Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA*
O Congresso tece uma ratoeira moral onde a democracia é o refém. Para escapar dessa armadilha de privilégios e blindagens, a indignação virtual precisa se tornar ação real: mobilização nas ruas e um voto consciente que puna os traidores da confiança popular
O Congresso Nacional brasileiro vive uma crise de legitimidade sem precedentes. Transformado em símbolo de privilégios, chantagens e autoproteção, tornou-se alvo constante de críticas populares e trending topics globais que o apontam como inimigo do povo. Entre ajustes fiscais seletivos, blindagens políticas e anistias a criminosos, a instituição se afasta cada vez mais de suas funções constitucionais e consolida uma “ratoeira moral” que ameaça a democracia brasileira.
Há algum tempo, nosso Congresso Nacional tem figurado entre os assuntos mais comentados nas redes sociais, não apenas no Brasil, mas em escala global. Hashtags como #congressoinimigodopovo e #piorcongressodahistoriadopais aparecem com frequência nos primeiros lugares dos algoritmos. O fenômeno não ocorre por acaso.
Desde o início da atual legislatura, os parlamentares têm demonstrado orgulho em reivindicar-se herdeiros de um modelo de relação entre os poderes no qual o Legislativo se sobrepõe aos demais e tenta governar soberanamente o país.
Se a disputa entre os poderes, concebidos por Montesquieu como forma de garantir equilíbrio na ação estatal, não é novidade, as contendas atuais que agudizam as tensões consolidaram-se durante o governo de Jair Bolsonaro. À época, o então presidente – hoje condenado pela Justiça por diversos crimes – entregou ao Congresso poderes políticos e econômicos amplos. A decisão, no entanto, não foi eminentemente estratégica, mas sustentou-se na combinação entre incompetência e desinteresse em governar.
Jair Bolsonaro nunca teve um projeto próprio para o país: o plano de país que defendeu não era dele nem de seu partido, mas das elites ultraliberais que viram em seu governo a chance de aprofundar seu parasitismo, por meio de ações espoliadoras que visavam extrair ao máximo as riquezas nacionais para si e para as elites estrangeiras associada a mais retrograda e reacionária agenda de costumes. Nesse contexto, o orçamento secreto foi apenas a face mais visível da transferência de poderes ao Parlamento.
Paralelamente, e como parte do fomento ao motim do Legislativo, o ex-presidente e seus asseclas alimentaram uma cruzada contra o Judiciário, atacando tanto a Justiça Eleitoral quanto o Supremo Tribunal Federal (STF). O Congresso, diante desse cenário, não apenas aceitou o protagonismo como se acomodou nele. O resultado é que, hoje, a atual legislatura se recusa a retornar às suas funções constitucionais de origem, dobrando a aposta na disputa contra os demais poderes da República e apostando no caos como método para justificar a convocação de um regime de força, restaurador da ordem.
Na relação com o Executivo, a estratégia é de chantagens constantes e desrespeito a acordos. Já em relação ao Judiciário, a Casa insiste em legislar sobre matérias que esvaziam as prerrogativas do STF, muitas vezes em flagrante inconstitucionalidade. Expurgar essa herança bolsonarista, que se incorporou como uma praga à dinâmica do Congresso, é um dos grandes desafios colocados ao povo brasileiro nessa quadra histórica.
Exemplos recentes dessa ratoeira moral são o tratamento dado pelo Congresso às propostas de ajuste fiscal do governo, a tramitação da chamada PEC da Blindagem e, nas últimas semanas, a votação pela urgência da anistia aos criminosos do 8 de janeiro.
O avanço dos privilégios no Congresso
No primeiro semestre desse ano o Congresso travou debates com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre as propostas do governo em torno do ajuste fiscal, ao mesmo tempo em que avançava em projetos que blindam seus próprios privilégios. O sociólogo Jessé de Souza descreve esse fenômeno como “patrimonialismo moderno”, no qual o Estado é apropriado pela elite burocrática e empresarial (2015; 2019).
Fernando Haddad, na ocasião, anunciara um aumento da tributação sobre operações financeiras (IOF), com a meta de arrecadar R$ 20,5 bilhões em 2025. A medida, porém, durou pouco. Sob intensa pressão de parlamentares, o governo recuou, revogando especialmente a alíquota sobre fundos no exterior. O resultado foi um buraco de quase R$ 18 bilhões na previsão para o próximo ano, reduzindo a arrecadação esperada para irrisórios R$ 2 bilhões e abrindo um flanco perigoso para futuros contingenciamentos.
