Por ADRIANO DIOGO*
Muitas histórias da ditadura ainda não foram contadas, terão que ser. Mas não é por isso que nós vamos nos amedrontar
Pode parecer muito estranho que tenha explodido nas redes sociais uma repulsa à associação que Bolsonaro fez, ou poderia ter feito, em sua frase “quem é de direita, toma cloroquina; quem é de esquerda, tubaína”.
Essa frase poderia pressupor, além do uso do refrigerante super adocicado conhecido em São Paulo, uma provocação ou uma alusão ao método de intubação, o que seria uma “intubaína”, ou aos diferentes métodos e denominações da prática da tortura por afogamento usada nos presídios, delegacias e salas de tortura nos tempos de ditadura. Tanto contra presos políticos, como contra os presos da justiça comum e as vítimas do esquadrão da morte.
Se voltarmos à terça-feira dia 19.05.2020, a polêmica na imprensa, era avaliar qual frase era mais ofensiva ao povo brasileiro: a frase de Bolsonaro ou a frase de Lula.
A inadequação do uso da expressão “ainda bem” levou ao achincalhamento de Lula pela mídia corporativa tradicional, nas mesmas proporções que a Bolsonaro, que fala atrocidades todos os dias.
Como se estivéssemos em plena guerra ditatorial, onde a mídia e os empresários diziam que haviam dois demônios, de uma lado: os militares torturadores, e os jovens resistentes à ditadura chamados de terroristas.
Nesse momento, em que Bolsonaro faz a cada dia um novo tipo de provocação e sempre invocando a memória da ditadura, Lula foi colocado no mesmo patamar, do tratamento que bolsonaro dá as mortes decorrentes da pandemia.
Bolsonaro sistematicamente e intencionalmente fala frases cunhadas e baseadas em Ustra e outros torturadores. Incluindo aí, a sua preferida “vou te mandar para a ponta da praia”, que para os mais ingênuos pode significar uma praia isolada, sem sol, de pedregulhos. Mas seu forte e real significado remete aos anos de chumbo.
O coronel Paulo Malhães, ao depor na Comissão Nacional da Verdade e na estadual do Rio de Janeiro, explicou em mínimos detalhes, como desapareceram com o corpo do deputado Rubens Paiva. Havia a necessidade de jogá-lo no fundo do mar ou em algum mangue, para que seu corpo não fosse descoberto, seria necessário retirar suas vísceras, substituindo-as por pedras, como foi feito. Rubens Paiva foi jogado na ponta da praia, na restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro. Mesmo triste fim de muitas outras vítimas da ditadura.
A mesma coisa aconteceu aos que foram incinerados na Usina Cangaíba, no norte do Rio de Janeiro. Desapareceriam após serem fatalmente torturados na Casa da Morte, em Petrópolis. Depois eram levados para Campos dos Goytacazes.
Bolsonaro nunca economizou. Como não economizou com a deputada federal Maria do Rosário ou como em sua audiência na sede da Hebraica do Rio de Janeiro, em sua fala sobre os quilombolas. Não economizou quando disse que era necessário eliminar trinta mil brasileiros, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não economizou quando quis ceder terras indígenas à mineração. Não economizou ao anunciar o rearmamento da população civil e a necessidade de matar a população de rua, como num caso no Rio de Janeiro, sob alegação de autodefesa.
Nunca economizou. A última foi em seu passeio de jet-ski, que substitui o famoso churrasco no Planalto no dia em que o Brasil bateu o recorde de mortes diárias por Covid-19, quando anunciou que 70% da população brasileira se contaminaria e que, se a taxa de letalidade fosse de 4%, chegaríamos a 6 milhões de mortos.
Verificou-se, a partir daí, uma saraivada de interrogações sobre o aparecimento do termo tubaína em algum relato memorialístico da Comissão Nacional da Verdade, do Projeto Brasil Nunca Mais, do Bagulhão – que era o relatório dos presos políticos de São Paulo, produzido a partir do presídio Tiradentes. A nomenclatura não foi encontrada em nenhum destes documentos.
