A história me absolverá

Fernand Léger (1881–1955), A vila, 1914.
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Por SILVANE ORTIZ*

A transformação de um indivíduo e o despertar de um homem novo

O maior líder que a América já viu. Um déspota sanguinário. O revolucionário que partiu da consciência à práxis. São muitas as maneiras que o mundo costuma inferir ao se referir ao nome de Fidel Castro Ruz. O que dificilmente acontece é a passividade, como reação à sua figura. Em processo penal decorrido de sua prisão em 1953, quando orquestrou levante contra o governo (de fato) de Fulgêncio Batista (1952-1959), Fidel cunhou a frase que encerra seu discurso de defesa e que pode bem definir a existência desse homem, tão relevante para a história do século XX.

Então um jovem advogado de família de classe média, Fidel, exasperado por um governo ditatorial e subserviente, decide que partir para a ação prática, pegando em armas, seria a única maneira de fazer um enfrentamento real, visto o cerceamento das vias democráticas. Nasce o ideal revolucionário que, poucos anos mais tarde, viria a consumar a República Socialista mais longeva da história do Ocidente.

Em sua explanação, Fidel transparece todo o brilhantismo e paixão que marcam seus discursos durante toda a sua vida. Dono de uma retórica poderosa, Castro dá cores vivas ao soturno passado, e presente, nos quais submergia o futuro da ilha. Com a tomada do poder por um grupo militar, liderado por Batista, Cuba passa, de fato, de protetorado (Emenda Platt, 1903) à neocolônia norte-americana. Sob o jugo imperialista a desigualdade dispara. A pobreza e o desalento tomam conta da população que vê todas as conquistas de sua histórica luta contra o poder colonial espanhol, esvaírem-se. Castro conta, em dado momento que, quando da assunção do governo golpista ele, cidadão conhecedor e ainda crente do sistema judicial, impetra ação contra Batista que, no decurso de seu golpe, havia cometido diversos crimes contra a Constituição da República. Qual não foi sua surpresa ao perceber que um judiciário prostrado ante um governo usurpador não poderia, contra esse, julgar em favor dos ditames constitucionais. A Constituição achincalhada, subvertida, pisoteada acaba, em ato validado pelo Poder Judicial (Tribunal de Garantias Constitucionais!), por ser subordinada à força de decretos. A carta maior do Estado torna-se hierarquicamente inferiorizada ante os decretos do ditador Fulgêncio, em uma óbvia arbitrariedade ilegal. Vencido pelos fatos, Fidel abre mão dos meios garantistas, já que deles não emanava nenhuma expectativa de justiça, e parte para a execução de um direito garantido pela Constituição Republicana de 1940, o direito à resistência (artigo 40).

Art. 40-Lasdisposicioneslegales, gubernativas o de cualquierotroorden que regulenelejercicio de losderechos que estaConstitucióngarantiza, serán nulas si losdisminuyen, restringen o adulteran.

Es legítima laresistenciaadecuada para laprotección de losderechosindividualesgarantizados anteriormente.

La acción para perseguir lasinfracciones de este Título es pública, sincauciónniformalidad de ningunaespecie y por simple denuncia. (Cuba Constitución Política de 1940)2

Ainda que pautado para restituição de um estado, ora solapado, o ato de resistir traz em si o germe da revolução. Da dor vivida, compadecida, nasce a revolta, potência de luta. E essa luta só ganha corpo, e as ruas, se ela advir da esperança. Sendo a esperança âncora e motor dos sonhos e da ação, seria impossível encampar a luta, mantendo essa, como mera batalha pela restauração de tempos idos. Dela, inevitavelmente, emanarão demandas superiores. De uma real revolução, o aspecto dialético (de pés no chão[i]) é o resultado lógico. A suprassunção do estado constitutivo da sociedade em algo transcendente, metamorfoseado, é o salto desejado quando iniciado um processo maior que um simples reformismo. Nisso, com o intuito de defender seu país, e povo, da danação ditatorial, Fidel acaba por romper o torpor popular e cria as bases, internas e externas, para um pensamento novo. Das amarras mais (in)justas, irrompe o movimento mais potente. Somente a esperança de vida em plenitude e a busca da felicidade real, podem justificar a renúncia ao gozo do presente.

