Por RICARDO T. TRINCA*
O político obsceno tem prazer pelo domínio, sob a forma de uma prestidigitação, algo que pode ser encontrado também nos mágicos
Há alguns anos atrás tive o privilégio de conversar com um dos grandes diretores do cinema pornô brasileiro. Nessa conversa, na verdade breve, escutei como seus filmes tinham a característica de explorar cenas explícitas na forma de closes, por meio de ângulos fechados, em uma filmagem que mostrava o ato sexual e seus órgãos em demoradas tomadas. Perguntei sobre o motivo desse tipo de filmagem, a meu ver tão crua, e ele me respondeu laconicamente: “porque eu gosto!”. Fiquei muito intrigado com a dissociação que parecia existir em seus relatos entre o ato sexual e a pessoa, e pensei tratar-se de uma maneira de representar não só o machismo e a dominação por meio do sexo, mas também a falta de pudor, transmitidos de uma maneira quase impessoal, como se fosse possível, por meio dessas cenas, dissociar a pessoa do ato em si.
Mais recentemente outra experiência deixou suas marcas. Estava em uma festa infantil e um mágico criava ilusões incríveis, para o deleite dos seus espectadores. Estava também entretido suas mágicas surpreendentes quando ofereceu-me uma lata de tomates e um abridor para abri-la. Fiquei intrigado com sua proposta e comecei a abrir a lata, um pouco constrangido pelo fato de tornar-me o foco de todos que assistiam ao espetáculo naquele momento. Quando terminei de abrir a lata, vi que o meu relógio, um modelo antigo e pouco usual, estava dentro dela! Espantado, constatei que havia sido retirado de meu pulso em algum momento sem o meu conhecimento. Percebi que enquanto me divertia com alguma outra mágica não observei a ação desse verdadeiro prestidigitador, que felizmente devolveu-me o relógio, mas não a credulidade.
Parece existir entre os dois acontecimentos uma diferença intransponível: enquanto o mágico – ou o prestidigitador – esconde sua verdadeira ação ludibriando seu espectador com alguma outra que aos olhos salta, o diretor do filme pornô parece única e exclusivamente se dedicar ao totalmente explícito (embora dissociado da subjetividade). Tenho, no entanto, cá comigo, que o pornô e o mágico são complementares na política atual.
Para compreendermos tal afirmação devemos antes observar como tanto o mágico quanto o pornô procuram ativamente capturar o olhar por meio de uma espécie de indução hipnótica. Essa hipnose, longe de ser uma perda absoluta de consciência, é um rebaixamento da atenção, que concentra seu foco sobre uma fonte excitante específica e de forma exagerada, impedindo o pleno exercício de uma atenção livremente flutuante. Com isso os detalhes, verdadeiros DNAs da realidade, são retirados da relação com o restante. O resultado, falando de forma alegórica, é que uma cauda de leão acaba por ser compreendida como um espanador, e de modo inquestionável. Tanto o pornô quanto a mágica capturam a atenção por retirarem de cena deliberadamente uma enorme quantidade de detalhes, enquanto nos concentramos em outras que compõem o quadro excitante. O mágico é tanto melhor quanto mais habilidade tem em exercer essa arte. Assim, enquanto no pornô não vemos a subjetividade, a emoção e a presença sexual associada com a vida emocional, na mágica não vemos as cenas que lhe antecedem, como o furto, e permanecemos com um desejo por mantermo-nos iludidos.
No entanto, o realmente obsceno, isso que choca pela ausência de decoro, por sua vulgaridade e pela crueldade, não pode ser atribuído inteiramente nem à pornografia e muito menos à mágica. Penso que essa categoria se adequa mais precisamente à política atual. Estamos atualmente hipnotizados, consumindo vorazmente pornografia-política. Ficamos diariamente capturados por cenas e falas dos governantes que chocam pela completa falta de decoro, e também pela crueldade com que são feitas. Tais atitudes, espalhadas pelos quatro cantos palacianos, parecem advir de gente que se compraz em ferir o pudor alheio, especialmente interessados em dirigir a atenção para si mesmos. Nessa verdadeira biblioteca de obscenidades, há uma continua autorização em revelar a devassidão, numa explícita coleção de cenas justapostas, dignas de uma Lécole du libertinage[i]. E como num filme pornô, são retiradas da cena as relações ou impactos subjetivos que cada ação tem sobre a pessoa que falou; e principalmente sobre a pessoa a quem é dirigida a ação. Refiro-me a falas francamente racistas, homofóbicas e de indiferença em relação aos mortos pelo novo coronavírus, escandalosamente obscenas e de mal augúrio, que não estabelecem diálogo, intimidade ou desenvolvimento de um pensar.
