A luta que há nos deuses

Juliano Schnabel, Humanidade dorme, 1982
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Por JOÃO MARCOS DUARTE*

Comentário sobre o livro recém-lançado de André Castro

“A tradição crítica de Candido e Schwarz encontrava na literatura um espaço privilegiado de interpretação da formação à deformação nacional, dado que a própria nação era também uma comunidade de leitores onde a identidade se forjava na leitura. Já os tempos de desconstrução parecem apresentar uma experiência delineada enquanto imaginação religiosa, de modo que é em sua formulação teórica (teológica) que encontramos um espaço privilegiado para mapear as formas do fim” (André Castro).

Apesar de arrevesada, não é sem propósito a afirmação de nosso cientista da religião. No seu livro mais recente, ele procura mapear justamente o que ele chama de “imaginação religiosa”. Mais exatamente, a última de suas figuras, a apocalíptica bolsonarista.

First things first. O trecho que estamos comentando começa com nada menos que dois dos principais dísticos do que convencionou-se chamar de tradição crítica brasileira. Há quem diga que essa tradição é uma franja radical da ala dos bacharéis[i] que sempre teve por objetivo fazer a passagem da colônia à nação. A franja crítica tenta de certo modo abdicar dos maneirismos e autoritarismo aplicados à saga da construção nacional, além de perceber o impasse como problema – um tanto diferente de seus antepassados, que viam justamente nesse processo a marca da identidade nacional que eles deveriam mapear para então realizar (ou vice-versa).

Indo direto ao ponto: sem apologia, nossos dois críticos literários mencionados veem na literatura nacional uma importante fonte de investigação sobre esse problema que tem por nome Brasil, com suas idiossincrasias e possíveis aportes para tentar, de um lado, desvendar o fundo falso de um sistema-mundo baseado na acumulação infinita e, de outro, contando com a boa vontade de alguns e ausência de outros, certa contribuição possível para a sociedade vindoura. De um jeito ou de outro, a recusa da situação atual e investigação de possibilidades de termos vez e voz na construção do Novo.

O ponto nodal está em que a literatura formou pela primeira no Brasil o que poderíamos chamar de “comunidade de leitores”, as palavras são do trecho em epígrafe. A origem da expressão que, apesar de não usada por Antonio Candido, é o resultado de seu caminho por outras vias, deve-se a Benedict Anderson[ii], ao mapear como os jornais, com notícias e folhetins, faziam com que aqui e acolá, em Portugal ou nas colônias, nas Índias e na Grã-Bretanha, ao terem contato com o mesmo documento e serem afetados pelo mesmo ar, notícias da bolsa e aventuras da mocinha em questão, os leitores se sentissem pertencentes a uma comunidade que adiante seria chamada de nação.

A despeito da pilhagem colonial, o que juntava os mandantes dos navios que viviam nos palácios, os piratas e colonizadores, além dos pais de família que comerciavam por meio de embarcações, era justamente o ar comum ao partilharem as mesmas páginas e, eis aí a grande descoberta do historiador irlandês, imaginar que seus iguais do outro lado do Oceano estivessem fazendo o mesmo.

Por razões internas à família de nossa tradição, que tinha como ideal a junção do que havia de mais iluminado com o que havia de mais terra-terra nos rituais indígenas e afro-diaspóricos, que culmina em Brasília, passaram ao largo de um outro documento cheio de fatos e histórias que foi sendo construído há mais de dois milênios e que forma, desde suas primeiras dez leis, uma outra comunidade imaginada, essa sim sem limites territoriais fixos, pelo menos a priori, e que convida a humanidade à unidade por meio da diversidade.

Com dois agravantes, uma comunidade de peregrinos escravizados periodicamente, cuja cidadania não é deste mundo, mas que já tem todo o seu percurso traçado e o fim certo – a fórmula para a insurgência permanente.

Indo adiante com o retrospecto, temos três momentos principais de formação dessa outra comunidade imaginada composta por peregrinos insurgentes. O primeiro deles, o Decálogo escrito pela voz do próprio Criador e entregue a seu primeiro mensageiro, aquele que liberta o povo de deus do maior império da época. Criador este que, ao perceber-se rejeitado pelo povo que Ele mesmo escolheu para chamar de seu, o condena a vagar durante quarenta anos por um deserto, dando voltas para se encontrar, sem poder parar por um só momento, apenas tendo os seus próprios sacrifícios e exército para sobreviver e nunca desistir de sua terra prometida – lugar que há muito fora seu, mas que por conta da peregrinação acaba sendo povoado por estranhos e que, para ser reconquistado, depende de muito sacrifício e treinamento militar, afinal, quando o primeiro homem fez a primeira fronteira, estava decretado o tempo da matança militarizada.

Após as leis, a profissão de fé que vem alguns mil anos depois: “Venha a nós o Teu Reino, seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu” proferida por Jesus de Nazaré, o Cristo, que alguns têm por Zelota, outra tribo de insurgentes que não se rendeu nem ao Império Romano, mais uma vez, o maior à época. A vontade: resgatar o mundo que jaz no Maligno por meio do povo que se chama por seu nome, façanha possível pela missão vicária do mesmo filho de carpinteiro que há pouco mencionamos, o centro das Escrituras.

Por último, a realização final da Terra prometida, o Reino dos Céus que faz física a presença do criador na Terra, de uma vez o cumprimento do decálogo, ao dar com que a vontade do Altíssimo se faça tanto na Terra como no Céu. Vinda essa – a do Reino – só possível depois que a Mensagem de redenção for pregada por toda a face da terra e o Povo de Deus perseguido por não renegar sua fé e sua Missão. De cabo a rabo, mais uma vez, um povo de peregrinos insurgentes em sua guerra pela eternidade. Até agora nenhuma novidade, em um parágrafo, a saga do Gênesis ao Apocalipse.

O que nosso teólogo descobre é um simples detalhe que faz toda diferença. Pouco importa a imaginação religiosa em si. O que interessa é justamente como a história desses que a si se intitulam povo de deus é vivida enquanto experiência religiosa.

Prova e contraprova acontecem em três tempos, no livrinho mencionado: a Teologia da Libertação,[iii] no momento em que o horizonte de expectativa e espaço de experiência tinham uma distância incomensurável e a revolução vinha aí; o progressismo evangélico[iv] e a apocalíptica bolsonarista[v], agora que os tempos são outros e a dimensão do mundo é a da catástrofe iminente – vivida pelos primeiros como o contrário do Plano do Criador, e pelos últimos, como parte necessária da negação inexorável do estado atual de coisas dado que sua cidadania “não é deste mundo”, e que, portanto, não se importa e até se congratula com a destruição de tudo, para que então, quando o Fim chegar, possa dizer: “As coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios 5:17).

Os componentes de uma cidadania ultramundana, a peregrinação incessante, o Reino que se estabelece após batalhas infindas e muita perseguição com vitória final certa, a imaginação religiosa que anima os entusiastas e aqueles que querem adiar o fim do mundo.

Chegando mais perto, algumas palavras sobre o centro do que é identificado por André Castro. Diferente do judaísmo, que é messiânico, o cristianismo, outrora progressista (com o protestantismo), agora em sua face evangélica, tem na escatologia seu núcleo. Nos dois sentidos da palavra: revelação e tempo do fim.

Quanto ao primeiro, a certeza (“daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” [Hebreus 11:1]) de que a todo o momento o Altíssimo quer dizer algo por trás do que está acontecendo: a força motriz do que comumente se vê, por miopia, obviamente, como uma tendência ao conspiracionismo. Quanto à questão do tempo, o combustível de certa teologia que deixa uns e outros de cabelo em pé (aqui entendida como uma doutrina e uma prática comunitária muito além do pedido de bênçãos materiais).

Ao ter a certeza de que se vive sempre o último momento, é preciso barganhar para comprar tempo – à semelhança dos banqueiros, com dinheiro. A suposta adesão ao mundo que o evangelicalismo representa não passa de mutação da manifestação da mesma consciência, a de que restam poucos segundos para que tudo acabe – seja lá o que signifique essa unidade de tempo para esse povo, já que para eles, “um dia é como mil anos e mil anos é como um dia” (2 Pedro 3:8).

Ainda sobre o tempo do fim, motor e combustível de todos os esforços contra os diferentes que se opõem à sua fé: a última batalha que já está acontecendo, o Armagedom. Donde o reiterado uso do Velho Testamento. Aviso aos apressados, entretanto: o pentecostalismo, maior denominação evangélica no Brasil, não é veterotestamentário – qualquer padre católico ou pastor protestante consegue pregar durante anos apenas o Velho Testamento, e muitos o fazem –, é essa parte da Bíblia que prepara para a guerra de conquista anunciada no livro do Apocalipse de João (motivo pela reiterada volta às primeiras páginas do Livro Sagrado).

O pentecostalismo, o de verdade, não aquele imaginado pelo progressismo evangélico como algo importado dos Estados Unidos da América e que pela branquitude seria uma outra manifestação das peles negras e teologias brancas, é apocalíptico.[vi]

O fundo material de cada uma das mutações dessa imaginação religiosa e que altera toda a equação dessa experiência em suas próprias dimensões, juntando a isso a matéria brasileira, formando um Brasil avivado, projeto de poder ora alardeado a todos os cantos do território nacional and beyond – de resto, nosso chão diário?  Os próximos disparates.

*João Marcos Duarte é doutorando em Linguística na UFPB.

Referência


André Castro. A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema-direita evangélica. São Paulo, Editora Machado, 2024


[i] Luiz Felipe de Alencastro. O fardo dos bacharéis. Novos Estudos Cebrap. n. 19. 1987.

[ii] Benedict Anderson. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[iii] Refiro-me aos ensaios “Pressupostos, salvo engano, da Teologia da Libertação”, “O que resta da Teologia da Libertação?”, “Da Teologia da Libertação à Ecoteologia”.

[iv] A passagem por esse grupo encontra-se nos ensaios “Quem tem medo do progressismo evangélico?”, “Esquerda e direita no espelho dos evangélicos” e “O ressentimento dos integrados”.

[v] Destrinchada, a apocalíptica em questão, além do já citado “Esquerda e direita…”, nos dois luminosos “É o rei que governa esta nação” e “Sobre a luta que há nos deuses”. O leitor deve ter se perguntado a respeito da ausência do primeiro ensaio, “A apocalíptica conselheirista”, e do pequeno “Os outros do ecumenismo” nessa descrição. Está lá o germe da discussão que move todo o livro e traz a grande novidade do conjunto.

[vi] Ainda sobre o pentecostalismo, sua semelhança com certo catolicismo popular, vale dizer,  deriva, mais uma vez e sempre, de seu ar de família apocalíptico. Do ponto de vista da Revelação, assim como o pentecostalismo, o catolicismo era uma religião cujos mediadores entre o humano e o divino faziam-se presentes. Quanto ao fim de todas as coisas, sua constante necessidade de tentar de algum modo direcionar a divindade e sua guerra por Jerusalém – cidade fantasma que anima esforços diferentes que vão desde a conquista da América, o Destino Manifesto, a contrarreforma, certa contrarrevolução e atualmente na tecnologia militar de ponta que faz do Oriente Médio um inferno com seus touch points para quem der o azar de não ser puro sangue. Além das já citadas, falta mencionar a semelhança com as ordens monásticas do catolicismo, que vai desde a ascese anti-mundana dos primeiros pentecostalismos até a já mencionada teologia da prosperidade. O pano de fundo, uma dimensão que leva às últimas consequências o contato com o Magnum Mysterium. É verdade que no Brasil, pode-se arguir, existe uma grande distância entre os polos mencionados, por ter o pentecostalismo muita semelhança com as religiões de matriz africana, que colocaria o corpo em cena, coisa que não haveria no catolicismo. É justamente disso que se trata, para espanto de uns e outros, principalmente quanto ao fato de que muitas das religiões dos povos da diáspora tinham divindades incontroláveis com as quais era necessário dialogar por meio de ritos. Sobre isso, todavia, duas considerações. A primeira diz respeito ao fato de que alguns afirmam que tanto o pentecostalismo, como o candomblé, têm suas raízes no mesmo catolicismo popular rural (Vagner Gonçalves da Silva. Religião e identidade cultural negra: afro-brasileiros, católicos e evangélicos. Afro-Ásia. 2017. nº 56. pp. 83-126). A segunda é sobre o caráter sinestésico do pentecostalismo, principalmente porque a Ordem que se fez presente por mais tempo e de maneira mais profunda no meio dos escravizados, negros e índios, foi a Jesuíta, que tem na contemplação sinestésica, que em muitos momentos beira ao transe, a contraposição e negação da ordem vigente e afirmação do contato com o mistério, uma prática constante. Toda igreja não-pentecostal que se pretende grande, passa pelo processo de pentecostalização no que diz respeito ao seu modo de funcionamento para tentar ter alguma vez e voz no mundo evangélico e fora dele. As que não passam por esse processo, mas querem arrogar para si certa brasilidade que daria a elas o vezo de reais portadoras daquilo que deveria ser o cristianismo no Brasil, com pautas ditas avançadas e com inserção no terceiro setor, transformando esse amálgama exposto acima em fetiche, ficam por conta do progressismo evangélico. A explicação geral do fenômeno do que chamo aqui de “progressismo evangélico”, está no já citado: “Quem tem medo do progressismo evangélico?” (in: André Castro., op. cit.,pp. 157-187).


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