A filosofia está, portanto, situada entre a poesia (o que acontece, o evento) e a matemática (o que é, o ser).

*Alain Badiou é professor aposentado da Universidade de Paris-VIII. Autor, entre outros livros, de A aventura da filosofia francesa no século XX (Autêntica).

Tradução: Diego Fagundes para o site Lavrapalavra.

Notas


* Nota do tradutor: preferimos traduzir “evénemént”, um dos conceitos fundamentais do autor, para “evento”, mas há publicações em português que optam por “acontecimento”.

[1]: Excertos extraídos do poema Ao plátano, traduzido para o português por Roberto Zular e Álvaro Faleiros para a edição bilíngue de Feitiços [Charmes] lançada pela editora luminuras em 2020.

As duas estrofes – a primeira e a última (décima oitava) — no original em francês:

Tu penches, grand Platane, et te proposes nu,
Blanc comme un jeune Scythe,
Mais ta candeur est prise, et ton pied retenu
Par la force du site.
[…]

— Non, dit l’arbre. Il dit : Non ! par l’étincellement
De sa tête superbe,
Que la tempête traite universellement
Comme elle fait une herbe!

 

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