Ficamos, como espectadores, nauseados com a indiferença com que tais integrantes do governo proferem suas obscenidades, ferindo sem culpa. Isso ocorre porque na pornô-política o outro é um veículo, um meio e um objeto. Não há alteridade possível e muito menos concernimento, que se caracteriza pela preocupação com o outro por meio de um senso de responsabilidade e cuidado, já que nossa ação pode frequentemente ferir ou criar danos.
O político obsceno tem prazer pelo domínio, sob a forma de uma prestidigitação, algo que pode ser encontrado também nos mágicos. Enquanto cria ações imorais, sem decoro e se compraz em realiza-las, retira nossos relógios sem que percebamos, já que permanecemos excitados com o “close” da cena obscena. Isso já foi compreendido anteriormente com um nome interessante, diversionismo. Essa palavra, que tem a diversão em seu interior, caracteriza-se por ser um estratagema cujo objetivo é impedir que se discuta ou se aprove algo, como uma lei ou uma resolução, ocupando todo o tempo ou a atenção dos participantes para um assunto diferente do que está sendo tratado. Algo que os mágicos conhecem bem.
Se a obscenidade dessa política parece residir, por um lado, na explícito de uma cena que choca pela crueldade e falta de decoro, e por outro no fato dela esconder, do mesmo modo como excita, outras cenas e relações emocionais, por outro lado não conseguimos deixar de ser capturados. E o pornô-político, como o mágico, deixa a boiada passar enquanto perdemos a capacidade de olhar para o entorno. A pergunta que fica, portanto, é: o que estamos deixando de ver? O que estamos deixando passar? Sobre isso vale a pena rememorar um trecho de Huxley (1946), de seu prefácio de O Admirável Mundo Novo: “Grande é a verdade, mas ainda maior, do ponto de vista prático, é o silêncio em torno da verdade”. Sabe-se que um povo destituído de verdade torna-se mais facilmente controlado. Mas ainda assim a verdade pode residir em algum lugar, como além dos muros daquele país em que ela foi silenciada, e ser continuamente almejada.
Em nossa época, a verdade, de modo distinto, tornou-se explícita, pornográfica, de modo que não vemos nada além do choque que ela causa. E, chocados, somos roubados justamente da verdade. Isso porque a verdade é tornada absoluta, e não algo que carrega um devir, uma estranheza e uma incerteza. A verdade, nesse ouro sentido, é impossível de ser detida, controlada, e participa de numa ordem simbólica sempre falha. Ela é mutável, articulável e seu centro se conserva inevitavelmente fugidio. A verdade pornô-política, contrariamente, é obscena porque rouba a cena. Ela impede sistematicamente que alguma verdade possa, de fato, aparecer. Nessa espécie de verdade auto-proclamada, somos arremessados uns contra os outros, em uma desarticulação sobre bases comuns a partir das quais se assentam as experiências coletivas, constituída de inúmeros detalhes e partes que as compõem. Retiradas essas bases, pode-se produzir a figuração pornografica de ocasião: ela se dará sempre como um teatro de repulsa ou de aceitação; e com ele não saímos do lugar, a não ser empurrando o outro da frente, proferindo concordâncias ou discordâncias por meio de palavras de ordem e de juízos morais.
É nesse sentido que a autoverdade[ii] se impõe. A forma como se diz, obscena, se por um lado “lacra”, por outro interrompe o fluxo associativo e a possibilidade de pensar. Nessa perspectiva a verdade obscena é vulgar e chocante. Sua política de choque em nada tem a ver com a verdade de fato. E esse é um dos maiores desastres que estão em curso nesse momento. A coletividade, chocada, permanece assistindo essa pornografia política proferir autoverdades sem dar-se conta do seu elevado estado depressivo. E sente que para não desabar em uma depressão ainda maior deve continuar em seu processo de consumo de obscenidades políticas excitantes. No entanto, esvaziada de verdades nutritivas, o sentimento de cansaço e desesperança só tende a aumentar, acentuada pelas crises sanitária e econômica, catalisadores dessa depressão coletiva.
Devemos temer pelo futuro e por nossos filhos, que terão que lidar com problemas tão complexos, já que esta desfibrilação da verdade, que se encontra praticamente morta, não será tarefa de uma única geração; pois será extremamente árdua – coletivamente – a regeneração da experiência da verdade.
*Ricardo T. Trinca, psicanalista, é doutor em Psicologia Clínica pela USP. Autor de A visitação do Real nos fatos clínicos psicanalíticos (EDUSP).
[i] Escola de libertinagem, de Sade.
[ii] Tomo de empréstimo a feliz expressão cunhada por Brum (2018).