Lúcio Kowarick (1938-2020)

Imagem: Stela Grespan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EDUARDO MARQUES & ADRIAN GURZA LAVALLE*

Comentário sobre a obra de um dos pioneiros da sociologia urbana brasileira

As cidades brasileiras perderam no dia 24 de agosto Lúcio Kowarick, um dos mais argutos pioneiros da sociologia urbana brasileira. Eu, Eduardo, guardo ainda comigo o exemplar, surrado e colado, de A espoliação urbana comprado em sebo na Rua da Carioca no Rio de Janeiro em 1989. Assim como eu, muitos pesquisadores e ativistas do urbano fomos profundamente impactados por ele.

Seu olhar sobre a cidade foi informado por uma compreensão ampla dos processos sociais de produção das desigualdades e da posição dos grupos subalternos nessa produção, como mostrado no clássico da sociologia, Trabalho e Vadiagem, publicado dois anos antes (1987). Para aqueles que, como eu, Adrian, tiveram a fortuna de ser seus alunos e/ou orientandos, esse olhar cuidadoso para os processos lidos à busca das chaves explicativas da desigualdade foi profundamente formativo.

Lúcio entrou na Universidade de São Paulo em 1970 e se aposentou no Departamento de Ciência Política da USP em 2008, que por duas vezes chefiou. Doutorou-se em 1973 com trabalho marcado por destacado rigor conceitual pelos cânones da época, publicado posteriormente como o livro Capitalismo e marginalidade na América Latina, em 1975. Essas primeiras explorações sobre o caráter periférico de nosso capitalismo desdobraram-se em uma mirada arguta sobre a nossa formação social e nossos padrões de urbanização.

Essa contribuição já estava muito presente no histórico São Paulo 1975: crescimento e pobreza, produzido coletivamente no Cebrap. O livro contou com financiamento da Arquidiocese metropolitana de São Paulo e teve desdobramentos não apenas intelectuais como políticos, gerando inclusive um atentado à bomba na sede do Centro.

A contribuição autoral de Lúcio sobre o urbano, entretanto, se evidenciou de modo mais pleno em A Espoliação Urbana de 1979. Em nossa opinião, é individualmente o mais importante livro do início de nossos estudos urbanos, conectando com sutil elegância explicativa formas de produção do espaço periférico a padrões de acumulação, sobre o onipresente pano de fundo do regime militar.

Ao longo das décadas que se seguiram, o campo do urbano foi fortemente influenciado por suas contribuições sobre pobreza, precariedade habitacional, movimentos socias urbanos, periferias, e as vulneráveis vidas de seus moradores, elaboradas tanto no DCP da USP quanto no Cedec. De Conflitos Sociais e a Cidade a Viver em Risco, passando por Escritos Urbanos, sua obra se disseminou pela América Latina e influenciou gerações de analistas e ativistas das cidades.

Seu olhar foi sempre permeado por delicada sensibilidade sociológica associada a profundas e sinceras preocupações com as (duráveis) desigualdades que marcam nossa sociedade e nossos espaços, como mostrado mais uma vez pelo seu interesse no estudo da sub-cidadania nos últimos anos de sua carreira como pesquisador. Pensamento essencial nos dias que correm, e que fica conosco através de seus muitos escritos urbanos.

*Eduardo Marques e Adrian Gurza Lavalle são professores do Departamento de Ciência Política da USP.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES