A raiva de Pasolini

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Comentário sobre um poema em forma de documentário ensaístico de Pier Paolo Pasolini

No dia 13 de abril de 1963, estreava, no cine Lux de Gênova, La rabbia (A raiva, 1963), assinado por Pier Paolo Pasolini (primeira parte) e Giovannino Guareschi (segunda parte). O filme permaneceu em cartaz por dois dias em Milão, em Roma e em Florença, tendo deixado de circular até o início dos anos 1990, quando foi lançado em videocassete e transmitido pela rede televisiva estatal.[1]

Se o público acolheu o documentário com indiferença, a crítica em geral não o apreciou, abominando a parte de Guareschi e não se entusiasmando com a de Pasolini, decepcionada, assim como os espectadores, pela falta de embate entre os ideais de um diretor de esquerda e outro de direita, pois não havia na obra uma contraposição dialética entre os dois autores, mas apenas a justaposição de visões antagônicas.

Com La rabbia, no entanto, Pasolini buscava abrir caminho para “um novo gênero cinematográfico”, em consonância com a exploração de novas formas expressivas no campo literário e nos adjacentes, naquele início da década de 1960, segundo Maria Rizzarelli. De fato, já em fins dos anos 1950, o escritor aceitou realizar uma reportagem intitulada “La lunga strada di sabbia” para a revista mensal Successo, quando, entre junho e agosto de 1959, percorreu praticamente todo o litoral italiano, numa viagem de carro.[2] Essa reportagem, em que Pasolini já começava a combinar suas impressões com imagens produzidas por outros – as fotos eram de Paolo Di Paolo –, continha ainda o germe do documentário Comizi d’amore (Comícios de amor, 1964), quando, ao volante de seu carro, percorreu a Itália em todos os sentidos, empunhando um microfone, para entrevistar seus conterrâneos sobre a sexualidade.

Ademais, em Appunti per un’Orestiade africana (Anotações para uma Oréstia africana, 1969), as sequências preliminares rodadas na Uganda e na Tanzânia, come se fossem efetivamente as da obra a ser realizada, eram intercaladas com material de arquivo e com o debate entre Pasolini e os estudantes africanos da Universidade de Roma, aos quais apresentou o projeto do filme. No nunca editado Appunti per un romanzo sull’immondezza (1970) também, em que havia filmado as assembleias dos garis em greve e seu humilde trabalho pelas ruas da capital italiana, o áudio, que se perdeu, previa entrevistas e um comentário em poesia – provavelmente a composição homônima – em que os trabalhadores se expressavam em italiano popular e em latim, a língua dos anjos: assim, poeticamente, Pasolini inseriria seu discurso político no que deveria ter sido um mero registro. A mistura de materiais caracterizou também Uccellacci e uccellini (Gaviões e passarinhos, 1966), no qual imagens em movimento do enterro de Palmiro Togliatti foram inseridas no corpo do longa-metragem ficcional.

Mais do que os três filmes de ficção que o antecederam – Accattone (Desajuste social, 1961), Mamma Roma (Mamma Roma, 1962) e “La ricotta” (“A ricota”, 1963) –, o documentário de 1963 representou, um ponto de chegada na trajetória pasoliniana: a literatura já não bastava ao autor, o qual, dilatando seu significado, passou a perseguir, como assinalou o poeta Andrea Zanzotto, a “poesia total”, ou seja, uma unidade “suprapoética”, talvez identificada por ele no cinema. Carlo di Carlo, assistente de direção em La rabbia, ao contrário de Zanzotto, não tinha dúvidas: “Tenho certeza de que há nele uma primeira abordagem poética no texto de La rabbia, em que – […] já convencido de ter escolhido um meio mais imediato, mais real, mais libertador, que era o cinema com sua língua – ele buscava experimentar sua língua na língua do cinema” (depoimento a Tatti Sanguineti).

La rabbia, ao corresponder a um ponto de chegada, representou também um ponto de partida para novos caminhos cinematográficos (como assinalado), em que eram emuladas experiências poéticas que Pasolini já vinha realizando, nas quais o leitor era estimulado a completar imagens líricas deixadas em  suspenso.[3]

O título La rabbia não era uma novidade na obra pasoliniana, pois já havia designado uma poesia publicada pela revista Nuovi argomenti (setembro-outubro de 1960), posteriormente inserida na coletânea La religione del mio tempo (1961), e um volume não editado de contos, escritos em 1960 e divulgados em jornais entre o quarto trimestre daquele ano e o início do seguinte. Em 16 de julho de 1962, Pasolini assinou o contrato com o produtor Gastone Ferranti e passou a dedicar-se ao argumento e ao roteiro do documentário, dando início à atribulada aventura de La rabbia.

Ferranti, produtor do cinejornal semanal Mondo libero (novembro de 1951-1959)[4], tinha tido a ideia de aproveitar as imagens de arquivo das quais dispunha para realizar um filme em seis episódios (dirigidos por Mino Guerrini; Enzo Muzii e Piero Nelli; Ugo Guerra; Ernesto Gastaldi; Gualtiero Jacopetti e Pasolini), na esteira do enorme sucesso comercial de Mondo cane (Mundo cão, 1962), de Jacopetti, Paolo Cavara e Franco Prosperi, em cuja vertiginosa sucessão de sequências filmadas predominava um tom sensacionalista, embora disfarçado de considerações morais.

O projeto coletivo Pianeta Marte non si entra sobre as aventuras de marcianos na Terra, onde descobriam as contradições da vida moderna, foi deixado de lado, mas Pasolini convenceu o produtor a confiar-lhe a empreitada. Sua primeira reação ao examinar o material de arquivo não foi positiva, mas alguns daqueles fotogramas em preto e branco o encantaram, como declarou em entrevista concedida a Maurizio Liverani (“Pier Paolo Pasolini ritira la firma dal film La rabbia»”, Paese sera, Roma, 14 de abril de 1963): “Atraído por essas imagens, pensei em fazer um filme, desde que pudesse comentá-lo com versos. Minha ambição foi a de inventar um novo gênero cinematográfico. Fazer um ensaio ideológico e poético com algumas novas sequências”.

O roteiro do filme foi escrito provavelmente entre o verão e o outono de 1962 (no hemisfério norte), precedido pela redação de um extenso argumento, publicado no n. 38 da revista Vie nuove (20 de setembro do mesmo ano), no qual, mais do que elencar os fatos a serem narrados, o que interessava a Pasolini era determinar a abordagem político-poética de sua reflexão sobre o mundo que o rodeava: como poeta engajado, recusava a “normalidade” nascida no pós-guerra, observando com distanciamento uma paz ainda ameaçada pelos constantes conflitos sociais e políticos, e proclamava um “estado de emergência”, ou seja, assinalava que algo intoxicava a natureza humana.

Na premissa que antecedia o argumento, o autor declarava que se tratava antes de uma “obra jornalística” do que “criativa”, de um “ensaio” mais do que uma “narrativa” sobre os acontecimentos ocorridos entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 1960; no entanto, segundo Georges Didi-Huberman, acabou entregando ao público “um atlas em movimento da injustiça contemporânea” (expressão reportada pelo crítico literário Andrea Cortellessa). Ademais, apesar de Pasolini acenar para “certa hipócrita prudência ideológica”, no argumento a abordagem marxista do filme não era camuflada, ao contrário, era exaltada na utópica visão final do “caminho do cosmos» que se abria diante dos homens.

Além do argumento, Pasolini havia divulgado também cinco trechos em versos do roteiro no artigo de Luigi Biamonte, “Commenti in versi di Pier Paolo Pasolini per La rabbia”, publicados pelo jornal romano Il paese (12 de outubro de 1962). Os excertos poéticos englobavam composições escritas em outras ocasiões: nas duas últimas sequências do roteiro dedicadas ao cosmonauta russo German Titov era retomada, com  variantes, a “Ballata intellettuale per Titov” (publicada por L’Europa letteraria, em outubro de1961).

A “Sequenza di Marilyn” também retomava, com variantes, a poesia “Marilyn”, escrita depois da morte da atriz (4 de agosto de 1962) e cantada por Laura Betti num espetáculo literário-cabaretístico (16 de novembro do mesmo ano); ademais, duas sequências sobre a Argélia remetiam à famosa poesia de Paul Éluard, “Liberté” (“Liberdade”, 5 de março de 1942). Reduzindo drasticamente o tamanho da composição, Pasolini transformava a ode à liberdade do território francês da ocupação nazista no dolente canto de libertação dos argelinos da longa colonização, enquanto na tela se sucediam fotos de pessoas torturadas e seviciadas, talvez influenciado pela leitura de Os condenados da Terra (1961), de Frantz Fanon.

