Por RODRIGO MANTOAN CAVALCANTE MUNIZ*
Atualmente a emancipação não é gratuita e a construção de novas formas de sociabilidade não está livre das propagandas ou das publicidades
“A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas” (Karl Marx).
Ao realizar uma caminhada estética em meio aos grandes centros urbanos, é possível perceber uma tensão entre o projeto arquitetônico contemporâneo e a lógica de consumo capitalista. Dentre inúmeros exemplos desta tensão, o que salta primeiramente aos olhos são os grandes prédios recobertos por vidros reflexivos, construídos com amplos e convidativos espaços abertos nos pavimentos que ficam ao rés-do-chão. Projetados inicialmente para integrar a dinâmica das ruas com as sedutoras áreas de convivências, constituindo assim um limiar entre o público e o privado, esses locais se tornam cada vez mais objetificados por uma especulação imobiliária que obriga o proprietário a sitiar-se por detrás de grades ou densos jardins urbanos que removem as características originais do projeto arquitetônico.
De maneira semelhante, outros espaços como os museus, produções artísticas em locais públicos, jardins, feiras, belvederes ou antigas construções, apresentam-se encastelados, intimidados e acovardados, por lojas e restaurantes que servem não apenas como barreiras físicas, mas também como barreiras sociais que impedem o acesso a esses espaços de subjetividade.
Essas barreiras reforçam a lógica do capital, mostram que atualmente a emancipação não é gratuita e que a construção de novas formas de sociabilidade não está livre das propagandas ou das publicidades. Por sua vez, há de se vencer primeiramente as barreiras físicas da oferta de produtos e serviços, para então pensar em resultados possíveis de uma nova e criativa relação entre espaço e espectador. Essa aporofobia urbanística é sem dúvida sintomática pois, antecipado pelo pensamento utópico-negativo dos situacionistas no final da década de 1960, podemos afirmar que a dinâmica do capital vem tomando de assalto os espaços emancipatórios e sequestrando cada vez mais esse valioso instrumento de reconstrução social que são os chamados “espaços heterotópicos”.
Atualmente, pensadores como Jacques Rancière, oferecem alternativas à crítica sociocultural contemporânea, propondo uma nova abordagem da luta contra o reino das aparências e da sólida manifestação do consumo exacerbado.
Da mesma forma que Jacques Rancière, e emblemático em todos os sentidos, o conceito de “heterotopia” de Michel Foucault é fundamental para entender os espaços de subjetividade e sua importância na formação da sociedade. Esses espaços não podem ser esquecidos ou objetificados, pois permitem uma experiência laboratorial dos indivíduos enquanto parte de uma comunidade.
Partindo destes princípios, apresentaremos de forma dinâmica, o processo de reificação dos espaços heterotópicos pela lógica do capital e as suas possíveis consequências no projeto emancipatório da sociedade. Inicialmente analisaremos o princípio teórico da heterotopia foucaultiana, em seguida examinaremos as forças que estão sendo responsáveis por reificá-las.
Heterotopia como espaço laboratorial
Ao desdobrar os conceitos de utopia positiva e utopia negativa que percorreram as vanguardas modernistas, Michel Foucault elabora o conceito de “heterotopia”, uma espécie de topologia afetiva em que descreve lugares que operam em condições não hegemônicas e que subjetivam espaços em contraponto a realidade existente. Enquanto a utopia é uma força tensionadora que persiste em um ideal de civilização em contraste ao presente, as heterotopias são lugares duais dentro do espaço-tempo existente, em que se vivencia uma transformação subjetiva.
Foucault então articula quatro tipos de heterotopias começando pela heterotopia de crise, que são lugares normalmente reservados para indivíduos que se encontram em uma situação de desequilíbrio em relação à sociedade. Situadas normalmente em lugares sagrados ao mesmo tempo que são lugares de privilégio, esses espaços estão localizados longe dos olhos de uma sociedade, pois a subjetividade está ligada a um momento específico e passageiro de um indivíduo. Os alojamentos militares e as maternidades são exemplos de heterotopias de crise.
As heterotopias de desvio, são espaços localizados na periferia dos centros urbanos onde a subjetividade está relacionada ao comportamento indesejado, ou, desalinhados com a lógica vigente e as normas sociais. São os asilos, as prisões e hospitais psiquiátricos alguns exemplos desse tipo de heterotopia.
Um terceiro tipo de heterotopia descrito por Foucault são as heterotopias temporais ou também chamadas de heterocronias. São espaços no qual tentamos reunir objetos de representação de diferentes lugares, períodos e contextos. São os pequenos ou grandes museus, centros culturais, esculturas, estátuas, obras de arte em locais públicos ou privados, antigas construções, jardins, praças e parques, que reúnem diversas histórias de diversos lugares e diferentes cronologias. Consequentemente, essas heterocronias podem transportar o espectador disposto, para lugares outros e tempos historicamente distintos, permitindo assim recriar a nossa realidade existente.
Por fim, a heterotopias de passagem que enfatiza o sistema de abertura e fechamento existente entre esses lugares e o seu espaço circundante. Essa característica é presente também nas outras modalidades heterotópicas, no entanto, nas heterotopias de passagem evidencia-se a contestação de outros espaços ao criar uma ilusão que denuncia a realidade, ou criando uma outra realidade que busca a perfeição. São as antigas colônias, as paróquias, escolas, clubes de férias e organizações fraternais, alguns dos lugares que representam esse tipo de heterotopia.
Em geral Foucault nos apresenta as heterotopias como espaço desprovidos de fronteiras físicas e ao mesmo tempo transitórios. Em outras palavras, um novo espaço heterotópico pode ser criado, ao passo em que outro deixa de existir. Para Michael Foucault “uma civilização sem lugares heterotópicos são como crianças cujos pais não tivessem uma grande cama na qual pudessem brincar”, a sua importância é vital na sociedade e sem elas “seus sonhos estão se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada das cidades” (Foucault 2013 p. 30).
Portanto, as heterotopias não apenas concebem as cidades como as conhecemos, mas são fatores fundamentais para que possamos aprender em comunidade. Com elas, criamos, compartilhamos e absorvemos uma nova visão da realidade, nos tornando participantes ativos, em vez de sermos seduzidos por imagens clichês, para nos tornarmos espectadores passivos do mundo a nossa volta.
No entanto, essa lógica do consumo desenfreado está tomando de forma fortuita os espaços heterotópicos, com a anuência daqueles que deveriam protegê-las. Diante disso, se as heterotopias podem ser pensadas como lugares que mudam as formas sensíveis da experiência humana, também podemos entendê-las como espaços laboratoriais de troca entre iguais. A contemplação das aparências produzidas pela espetacularização desses espaços, separa, a princípio, a reflexão crítica, das imagens contempladas. A vida capitalista é, portanto, medíocre; enquanto a arte e os lugares heterotópicos, mostram que a vida deve ser grandiosa.
Se pensarmos em empreender uma reformulação dos espaços heterotópicos, não é de se surpreender que tal pensamento respalde na própria crítica do espetáculo de Guy Debord, que junto aos situacionistas advertiram que a sociedade do espetáculo é “uma visão de mundo que se objetificou”, que por sua vez, entende a lógica capitalista como responsável por essa anestesie dos indivíduos das grandes cidades (Debord 2016 p. 14).
Observando essa reificação nos espaços pensados para edificar a cultura social e elevar o pensamento crítico, como as heterocronias ou as heterotopias de passagem; veremos que as mesmas instituições que criticam a interação entre a lógica do espetáculo e os espaços disparadores do imaginário social, tornam-se coniventes ao apresentarem barreiras de consumo, antes de oferecer acesso aos espaços heterotópicos. Entre inúmeros exemplos, não posso deixar de citar a antiga mansão da Família Hannud localizada na Av. Paulista, 1811; uma verdadeira obra de arte arquitetônica, repletas de histórias e ensinamentos, que se encontra tomada por propagandas de uma rede de restaurantes, transformando essa antiga construção em uma verdadeira praça de alimentação. O que estamos vendo é a reificação dos espaços heterotópicos em função da espetacularização totalizante do capitalismo exacerbado que insere o espectador em um circuito ideologicamente premeditado.
Um dos pensadores contemporâneos que apresentam uma saída diferente para esse fenômeno, é sem dúvida Jacques Rancière. Partindo das exposições situacionistas de Debord, Rancière sugere subverter a questão, ao afirmar que o espectador é parte ativa da constituição dos espaços que observa e das possibilidades que surgem a partir da interação dentro desses espaços da forma que se apresentam.
