Por RUBEN BAUER NAVEIRA*
A guerra é na Ucrânia, mas o real conflito é entre norte-americanos e russos
Que fique bem claro: a Ucrânia não é o centro do problema. O centro do problema é o conflito entre os Estados Unidos (de forma ampliada, o Ocidente) e a Rússia (de forma ampliada, Rússia e China). Os Estados Unidos defendem a sua hegemonia sobre o planeta (mundo unipolar), enquanto que a Rússia (e a China) defendem as suas soberanias (mundo multipolar).
Estados Unidos e Rússia já estão em guerra há muito tempo. Guerra não-declarada, evidentemente, porque no dia em que Estados unidos e Rússia entrarem em guerra direta esta escalará para guerra nuclear – que russos e americanos sabem que destruiria a ambos (e ao resto do mundo).
O mais recente round desta guerra acaba de ser vencido pelos americanos, ao obrigarem a Rússia a invadir a Ucrânia. Recapitulemos: (1) a Rússia havia dado (em dezembro) um ultimato aos Estados Unidos para que não apenas fizessem cessar a expansão da OTAN em direção às fronteiras russas como retirassem as tropas e bases de mísseis levadas para os países do leste europeu; o Ocidente respondeu ao ultimato russo reafirmando a liberdade de países como a Ucrânia e a Geórgia de resolverem entrar também para a OTAN; (2) ao passo que alardeava uma iminente invasão russa da Ucrânia, o Ocidente intensificou o envio de armamento de ponta aos ucranianos; (3) a Ucrânia, pressionada pelo Ocidente a invadir as repúblicas separatistas do Donbass, concentrou maciçamente tropas no front com aquelas repúblicas e passou a bombardear suas áreas residenciais civis com artilharia pesada, de uso proibido pelos acordos de Minsk (o que levou a uma evacuação de civis do Donbass para território russo); (4) no campo diplomático passou-se a ofender sem cerimônia, como na reação debochada do chanceler alemão Olaf Scholz à alegação russa de genocídio por parte da Ucrânia da sua população de russos étnicos (logo a Alemanha, que deveria ser o último lugar do planeta a desqualificar uma alegação de genocídio); (5) a gota d’água foi a declaração do presidente Zelensky da Ucrânia de que o país deveria buscar desenvolver armas nucleares (contando a Ucrânia com várias usinas nucleares, ou seja, detendo ela expertise sobre o ciclo de enriquecimento do urânio).
O objetivo dos americanos é a derrubada do governo russo para o desmantelamento das suas poderosas Forças Armadas e em especial de seu arsenal nuclear, a apropriação dos seus incomensuráveis recursos naturais, e o retalhamento do seu vasto território. Nesse sentido, a invasão russa da Ucrânia, “coberta” pela mídia ocidental por um modo difamatório sem precedentes em escala, orquestração e virulência, veio a calhar como justificação para a imposição de sanções também sem precedentes, que na prática correspondem a um verdadeiro banimento da Rússia do mundo econômico e financeiro ocidental.
Os americanos, conscientes que uma confrontação militar direta lhes seria desvantajosa (afora o risco de guerra nuclear), escolheram combater nos campos informacional (midiático) e econômico. O terremoto que já se instalou na economia russa visa, obviamente, à desestabilização do governo de Vladimir Putin, ao passo que o risco, assumido pelos países ocidentais, de que as sanções levem a repercussões danosas sobre as suas próprias economias, bem como a dimensão da campanha de demonização da Rússia, de Putin e do povo russo em geral, dão testemunho do quanto os americanos partiram para um “tudo ou nada” contra os russos.
No campo informacional/midiático, os russos já perderam a disputa pela narrativa (externamente; se perderem também internamente, será o seu fim). No campo econômico, eles foram postos em larga desvantagem (embora haja ainda muito jogo pela frente). Resta aos russos combaterem e buscarem vencer no campo que eles escolheram porque foi o que lhes restou, o militar.