O cineasta valeu-se ainda de sequências de cinejornais tchecos, ingleses e soviéticos; de fotos rastreadas pelo assistente de direção, de reproduções de obras de temática social de Ben Shahn (cinco quadros), George Grosz (um desenho) e Renato Guttuso (oito quadros); de obras abstratas de Jean Fautrier (têmperas e pastéis), de reproduções em preto e branco de quadros de pintores de épocas diferentes: Giovanni Pontormo, Georges Braque e Jackson Pollock.

Para a trilha sonora estavam previstas vozes over, às quais se alternariam, de vez em quando, momentos silenciosos, ruídos (estrondos de bombardeios, de canhões, trocas de tiros; repicar de sinos, sirenes etc.), temas musicais, músicas populares, cantos revolucionários cubanos e argelinos, cantos populares russos. As vozes over eram três: a voz oficial, isto é, a voz narrativa do material de arquivo, e as duas “vozes que leem” – como as chamou Pasolini –, a voz em poesia e a voz em prosa, que formavam uma nova voz narrativa, desdobrada e sobreposta ao áudio original. À leitura feita pelas três vozes – ora isoladas, ora entrelaçadas –, às vezes se intercalavam cartelas.

Se a voz oficial era a do locutor do cinejornal, havia sido confiada ao escritor Giorgio Bassani a quase sempre pacata voz em poesia, enquanto o pintor Renato Guttuso tinha sido encarregado da animosa  voz em  prosa. As vozes do comentário autoral, claramente definidas no roteiro, às vezes se fundirão e resultarão indistinguíveis no áudio do documentário, não apenas quando os dois intérpretes se alternarão na leitura, mas em especial porque, frequentemente, a linguagem poética não estava vinculada a regras métricas e rítmicas, enquanto a prosa se revelava de tom lírico.

A ordem de apresentação dos fatos narrados no documentário não devia ser a estritamente cronológica, porque subordinada ao princípio da montagem, por afinidade ou por contraste temático, enquanto método de construção do discurso pasoliniano. De fato, seguindo algumas linhas temáticas, as sequências previstas no roteiro podem ser agrupadas em seções ou macrossequências.

Na primeira seção poderiam ser englobadas as sequências sobre a nova ordem mundial no pós-guerra e as consequências da Guerra Fria. Depois do solene enterro do ex-primeiro-ministro Alcide De Gasperi (23 de agosto de 1954), por contraste seria apresentada a singela cerimônia de repatriação dos restos mortais de soldados italianos trucidados na Grécia pelas tropas nazistas (1 de março de 1953). Embora a ameaça de uma guerra atômica pairasse sobre o mundo, a velha Europa de sempre, mirando ao futuro, renascia unida, com o capitalismo já a postos para começar de novo a manipular a classe operária.

Uma estátua de Cristo, com os braços abertos em sinal de paz, foi depositada no fundo do mar na Itália (29 de agosto de 1954); no entanto, na Coreia a luta fratricida havia prosseguido até o armistício de 27 de julho de 1953 e, enquanto lá havia uma troca de reféns entre nacionalistas e comunistas, os últimos prisioneiros italianos na Rússia voltavam para casa (15 de janeiro de 1954). A paz parecia predominar no mundo, mas na Suíça, os quatro representantes das nações que haviam vencido a Segunda Guerra Mundial – Dwight D. Eisenhower (presidente dos Estados Unidos), Anthony Eden (primeiro-ministro britânico), Nikolai Bulganin (premiê da União Soviética) e Edgar Faure (primeiro- ministro francês) – “se encontram com a guerra no coração”, segundo Pasolini.

Assim que a vida retomou seu curso, as enchentes, principalmente na primeira metade da década de 1950, castigaram vários “países inocentes”: Inglaterra (invadida pelas “águas do Demônio”), França (pelas “Águas do Feudalismo”), Alemanha (pelas “Águas dos Semitas”), Austrália (pelas “águas dos Milênios”) e Itália (pelas “águas da Hora Derradeira”). Ao elencá-los, o poeta parecia proferir uma espécie de anátema contra eles, que tinham de pagar pelos próprios erros, uma admoestação irônica, sem aquela “falsa piedade” com a qual a Pontifícia Obra de Assistência havia socorrido prontamente as vítimas italianas.

O “mal da vida” era acompanhado pelo “bem da vida”, que havia desencadeado uma série de manifestações artísticas populares na Alemanha, na Austrália, em Veneza, em Pavia etc., intercaladas com reproduções de obras de Shahn e Grosz, manifestações que serviam para controlar a população e preparar o terreno para o advento da televisão, “uma nova arma […] inventada para a difusão da insinceridade, da mentira” e para a “morte da alma”. Assim, o bem e o mal da vida se igualavam.

