A mágica do Ocidente para esconder sua hipocrisia

Imagem: Kris Møklebust
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Por TARIK CYRIL AMAR*

O significado do termo “sociedade civil” muda dependendo se Washington está falando sobre protestos dentro ou fora da fronteira americana

As elites e a grande mídia do Ocidente estão tão viciadas em dois pesos e duas medidas que detectar mais um não é novidade. Estas são as pessoas que acabaram de nos dar o genocídio rebatizado de “autodefesa”, que abominam esferas de influência, exceto quando são globais e pertencem a Washington (com Bruxelas com o papel de ajudante), e que insistem no Estado de direito enquanto ameaçam o Tribunal Penal Internacional se este se atrever a olhar para elas.

No entanto, há algo de especial no mais recente caso de esquizofrenia dos “valores” ocidentais, desta vez sobre o conceito de “sociedade civil” em conjugação com duas lutas políticas, uma nos EUA e outra na nação caucasiana da Geórgia.

Nos EUA, estudantes, professores e outros protestam contra o genocídio israelense dos palestinos em curso e a participação americana nesse crime. Na Geórgia, a questão em causa é uma proposta de lei para impor transparência ao vasto e invulgarmente poderoso setor das ONGs. Os seus críticos denunciam essa proposta de lei como uma tomada de poder do governo e como sendo de alguma forma “russa” (o que, alerta de spoiler, não é).

As reações muito diferentes a esses dois casos de intensa disputa pública por parte das elites políticas e dos principais meios de comunicação social do Ocidente mostram que, para elas, existem realmente dois tipos de sociedade civil: existe a variedade “vibrante”, sendo“vibrante” um clichê cômico e ossificado, usado pelo Conselho Editorial do jornal Washington Post, em declarações da União Europeia, e pelo porta-voz da Casa Branca, John Kirby, para citar apenas alguns. É quase como se alguém tivesse enviado um memorando sobre a terminologia adequada. Este tipo “vibrante” e bom de sociedade civil deve ser celebrado e apoiado.

E depois há o tipo errado de sociedade civil, que deve ser encerrada. O presidente dos EUA, Joe Biden, acaba de expressar a essência desta atitude: “Somos uma sociedade civil e a ordem deve prevalecer. Esta é, obviamente, uma leitura bizarra e equivocada da ideia de sociedade civil. Idealmente, as suas principais características são a autonomia em relação ao Estado e a capacidade de estabelecer um contrapeso eficaz e até, se necessário, de lhe oferecer resistência.

Colocar ênfase na “ordem” é ignorância ou desonestidade. Na realidade, a sociedade civil não faz sentido, mesmo como ideal, se não lhe for concedido um grau substancial de liberdade para ser desordeira. Uma sociedade civil que é tão ordeira, que não perturba ninguém é uma folha de parreira para o conformismo forçado e – pelo menos – para o autoritarismo incipiente.

Mas deixemos de lado o fato mundano de que Joe Biden diz coisas que demonstram ignorância ou duplicidade. O que é mais importante é que “ordem”, no seu uso, é um eufemismo transparente: de acordo com o jornal The New York Times, nas últimas duas semanas, mais de 2.300 manifestantes foram presos em quase cinquenta campi americanos. Muitas vezes, as prisões foram feitas com brutalidade gráfica. A polícia usou equipamento de choque, granadas de efeito moral e balas de borracha. Agrediram estudantes e alguns professores com muita violência.

O caso particular mais conhecido até o momento é o de Annelise Orleck, professora do Dartmouth College. Annelise Orleck tem 65 anos e tentou proteger os estudantes da violência policial. Em resposta, ela foi jogada ao chão no pior estilo do MMA, colocada de joelhos por policiais corpulentos, que claramente carecem de decência elementar, e arrastada para longe com traumatismo cervical, como se ela tivesse sofrido um grave acidente de carro. Ironicamente (se essa for a palavra), Annelise Orleck é judia e, ao mesmo tempo, costumava ser a chefe do programa de Estudos Judaicos de sua universidade.