Essa não foi uma pressão isolada, mas parte de um padrão que revela as verdadeiras prioridades do Legislativo. Na terça-feira (10/6/2025), a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados colocou em regime de urgência um projeto de lei que permite aos próprios parlamentares aposentados acumularem integralmente seus proventos com o salário de exercício no cargo, um benefício que pode ultrapassar R$ 46 mil mensais. A proposta avança sem qualquer análise de seu impacto orçamentário, um contraste gritante com o rigor fiscal que os mesmos parlamentares costumam exigir de outros setores.
Não bastasse, os nobres legisladores ainda tiveram a desfaçatez de apresentar uma proposta de aumento do número de deputados, sob alegação do crescimento demográfico, que ampliaria custos e privilégios da própria “classe” política em um momento em que a população demanda políticas sociais e direitos como prioridade.
Lideranças de partidos do Centrão defendem publicamente cortes de gastos e criticam veementemente a criação de novos impostos. No entanto, na prática, aprovaram medidas que favoreceram diretamente seus próprios ganhos, preservando um regime de desonerações fiscais que custará aos cofres públicos cerca de R$ 800 bilhões por ano e ignorando propostas do Executivo que poderiam ampliar a base tributária de forma mais justa.
Um exemplo é o total desprezo ao projeto do governo que propõe isenção do Imposto de Renda para rendimentos de até R$ 5 mil, medida de grande alcance popular e social. Não querem tratar desse tema enquanto na conseguirem a tal da anistia aos criminosos do 8 de janeiro, incluindo aí o líder da organização criminosa, Jair Bolsonaro.
O controle do orçamento é, assim, a moeda final desse jogo. Do total de R$ 233 bilhões disponíveis para investimentos públicos, R$ 58 bilhões estão atrelados às emendas parlamentares, instrumento que concede ao Congresso um poder direto e frequentemente indiscriminado sobre a execução orçamentária. Paralelamente, privilégios de outras elites são mantidos intocados, como o fato de 93% dos magistrados receberem vencimentos acima do teto constitucional.
O que emerge desse cenário não é apenas um debate técnico sobre ajuste fiscal, mas uma crise moral e política. O Congresso mostra sua face mais real: a de uma instituição que pratica o próprio enriquecimento e a preservação de benesses para grupos privilegiados, enquanto exige austeridade do governo e sacríficos da população. Seja sob o disfarce da lógica fiscal ou da legalidade formal, o objetivo principal permanece inalterado: frear qualquer reforma que inclua ricos e poderosos na conta do ajuste. O resultado é um abismo entre o discurso e a prática, onde o sacrifício é sempre um mandato para os outros.
Blindagem e anistia
A recente votação da chamada PEC da blindagem e a aprovação do regime de urgência para o projeto de anistia provocaram forte indignação social e abriram um debate necessário sobre a postura da Câmara dos Deputados. Para compreender a gravidade desses episódios, é preciso separar aquilo que é estrutural do que é conjuntural na política.
Essa distinção, ainda que analítica, ajuda a não cairmos em dois riscos: o moralismo que reduz tudo à conduta individual de alguns parlamentares e o ceticismo que normaliza práticas nocivas como se fossem inevitáveis.
O que chamo de “elemento estrutural” diz respeito a padrões duradouros da prática política: a fragmentação partidária, a lógica da barganha e a indisciplina nas votações.
São comportamentos que não nascem de um acidente ou de uma circunstância momentânea, mas da própria forma como a democracia representativa liberal está organizada. O sistema eleitoral, os mecanismos de financiamento, as pressões locais e os interesses de grupos criam incentivos permanentes para que parlamentares ajam em prol de benefícios particulares, mesmo que isso contrarie o interesse coletivo. Mudar essa realidade implica alterar estruturalmente o modo como se faz política e como se externalizam interesses no interior do Estado (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999).
