Por MANUEL DOMINGOS NETO*
O Brasil persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa e as Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono
As operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Jair Bolsonaro e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a democracia. Quem grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de Moraes. A maioria aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais ter algo de relevante a comemorar.
Mas, caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações, profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance inédito, assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?
Uma ação da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha tendência castrense de interferir no jogo político?
Mais sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante da prevalência dos desígnios das fileiras.
O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.
O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.
Como se sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas, a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico- científico e industrial. A política de Defesa é uma peça-chave da integração sul-americana. Ao ditar a Política de Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade. Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime republicano.
O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro. O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa. As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.
Vitoriosos no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios públicos e na vida social.
Hoje, em essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas. Talvez seja esse o significado mais relevante da operação comandada pela Polícia Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção corporativa.
Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Jair Bolsonaro e respaldar seus desmandos. Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações. Nenhum comandante de unidade militar deixou de, pelo menos, prevaricar.
O preço a pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.
Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa. Os oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas corporações? Aceitarão ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?
Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores. Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando, inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e desafeições.
Quanto ao ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Jair Bolsonaro? Na cadeia, esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não seria surpresa caso seja silenciado.
Qualquer que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um triste e trágico capítulo da história brasileira.
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura).
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