Por Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos*
Uma sociedade apavorada com a violência acorda com a notícia de um crime chocante: jovem branca estuprada, espancada e largada em coma sobre uma poça de sangue, em um parque central da cidade.
Autoridades dizem que é preciso dar um basta. Forma-se uma força tarefa coordenada por uma das mais experientes promotoras do país em casos de violência sexual. Sob forte marcação da imprensa, centenas de suspeitos são investigados. Um empresário paga anúncios nos jornais pedindo a pena de morte. Investigadores trabalham de forma incrivelmente rápida.
No curso dos interrogatórios, quatro jovens negros de 14 a 16 anos gravam suas confissões em vídeo: “eu estuprei”, “bati na cabeça dela”, “eu segurei”. Contra um outro, um pouco menos jovem (16 anos), apenas os depoimentos incriminadores dos demais. No julgamento, entretanto, esses mesmos jovens alegam inocência. Dizem que foram forçados a confessar.
Passaram horas sozinhos nas mãos de interrogadores. Sem sequer contar com a presença de familiares. Seus advogados mostram falhas graves nas acusações. Fatos e indícios são ignorados Há os vídeos: “eu estuprei”…
A sociedade está apavorada. A mídia está na marcação. Todos acabam condenados a penas de 6 a 13 anos de prisão. E há os vídeos. Prova indiscutível. A promotora torna-se uma celebridade, inspira seriados para TV e escreve livros policiais de sucesso. A justiça foi feita.
Até que, dez anos depois, o verdadeiro criminoso aparece. Uma nova análise do caso é feita e exames de DNA (ignorados no julgamento) comprovam que os cinco jovens condenados eram inocentes. Quatro vidas esmagadas pela violência dos reformatórios, e uma outra pelas conhecidas atrocidades do sistema penitenciário norte-americano.
O caso é verídico e se passou na cidade de Nova York em 1989. Está na série “Os olhos que condenam”, lançada neste ano no Netflix. Como já se disse com singular felicidade, a série nos leva a “viver a sensação de injustiça de forma tão intensa que produz até um mal-estar físico”.
Promotores apressados, confissões obtidas na marra, processos acelerados, empresários reclamando e a mídia marcando cada movimento como faz com o preço de uma ação na bolsa de valores. Condenações sem provas. Autoridades desfrutando da fama. Plateia ávida por “sangue, suor e bombas”.
Já vimos muito desse tipo de filme por aqui também. Mas, nos últimos dias, a partir da divulgação de conversas sigilosas entre um juiz e um promotor, fomos levados pela primeira vez às salas secretas onde a trama era escrita. Assim como na série do Netflix, tudo transcorreu com apoio de uma opinião pública cada vez mais desejosa de “justiçamentos”.
Quem, como nós, já enxergava e denunciava as arbitrariedades, não se surpreende. Estamos nauseados, revivendo injustiças a cada novo diálogo revelado pelo site The Intercept. Nada como testemunhar uma prosa solta para entender as coisas como elas realmente são: a revelação dos diálogos entre o juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol é um dos episódios mais tristes de uma série de violações de regras básicas do devido processo legal no Brasil.
Inevitável o lugar comum: o rei está nu!
Os personagens dessa prosa manipularam peças jurídicas, sempre preocupados, entretanto, em avançar no tabuleiro da política. E o fato é que essas jogadas levaram inocentes para a cadeia, como no caso dos jovens da série do Netflix, e com um enorme agravante: interferiram diretamente nas últimas eleições presidenciais.
Por aqui, como lá, o julgamento começou pelo fim. Um jogo de cartas marcadas. O grau de promiscuidade revelado pelas mensagens publicadas neste último domingo torna tudo ainda mais grave e assustador. Com o objetivo de perseguir determinado grupo político, e de preservar outros tantos, a Força Tarefa agiu de forma escandalosamente criminosa, comprometendo, inclusive, o resultado das investigações até então promovidas.
Os envolvidos devem se afastar imediatamente de suas funções. É o mínimo que se espera e exige.
Curitiba foi cenário de uma história de homens da lei, “íntegros e refinados”, preparados para combater o crime com perspicácia e ações de inteligência. Um conto de heróis que fez muitos acreditarem em “algo novo”. Que seus argumentos jurídicos eram tortos, já sabíamos. O que os diálogos vazados revelam é que a Lava Jato empregava os piores métodos de investigação, próprios de uma delegacia de polícia de um bairro de minorias em Nova York. Nada mais atrasado.
Com o necessário reexame de decisões judiciais, novas injustiças podem ser evitadas. Espera-se, pois, como “remédio”, o retorno da aplicação literal do comando constitucional segundo o qual “ninguém deverá ser considerado culpado sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Se não resolve, é inegável que ajuda.
No caso concreto, por fim, sob pena de desmoralização ainda mais acentuada do nosso Sistema de Justiça, é fundamental que o Supremo, nos julgamentos anunciados para os próximos dias, reconheça a parcialidade com que o juiz Sérgio Moro conduziu os processos que estavam sob sua responsabilidade.
A liberdade de Lula é, hoje, a melhor resposta e a única saída.
*Marco Aurélio de Carvalho é advogado, especializado em Direito Público. Sócio fundador do Grupo Prerrogativas e da ABJD
*Fabiano Silva dos Santos é advogado, professor universitário e doutorando em Direito pela PUC/SP. Sócio fundador do Grupo Prerrogativas