O que chamo de “elemento conjuntural”, por outro lado, diz respeito a decisões e alinhamentos imediatos, que revelam como, em determinados momentos, o Congresso atua de maneira explícita para se proteger ou blindar seus próprios membros. Se o elemento estrutural nos ajuda a entender por que sempre haverá dissidentes e traições, o conjuntural mostra escolhas políticas conscientes que podem e devem ser revertidas por mobilização social e pela responsabilização eleitoral (POWER; ZUCCO JR., 2011).
O caso dos doze deputados do PT que votaram a favor da PEC da blindagem escandalizou a esquerda e gerou reações imediatas de cobrança por punições. Mas, se olharmos historicamente, esse tipo de dissidência não é novidade. Na prática política, tanto no Brasil quanto em outros países, é comum que parlamentares rompam com a disciplina partidária em votações decisivas, seja por interesses individuais, por acordos de bastidores ou até por traição aberta.
Trata-se de um fenômeno estrutural, inscrito na própria lógica da democracia representativa liberal e na forma como se articulam interesses no interior do Estado capitalista. A natureza humana, atravessada por falhas e pela sociabilidade burguesa, apenas reforça essa dinâmica (WEBER, 1999; MAQUIAVEL, 2007).
No Brasil, não faltam exemplos de episódios que escancararam a dialética que articula estrutura e conjuntura. Em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, vieram à tona denúncias de compra de votos para aprovar a emenda que permitiu a reeleição presidencial (VEJA, 1997). Deputados teriam recebido vantagens para apoiar a proposta, revelando como a lógica da barganha e do “toma-lá-dá-cá” opera no coração do Legislativo.
Anos depois, em 2005, as denúncias do “mensalão” expuseram um esquema já antigo de pagamentos regulares a parlamentares em troca de apoio ao governo, institucionalizando a compra de votos no Congresso (STF, 2012). Mais recentemente, o chamado “orçamento secreto” e o fortalecimento do Centrão mostraram como a destinação de emendas parlamentares se tornou mecanismo sistemático de fidelização de apoio (SINGER, 2012).
Esses casos não são acidentes, mas a repetição de uma estrutura que estimula a fragmentação partidária, a indisciplina e a mercantilização do voto.
Esse padrão não é exclusividade brasileira. A história política internacional oferece exemplos eloquentes. Na Itália, a operação Mãos Limpas nos anos 1990 revelou a extensão sistêmica da corrupção e da compra de votos, derrubando partidos inteiros e desnudando o clientelismo que sustentava a democracia cristã desde o pós-guerra (GINSBORG, 2001).
Nos Estados Unidos, a prática conhecida como pork barrel politics já gerou escândalos notórios, como o “Bridge to Nowhere” no Alasca, em que milhões de dólares foram alocados em uma obra de interesse local sem justificativa pública consistente, apenas para satisfazer um pequeno grupo de eleitores e lobistas (HUNTER, 1991).
Esses episódios mostram que a tendência estrutural à barganha e ao uso particularista da máquina legislativa é um traço persistente das democracias representativas.
Contudo, mesmo que a ação dos dissidentes petistas possa ter caráter estrutural, a conjuntura brasileira não tolera esse tipo de “erro”. Esses doze “trapalhões” foram, na prática, os maiores derrotados, pois os eleitores de esquerda são menos propensos a aceitar incoerência ideológica. O PT, ao não deliberar um posicionamento em bloco, também errou, mas o custo político recairá diretamente sobre esses deputados, que correm o risco de não serem reeleitos.
A história mostra que a população não costuma perdoar “falhas” vindas da esquerda, associado ao fato de que a direita explora cada vacilo com eficiência. O episódio da “dança da pizza” da deputada Ângela Guadagnin, em 2006, é exemplar: um gesto aparentemente banal de celebração lhe custou a carreira política.
Já a direita, mesmo diante das maiores atrocidades de falta de decoro, raramente sofre consequências. Portanto, além da ira que despertaram, sobretudo entre os que reivindicam pureza ideológica na ação política, os doze trapalhões irão para o julgamento da história e do tribunal popular.
A dialética entre estrutura e conjuntura
A teoria política sempre está pronta a contribuir para elucidar a movimentação humana na pólis contemporânea. Maquiavel já advertia que a política é campo de disputa de interesses e que alianças se rompem facilmente quando oportunidades vantajosas se apresentam (MAQUIAVEL, 2007). Max Weber nos lembrou que a política é também uma luta pelo poder, muitas vezes permeada pelo patrimonialismo e pelo uso privado da coisa pública, categoria central para compreender a tradição brasileira (WEBER, 1999).