Uma sequência de imagens dedicadas à Revolução Húngara daria início a uma nova seção, junto com dois segmentos sobre manifestações de solidariedade em Roma e em Paris. No filme, o texto, com sua entonação melodiosa, ao sobrepor-se às imagens parece sugerir um sentimento de piedade do poeta para com os insurgentes, mas é uma  falsa pista, porque o emprego repetitivo e cadenciado do adjetivo “nero”, combinado com outros dois adjetivos, “bianco” e “borghese” – os três com o significado negativo de “reacionário, conservador, conformista” – e com o substantivo “Controrivoluzione”, revela o quanto Pasolini estivesse alinhado com o Partido Comunista Italiano em sua visão negativa sobre os acontecimentos da Hungria (23 de  outubro-10 de novembro de 1956).

Dois fragmentos sobre a crise do canal de Suez (outubro de 1956-março de 1957) emolduram a seção dedicada à questão do Terceiro Mundo e da Negritude, que englobava tanto a Revolução Cubana (1959) e a subsequente Invasão da Baía dos Porcos (1961), quanto o fim do colonialismo europeu na África – Congo (1960), Tunísia (1956), Tanganica (1962), Togo (1960), Argélia (1962) – com rápidas referências também a países da Ásia (Índia, Indonésia).

À libertação dos países do Terceiro Mundo – gaudiosa,  apesar do árduo caminho a ser percorrido – o poeta opunha a alegria vulgar dos servos do capital, numa pequena série de sequências que exaltavam a vida fútil dos poderosos, bem como seus velhos e novos ritos. Surgem assim imagens da coroação da rainha da Inglaterra, da eleição de Ike Eisenhower, da morte de Pio XII e da ascensão ao trono papal de João XXIII, do qual, por sua origem camponesa, o poeta espera que se torne “o Pastor dos Miseráveis”, a quem pertence o “Mundo Antigo”.

A utopia pasoliniana de uma nova sociedade baseada na tradição levou-o a exaltar sobremaneira a União Soviética: “Uma nação que recomeça sua história, devolve, antes de mais nada, aos homens a humildade de se parecerem com inocência aos pais. A  tradição!…”. A ela o poeta dedica uma macrossequência, na qual o radioso porvir socialista, ancorado no mundo camponês arcaico, era contraposto de imediato ao alarmante futuro neocapitalista. A visão de Pasolini sobre a União Soviética tem seus fundamentos nos ideais da Revolução de Outubro que havia dado seu aval aos “valores do humanismo camponês”, nos dizeres de Francesca Tuscano, representados por Nikita Kruschev, a quem, na última sequência do filme, ele dirigirá seu apelo de paz.

A única nota dissonante em relação à URSS é a visita à galeria Tretiakov, em que as “glórias da pintura soviética” eram descritas com a mesma ironia com que Pasolini atacava o informalismo de um Fautrier, arte abstrata preferida pelos neocapitalistas. À recusa do realismo socialista, herdado da era stalinista,  contrapunha a vitalidade do pintor siciliano Renato Guttuso, com um travelling de suas obras mais significativas para representar o período em tela no documentário.

Na sequência dedicada à morte de Marilyn Monroe – “A melhor coisa, na minha memória do filme, o único trecho digno de ser preservado”, como declarou a Jon Halliday –, fotos da atriz, imagens de explosões atômicas, de uma procissão da Semana Santa, dentre outras, estabeleciam uma relação sui generis de montagem paralela, uma vez que pertenciam a espaços e tempos diferentes.

Foi a partir do próprio Pasolini – para quem editar filmes era um jogo de montar e desmontar – que Didi-Huberman analisou a importância da montagem na poética que preside o fragmento sobre Marilyn e, a seguir, o das mulheres de mineiros italianos mortos em 1955, quando o autor alcançava, do ponto de vista poético, um dos  pontos altos de seu roteiro. Mais do que qualquer outro, esses dois fragmentos são atravessados pelo “paradigma de morte”: “parece que a montagem esteja destinada a levar em conta a morte para desmontá-la e logo remontar a vida em si, instaurando assim uma forma de sobrevivência. Ora, a configuração principal de tal forma – a forma antropológica e poética principal de toda a operação – nada mais é do que o thrênos, o canto fúnebre que Pasolini, em La rabbia, quis retomar obstinadamente por conta própria”.[5]

Quando o autor acabou de montar o copião (100 minutos) e antes de dar início à gravação da locução, mostrou o filme ao produtor, que se assustou com o resultado e, com receio de cortes da censura e de um fracasso comercial, propôs estabelecer um contraponto com as ideias de um autor anticomunista, Giovannino Guareschi. a fim de garantir que os mesmos acontecimentos históricos fossem mostrados de pontos de vista diferentes.