É fato, que as técnicas de afogamento, por mais cruéis que fossem, por imersão ou inserção de líquidos (água, salmoura, óleo de rícino) não só pela boca, como pelo ânus, foram fartamente documentadas, mas sem menção a palavra tubaína. E é provável que esse “jargão dos torturadores” talvez ela nunca apareça. Como tantos outros fatos que foram sufocados durante mais de 30 anos, apesar de todos os esforços empreendidos até agora.
Poderíamos abrir todos os documentos das comissões da verdade e achar exatamente aquela gravação, como na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) onde recuperamos, e Juca Kfouri divulgou para o mundo, a fala de José Maria Marin, como deputado estadual, e Nabi Chedid pedindo a cabeça de Vlado, chamando a TV Cultura de TV VietCultura.
Podemos nunca encontrar o termo nos arquivos, mas que fique claro que nunca houve tentativa de fraude, mas de explicar tudo aquilo que se passou no período e que a frase e a intencionalidade em toda vez em que Bolsonaro fala e vemos a expressão da maldade, da busca da criminalização daqueles que foram torturados e perseguidos.
A partir daí surgiu a grande manchete do dia “Tubaína nunca foi pronunciada como técnica de tortura”, embora vários policiais, referindo-se ao método de afogamento usavam termos como “submarino”, “viagem ao fundo do mar” ou “vamos tomar uma tubaína”.
Muitos pensam que só os que sobreviveram têm condições de depor, mas os mortos e desaparecidos também falam. Inês Etienne Romeu, sobrevivente da Casa da Morte, uma vez citou que ela tem voz. Os mortos do Araguaia, os enterrados em vala comum em Foz do Iguaçu falam até hoje.
Em O Cabra Marcado pra Morrer, Eduardo Coutinho contou a história de João Romão que foi colocado em um tacho, cheio de merda e lá torturado com eletrochoques. Não era tubaína, talvez em Pernambuco os refrigerantes tivessem outras denominações, mas nem por isso deixaram de afogar João.
Talvez não esteja em nenhum documento memorialista como Ustra usou a expressão dos torturadores dizendo “Mandei para a vanguarda celestial Alexandre Vannucchi Leme, acabei de matar aquele filho da puta do Minhoca”, no sábado em que cheguei na Oban e Alexandre havia acabado de falecer de tanta tortura que sofreu continuamente. Enquanto o Major Carlos Alberto Brilhante Ustra, completamente enlouquecido com seu Magnum na mão, propunha o assassinato de todos os presos que lá estavam, após o assassinato de Alexandre Vannucchi.
Talvez nenhum dos memorialistas saberão que, enquanto os estudantes da Universidade de São Paulo (USP) organizavam a missa de sétimo dia na Catedral da Sé, na quinta-feira da sequência a morte de Alexandre, Ustra enlouquecido e com arma na mão, xingava o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns das coisas mais terríveis, absurdas e abjetas. Atacava a sua sexualidade, sua integridade moral e dignidade humana. Tudo isso por ocasião da celebração da missa de reconhecimento de que o possível suicida Alexandre tivesse, na verdade, sido assassinado nas dependências do DOI-CODI, tendo seu corpo sido jogado à Rua João Boemer, no Brás, para ser esmagado por um caminhão que lá passou.
Muitas dessas coisas podem não ter sido registradas, como Sueli e os outros 70 mortos e desfigurados do Araguaia, cujos restos mortais nunca foram devolvidos. Muitas histórias da ditadura ainda não foram contadas, terão que ser. Mas não é por isso que nós vamos nos amedrontar. A fala de Bolsonaro teve duplo sentido, talvez não saibamos exatamente qual é. Mas não é a tubaína que deve nos colocar em campos opostos.
*Adiano Diogo, ex-deputado estadual pelo PT, presidiu a Comissão da Verdade da Alesp-SP.