Ainda que os americanos tenham vencido o último round impelindo os russos a uma guerra que eles prefeririam ter evitado (muito embora tenham se preparado para ela), o novo round é esta guerra em si, de desfecho em aberto. Se os russos alcançarem os seus objetivos (capitulação da Ucrânia em prazo não muito longo; desnazificação do país, com captura, julgamento e condenação dos neonazistas responsáveis por atrocidades; instalação de um novo governo no mínimo neutro, comprometido com a desmilitarização, e reconhecedor da Crimeia como território russo; e retorno das tropas russas) eles se cacifarão enormemente para voltar a exigir do Ocidente a saída das tropas da OTAN dos países do leste europeu. Porém, se a guerra se estender e se converter em atoleiro para os russos, o desgaste interno se somará ao desgaste devido ao bloqueio econômico, e o governo dificilmente se manterá. Para os russos, tanto quanto para os americanos, agora é tudo ou nada.
Os russos declaram não terem ambições territoriais na Ucrânia, mas é certo que não mais a tolerarão como um país inimigo. No dia da invasão (24) Vladimir Putin declarou que: “Deixe-me lembrar-lhes que ninguém perguntou às pessoas que vivem nos territórios da atual Ucrânia de que modo elas preferiam conceber as suas vidas quando a União Soviética foi criada, ou após a Segunda Guerra Mundial. Na base do nosso agir está a liberdade, a liberdade de escolha para todos ao conceber o seu futuro e o futuro dos seus filhos. Nós acreditamos que todos os povos que moram na Ucrânia de hoje, todos os que assim queiram, possam lançar mão desse direito de exercer a sua livre escolha. Nesse sentido eu gostaria de me dirigir aos cidadãos da Ucrânia. Em 2014, a Rússia se viu obrigada a defender o povo da Crimeia e de Sebastopol daqueles a quem vocês chamam “nazis”. O povo da Crimeia e de Sebastopol escolheu a favor de ficar com a sua pátria histórica, a Rússia. E nós os apoiamos. Como eu falei, não poderíamos ter agido de outra forma”.
É claro que o cenário é mutável, mas isso que Putin disse indica uma partição da Ucrânia em dois países – se a Rússia vencer esta guerra.
No mundo ocidental, será impossível saber-se para onde apontam as direções da guerra, até que as mesmas estejam fato consumado. O noticiário, convertido em instrumento para lavagem cerebral das massas, é inútil. Chega a ser razoável supor-se que, quanto mais exageradas as narrativas (“milhares de soldados russos mortos”; “resistência ucraniana paralisa o avanço russo”; “russos atacam a população civil”), então maior a probabilidade de estar ocorrendo exatamente o oposto nos campos de batalha. Ademais, aquele que esteja vencendo a guerra não distribui armas para todo e qualquer civil que se disponha a empunhá-las (algo duplamente criminoso, porque faz desses civis alvos militares legítimos, e porque leva as cidades à anomia, com explosão de saques, assaltos e assassinatos).
A extrema virulência do ataque econômico ocidental à Rússia não tem como ser tomada senão como uma declaração de guerra, o que empurrou as relações com o Ocidente para além do ponto de não-retorno (o estabelecimento de sanções pessoais contra Putin, algo inédito – não se sanciona pessoalmente o chefe de um Estado – representa um nível de ofensa que na prática obriga os russos ao rompimento das relações diplomáticas). Em se saindo vitoriosos na Ucrânia, os russos estarão cientes que a continuidade do enfrentamento terá que se dar por meio de novas ações militares.
Enfim, trata-se de guerra (mesmo que ainda não direta) entre Estados Unidos e Rússia, a qual admite apenas um dentre três desfechos possíveis: colapso do Ocidente, colapso da Rússia (e, na sequência, da China) ou guerra nuclear (e nada garante que uma das duas primeiras não leve à terceira).
*Ruben Bauer Naveira é ativista político. Autor do livro Uma nova utopia para o Brasil: três guias para sairmos do caos [disponível em http://www.brasilutopia.com.br].