No início de janeiro de 1963, Guareschi já estava em Roma para trabalhar na sua parte, enquanto Pasolini dava uma nova estrutura a seu filme (para caber nos 50 minutos que lhe foram destinados), cortando dezesseis das sequências iniciais e começando a segunda versão com a Revolução Húngara, ao som do Adágio em sol menor, de Tomaso Albinoni. Algumas sequências foram deslocadas ou se fundiram com outras ou, ainda, foram encurtadas, o que alterou o ritmo cadenciado da sucessão de imagens, fatos verificáveis numa comparação minuciosa com o roteiro, uma vez que o copião original não foi preservado.

Embora os autores tenham trabalhado separadamente e sem se desafiarem, o produtor inventou uma desavença para alimentar a imprensa e aguçar a curiosidade do público. Um golpe publicitário ao qual os dois se prestaram, com declarações e até com uma troca epistolar. O poeta, no entanto, ao ver a parte de Guareschi – não apenas reacionária e indiferentista, mas, sobretudo, perigosamente demagógica – ficou indignado e anunciou que tiraria sua assinatura do filme, fato que ficou meio nebuloso.

Distribuído em poucas cópias, o documentário foi retirado de circulação pela Warner Bros, provavelmente pelo conteúdo antiamericano da parte de Guareschi, em que os Estados Unidos foram chamados de carrascos e assassinos, o presidente John Kennedy, ridicularizado, e o hino da Marinha, vilipendiado. No fim das contas, o discurso poético de Pasolini havia sido derrotado pelo populismo de Guareschi.

Procurando salvar o salvável, Ferranti pensou em reelaborar o filme, entrando em contato, em primeiro lugar, com Guareschi, cuja proposta previa um verdadeiro confronto entre os dois autores e estabelecia uma série de temas que alteravam toda a estrutura do documentário. Tendo cumprido seu contrato e interessado em novos projetos, Pasolini não caiu na nova arapuca do produtor, que acabou contratando o diretor Ugo Gregoretti, o qual sugeriu modificações muito próximas da proposta de Guareschi; a nova versão, no entanto, não saiu do papel.  

Em 2001, o texto original de La rabbia pasoliniana foi publicado e, em 2007, Tatti Sanguineti, ao ver a cópia restaurada do documentário de 1963,  alertou para as diferenças entre o roteiro e o filme, lançando a ideia de tentar devolver às telas a versão original, uma vez que também o material de arquivo estava disponível. Giuseppe Bertolucci assumiu a tarefa e, na 65ª edição do Festival de Venezia, apresentou La rabbia di Pasolini. Ipotesi di ricostruzione della versione originale del film (28 de agosto de 2008). Os dezesseis temas iniciais foram recuperados, mas outros cortes não; o próprio diretor e o escritor Valerio Magrelli foram as novas vozes sobrepostas, mas a versão “restaurada” não convenceu todos os críticos, levantando até dúvidas sobre sua validade filológica.

Sessenta anos depois, La rabbia continua sendo uma obra “bifronte”, em virtude da coexistência contrastante entre o «poema-fleuve» (o roteiro pasoliniano) e o documentário assinado por Pasolini e Guareschi.[6] La rabbia di Pasolini. Ipotesi di ricostruzione della versione originale del film é uma obra de Bertolucci, não é um filme restaurado, nem se trata de “cinema ritrovato”, pois a edição de 1963 era o resultado de modificações feitas pelo próprio Pasolini para dar espaço à parte de Guareschi. Sua  versão cinematográfica, portanto é aquela e aceitar apenas a metade pasoliniana significaria recusar o confronto extremo de ideias – tão característico daqueles anos da história italiana – que brota da associação dos dois autores.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O Neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).

Este texto é o resumo sucinto de um longo ensaio, “La rabbia di Pier Paolo Pasolini: appunti su un poema in forma di documentario”, a ser publicado pela revista italiana de estudos literários Campi immaginabili.