Antonio Gramsci, ao falar de transformismo, mostrou como elites cooptam indivíduos e grupos em nome de uma unidade aparente, preservando seus privilégios (GRAMSCI, 2000). E Nicos Poulantzas nos ensina que o Estado é a condensação das lutas sociais, onde as frações de classe disputam hegemonia, explicando por que o Congresso frequentemente se move para atender aos interesses de setores dominantes em detrimento das demandas populares (POULANTZAS, 1980).
No campo nacional, Florestan Fernandes (2006) afirmara que vivemos uma democracia restrita, dominada por uma autocracia burguesa que aceita as aparências democráticas, mas impede reformas estruturais, contemporaneamente ilustradas pela taxação dos mais ricos ou a revisão de benefícios fiscais. A resistência parlamentar confirma a assertiva de nosso eminente sociólogo.
Leonardo Avritzer (2020) destaca a crise da representação política: o Congresso opera com autonomia frente às demandas da população, usando o orçamento secreto e emendas para fortalecer privilégios. O resultado é a institucionalização da barganha elitista.
Diante disso, é justo exigir punições exemplares aos dissidentes do PT na votação da PEC da blindagem, não apenas pela quebra de disciplina, mas pelo efeito simbólico de reafirmar que mandatos são compromissos coletivos. Contudo, o episódio revela algo mais profundo: na esquerda, os erros são punidos de forma implacável pelo próprio eleitorado como já afirmei. Enquanto a direita normaliza incoerências e sobrevive a escândalos de toda ordem, os parlamentares de esquerda, como foi o caso da ex-prefeita de São José dos Campos e agora os 12 trapalhões do PT, enfrentam consequências que lhes podem ser fatais.
Indignação popular e responsabilidade política
O essencial é enfrentar tanto a estrutura quanto a conjuntura: reformar regras institucionais que permitem a reprodução da barganha permanente e, ao mesmo tempo, mobilizar a sociedade para impedir que o Congresso avance em blindagens e anistias que corroem a democracia. Essa é, a meu ver, a melhor forma de escapar da ratoeira moral em que o Legislativo tenta aprisionar a política brasileira.
Em suma, a indignação contra os doze parlamentares é legítima e precisa se traduzir em ação política efetiva. A lição que nos oferecem a história e a teoria política é que as traições ou dissidências individuais são apenas sintomas de um mal maior. O desafio está em atacar as raízes estruturais da política brasileira, sem perder de vista a urgência da conjuntura atual. Isso depende tanto de reformas institucionais quanto da capacidade da população de transformar sua revolta em mobilização nas ruas e nas urnas.
É nesse sentido que a manifestação do próximo domingo (21/09/2025) assume importância crucial. Não basta reclamar nas redes sociais: é preciso ocupar os espaços públicos e exigir mudanças reais. Do mesmo modo, é fundamental que a indignação se converta em voto consciente. A melhor punição que podemos dar a esses parlamentares que traem a confiança popular é negar-lhes a reeleição.
Que cada eleitor lembre, no próximo pleito, quem foram os cúmplices da blindagem e da autoproteção. A hora é de vigilância, organização e ação coletiva para que a ratoeira moral não se feche de vez sobre a democracia brasileira.
*Renato Francisco dos Santos Paula é professor de Serviço Social e Administração Pública na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Referências
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FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006.
FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
GINSBORG, Paul. Italy and Its Discontents: Family, Civil Society, State 1980–2001. New York: Palgrave Macmillan, 2001.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HUNTER, James Davison. Culture Wars: The Struggle to Define America. New York: Basic Books, 1991.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MCCARTHY, Patrick. The Crisis of the Italian State: From the Origins of the Cold War to the Fall of Berlusconi. New York: St. Martin’s Press, 1995.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
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SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira. Florianópolis: Editora Casa da Palavra, 2015.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro. São Paulo: Estação Brasil, 2019.
STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Penal 470: julgamento do mensalão. Brasília: STF, 2012.
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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da UnB, 1999.
WOODWARD, Bob; BERNSTEIN, Carl. Todos os homens do presidente. Rio de Janeiro: Record, 1974.
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