Num outro acontecimento extremamente perturbador, na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), uma violenta repressão policial – incluindo o uso de balas de borracha – foi precedida pelo ataque cruel dos chamados “contra-manifestantes” pró-Israel . Na realidade, tratava-se de uma multidão que pretendia infligir o máximo dano aos manifestantes anti-genocídio, que, segundo descobriu uma investigação do New York Times, mantiveram uma postura quase inteiramente defensiva. As forças de segurança universitária e a polícia não intervieram durante horas, deixando os “contra-manifestantes” à vontade. Este é um padrão que qualquer historiador da ascensão do fascismo na Alemanha de Weimar reconhecerá: primeiro, as turbas das SA do partido nazista em ascensão tinham carta branca para atacar a esquerda, depois a polícia ia também atrás dessa mesma esquerda.

Esta é a verdadeira face da “ordem” que o presidente Joe Biden e muitos membros do establishment do Ocidente endossam. Mas só em casa. Quando se trata da agitação na Geórgia, o tom é totalmente diferente. Não se enganem, tem havido violência substancial – o que Joe Biden denunciaria como “caos” se acontecesse na América – na Geórgia. Na verdade, embora os manifestantes anti-genocídio dos EUA não tenham sido violentos, mas sim desordeiros (sim, são coisas muito diferentes), os manifestantes na Geórgia usaram violência genuína, por exemplo, quando tentaram invadir o parlamento.

Nada remotamente comparável foi feito pelos manifestantes anti-genocídio dos EUA. No que diz respeito às invasões e aos inconvenientes públicos que tanto agitam o presidente dos EUA, tem havido muito disso na capital da Geórgia, Tbilisi. Pela lógica de Joe Biden, um protesto não deve sequer perturbar ou atrasar uma cerimônia de formatura no campus. O que isso implicaria no bloqueio de um nó central de trânsito na capital?

Não me interpretem mal: os manifestantes georgianos também denunciam táticas policiais violentas usadas contra eles e, de forma mais ampla, os acertos ou erros da sua causa, ou o projeto de lei que rejeitam, estão fora do âmbito deste artigo. Acredito que sejam usados pelo Ocidente para um jogo geopolítico ao estilo da Revolução Colorida, mas esse não é o ponto neste texto.

O ponto pertinente aqui é, mais uma vez, a espantosa hipocrisia ocidental: um Ocidente que pensa que tentar invadir o parlamento faz parte da existência de uma sociedade civil “vibrante” na Geórgia, não pode prender em massa e brutalizar manifestantes anti-genocídio nos seus próprios campus. Esta é também, evidentemente, a mensagem do primeiro-ministro georgiano, Irakli Kobakhidze, que claramente já está farto deste absurdo.

Numa publicação ressonante no twitter (X), Irakli Kobakhidze opôs-se energicamente às “declarações falsas” americanas sobre o controverso projeto de lei, bem como, mais importante ainda, à interferência dos EUA na política georgiana em geral. O primeiro-ministro, em essência e de forma muito plausível para os não ingênuos, denunciou o vergonhoso hábito de Washington tentar uma “Revolução Colorida” em intervalos regulares.

Finalmente, ele lembrou aos seus interlocutores americanos “sobre a repressão brutal da manifestação de protesto dos estudantes na cidade de Nova Iorque”. Com essa frase representando claramente a totalidade da repressão policial contra os jovens americanos que se opõem ao genocídio, Irakli Kobakhidze virou o jogo.

E esta é, talvez, a conclusão mais intrigante deste novo episódio, mas não sem precedentes, da longa saga dos padrões duplos ocidentais. Encontrar a condenação e a supressão de protestos quase inteiramente pacíficos contra o genocídio, enquanto se celebram protestos violentos contra uma lei que regulamenta as ONGs – isso é vergonhoso, mas não é novidade. Como antes, a geopolítica prevalece sobre os “valores”.

Mas a “sociedade civil” costumava ser um conceito-chave para projetar o soft power ocidental através, essencialmente, da subversão e da manipulação. Era tão útil porque a sua carga ideológica era tão poderosa que a sua mera invocação sufocava a resistência. Agora, ao mostrar como lida com a sua própria sociedade civil, o Ocidente está a arruinar mais uma ilusão útil.

*Tarik Cyril Amar, doutor em história pela Universidade de Princeton, é professor da Universidade Koç (Istambul). Autor, entre outros livros, de The Paradox of Ukrainian Lviv (Cornell University Press).

Tradução: Ricardo Kobayaski.

Publicado originalmente no portal RT.


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