Referências


cortellessa, Andrea.  “Nella miniera” [nota introduttiva a “‘Sintagmi di vita e paradigma di morte. Presentazione di: Georges Didi-Huberman, Sentire il grisou’, Orthotes, 2021”). La rivista di engramma, Venezia, n. 181, maggio 2021.

didi-huberman, Georges. “‘Sintagmi di vita e paradigma di morte. Presentazione di: Georges Didi-Huberman, Sentire il grisou’, Orthotes, 2021”. La rivista di engramma, Venezia, n. 181, maggio 2021.

halliday, Jon. Pasolini su Pasolini. Conversazioni con Jon Halliday. Parma: Guanda, 1992 (https://amzn.to/3YP9pxj).

pasolini, Pier Paolo. “Osservazioni sul piano-sequenza” (1967). In pasolini, Pier Paolo. Empirismo eretico. Milano: Garzanti, 1972 (https://amzn.to/3OMVq6J).

pasolini, Pier Paolo. “Premessa”. In: pasolini, Pier Paolo. Per il cinema. Milano: Mondadori, 2001, tomo II (https://amzn.to/3QU6BwZ).

pasolini, Pier Paolo. “La rabbia” (1962-1963); “[Il ‘trattamento’]” (1962). In: pasolini, Pier Paolo. Per il cinema. Milano: Mondadori, 2001, tomo I (https://amzn.to/3QU6BwZ).

rizzarelli, Maria. “Una rabbia ‘non catalogabile’ – Pasolini e il montaggio di poesia”. La rivista di engramma, Venezia, n. 150, out. 2017.

SANGUINETI, Tatti. “La Rabbia 1, La Rabbia 2, La Rabbia 3… L’Arabia” [Contenuto extra del DVD La rabbia]. Bologna: Gruppo Editoriale Minerva RaroVideo, 2008.

tuscano, Francesca. La Russia nella poesia di Pier Paolo Pasolini. Milano: BookTime, 2010 (https://amzn.to/47JjUX3).

zanzotto, Andrea. “Pasolini poeta”. In: zanzotto, Andrea e NALDINI, NICO (org.). Pasolini: poesie e pagine ritrovate. Roma: Lato Side Editori, 1980.

Notas


[1] Na segunda metade dos anos 1960, a associação de esquerda ARCI (Associazione ricreativa e culturale italiana) promoveu a circulação de algumas cópias (16 mm., preto e  branco) apenas da parte de Pasolini; a de Guareschi foi transmitida posteriormente pelo canal de Silvio Berlusconi.

[2] As matérias foram publicadas nos dias 4 de julho, 14 de agosto e 5 de setembro do mesmo ano. No artigo de minha autoria “Percursos pasolinianos” (Revista Diálogos Mediterrânicos, Curitiba, n. 9, 2015, disponível na internet), cinco páginas foram dedicadas ao texto pasoliniano. Em julho de 2022, o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro apresentou as fotos de Paolo Di Paolo na exposição Por uma longa estrada de areia – La lunga strada di sabbia.

[3] O termo “appunti”, que se repete no título de alguns documentários e de outros textos pasolinianos, denota que o autor considerava essas obras “inacabadas”, no sentido de “work in progress”.

[4] A expressão “mondo libero” (= mundo livre) havia sido criada por Winston Churchill (5 de março de 1946) para referir-se aos países ocidentais alinhados com os Estados Unidos no período da Guerra Fria.

[5] O conceito de montagem de Didi-Huberman ecoa o de Pasolini em “Observações sobre o plano-sequência” (1967): “A morte realiza uma montagem fulmínea de nossa vida: ou seja, escolhe seus momentos realmente significativos (e agora não mais modificáveis por outros possíveis momentos contrários ou incoerentes) e os coloca um atrás do outro, transformando nosso presente, infinito, instável e incerto, […] num passado claro, estável, certo […]. Somente graças à morte, nossa vida nos serve para exprimir-nos. A montagem, portanto, opera sobre o material do filme […] o que a morte opera sobre a vida”. Por sua vez, as ideias pasolinianas remetem ao contraponto freudiano entre vida e morte, presente no ensaio Além do princípio de prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920): é o pensamento da morte que dá um sentido à vida.

[6] A coexistência de gêneros diferentes estará presente também no curta-metragem “La terra vista dalla luna”  (“A terra vista da lua”, terceiro episódio de Le streghe / As bruxas, 1966), uma vez que o roteiro teve uma versão escrita e uma em quadrinhos, reproduzida pela primeira vez em Pier Paolo Pasolini, I disegni 1941-1975 (1978). Além disso, a peça inédita Teorema (1966) deu origem a um fragmento da composição lírica Poeta delle ceneri (1966-67), que pode ser considerado o argumento do filme Teorema e o esboço do romance homônimo, ambos de 1968.

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