Quando conta dos planos do levante do 26 de julho, Fidel acentua o nível de comprometimento de seus companheiros para com o movimento. Para além do sacrifício de suas próprias vidas, boa parte dos combatentes se desfizeram de todos os seus bens (materiais) para investir junto à causa. Quando pessoas são capazes de doar-se dessa forma, a razão que perpassa o fato deve ser observada. Somente calcados na esperança de um porvir verdadeiramente alvissareiro, o homem é capaz de um feito que ameace, dessa maneira, sua existência imediata. A luta exige tal nível de comprometimento, que acaba por exaurir a rasa subjetividade alienante do indivíduo. Unicamente despojado de seu eu, egocêntrico, o ser encontra motivos para pensar em um mundo para além de seu tempo. Uma realidade que ele forja, com seus braços, para o próximo. Essa alteridade só é aferível, quando o movimento surge e cresce do povo, pelo povo e para o povo. A legitimidade de levantes de resistência reside, justamente, na ideia de contra-ataque. É do aviltamento de direitos e da própria sociabilidade, que provém a força para revolução. Batalhas travadas por exércitos, grupamentos, juntas, hordas, patrocinadas ou subjugadas por forças externas, pelo capital ou por puro interesse de contenção e dominação, jamais podem ser concebidos como tal.

A luta cubana pela liberdade sempre foi acompanhada, com especial interesse, pelo seu vizinho mais ao norte. Desde os tempos de sua própria emancipação colonial, os Estados Unidos da América demonstraram ter em mente uma ideia de direito posto sobre a ilha. Talvez devido a sua proximidade, ficando costeada pela Flórida, Cuba parecia uma prenda muito ao alcance para não ser tomada. Consciente disso, Castro prevê que a luta pela liberdade de seu país passaria, obrigatoriamente, por um rompimento com imperialismo estadunidense. Sabia também que os poderes, constituídos ou não, ocultos na evidência de sua imposição, estiveram sempre à disposição dos Impérios. Travar enfrentamento com gigantes exige mais do que, apenas, coragem. Diante disso, a batalha teria que ser, antes de tudo, pelo ideário do povo. Apenas um povo coeso, senciente das dores impostas por forças que só enxergam números, seria capaz de unir-se em torno de um ideal e, ombro a ombro, desfraldar a bandeira da esperança. E sob a égide dessa, como quem traja uma armadura impenetrável, lutar despido de pequenezas, protegido pelo manto que só quem ousa erguer-se pelo justo, pode envergar. Momentos antes da ação, em discurso final para seus homens, o comandante Fidel anima e conclama seus homens ao valor de sua bravura. Ainda que não tivesse expectativa de revés, ele confia na grandeza do ato. Contava que, mesmo em caso de insucesso, seu levante seria visto como abnegado exemplo. O povo ouviria o brado dos inconformados e junto a eles enfileirar-se-ia, na esperança de um mundo onde a utopia da igualdade fosse uma construção possível.

Em 1963, em discurso proferido quando a revolução já estava consolidada desde 1959 (em 1º de janeiro de 1959, Castro e seus homens descem a Sierra Maestra e, junto ao povo, derrubam a ditadura de Batista), Fidel Castro, agora Primeiro Ministro da República Socialista Cubana, lembra que no ponto alto de sua profissão de fé no poder redentor da História, poder esse, capaz de iluminar a realidade nebulosa do passado cotejando-o ao materialismo da realidade prática que o presente apresenta, o pensamento ali existente não era, ainda, o de um marxista. O que emanava daquelas palavras era o argumento de alguém que ousou não mais aceitar a dilapidação de sua pátria. Não mais assistir ao povo servindo de sacrifício no altar do imperialismo. Um homem que colocou sua vida a serviço de um ideal. De seu discurso de defesa, o que podemos perceber, mais do que qualquer outra coisa, é a transformação de um indivíduo e o despertar de um homem novo.

*Silvane Ortiz é graduanda em direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nota


[I] “Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia – é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado. […] Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico.”3

 

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