Segundo Jacques Rancière, a relação entre o espectador e o objeto observado está sempre mediada por um terceiro. Seja um museu, uma curadoria ou o próprio Estado, essa relação sempre foi uma perspectiva de liberdade que impõe uma ideia de distanciamento entre o fruidor e a intencionalidade artística. Da mesma forma, os espaços heterotópicos quando pensados para oferecer uma nova possibilidade de comunidade, perdem o seu efeito ao se confrontarem com a lógica do capitalismo. Isso se dá porque a lógica do consumo se desenvolve, evolui como um algoritmo de computador, transformando trabalho em diversão e exploração em entretenimento.
Apesar dessa lógica consumista tornar as heterotopias espaços condicionados, amputados e sequestrados por produtos e serviços, Jacques Rancière propõe primeiramente “a recusa à mediação, pois a recusa ao terceiro é a afirmação de uma essência comunitária” (RANCIÈRE, 2012 P. 19), em seguida, a abolição da ideia de mestre e ignorante, ou seja, a exigência de um espectador como intérprete ativo e que busca a sua própria história.
Nesse sentido, a emancipação do espectador frente à espetacularização dos espaços, está em empenhar esforços na produção de um novo contexto em conjunto com outros espectadores. É dispensando a fantasia produzida pela espetacularização que se revoga o seu poder de desvio perceptivo, retomando assim o poder comunitário e as relações heterogêneas.
Na avenida Paulista número 2424, encontra-se o Instituto Moreira Salles, um importante centro cultural localizado em um edifício imponente, com fachada de vidro, exibições fotográficas, biblioteca e exposições. No fundo do prédio, encontra-se exposto a primeira escultura do artista americano Richard Serra aberta à visitação pública permanente na América Latina, Echo (2019).[i]
Figura 1 – Obra Echo de Richard Serra; IMS – andar térreo
Composta por duas placas de aço de 18,6m de altura, cada uma pesando 70,5 toneladas, a obra Echo representa a tensão existente entre a brutalidade e a leveza, entre a industrialização proveniente da revolução técnico-científica, e a simplicidade das formas. A princípio, pode se pensar que a obra está em um espaço muito menor do que aquela que poderia estar (figura 01), no entanto, a obra foi pensada e construída por Richard Serra para ocupar esse local, podendo assim assimilar ao mesmo tempo o conceito de proporção dos espaços.
As placas encontram-se fincadas no chão em uma inclinação que é mais bem percebida por estar paralela ao prédio, além disso, a parte mais alta da placa termina na altura do segundo andar do edifício, onde existe uma abertura na fachada que permite a visualização do espectador de cima para baixo (figura 02).
Figura 2 – Visitantes tirando foto da obra Echo de Richard Serra; IMS – segundo andar
A obra de Richard Serra foi feita para ser interativa, tocada e transpassada, onde a interferência na obra e os potenciais consequências dessa liberdade, refletem a realidade de uma sociedade, permitindo que a subjetividade se transforme em reflexão. No entanto, a obra encontra-se objetificada e fisicamente encastelada por um refinado restaurante que se encontra no andar térreo. O restaurante, como um muro, transformou a área de instalação em um local de espera para mesas de almoço e de jantar (figura 3).
Figura 3 – Restaurante em frente à obra Echo de Richard Serra; IMS – andar térreo
O mesmo ocorre no segundo andar do prédio (figura 4), onde a interação com a obra é feita por cima em uma nova perspectiva. Todavia, isso só é possível após transpassar uma praça de alimentação onde reside uma cafeteria que ocupa toda a visão periférica do espaço.
Figura 4 – Café em frente à obra Echo de Richard Serra; IMS – segundo andar
É importante ressaltar que não se trata de modificar a forma expográfica, uma vez que já observamos que o artista pensou a escultura após a concepção da planta do prédio. Trata-se, portanto, de questionar o desvio perceptivo e o impacto negativo que tanto o café como o restaurante trazem para a reunião de espectadores dispostos a compartilharem experiências e questionamentos.
Figura 5 – Vista do restaurante a partir da área de instalação; IMS – andar térreo
É observando o restaurante do ponto de vista da obra (figura 5) que fica claro o desvio perceptivo que tal fenômeno apresenta. Ao esperar pela refeição o cliente observa as placas de aço como objetos e não como Arte, da mesma forma o espectador na plataforma, se sente observado não por iguais, mas por consumidores, por outros, em outro lugar. Essa vitrine capitalista que ataca o fruidor, coloca-o de volta no mundo do consumo, de forma que esse último torna a ver a obra como coisa, não interage com ela, nem com o outro que está ao seu lado. Perdemos assim, mais um espaço heterotópico.
Conclusão
Não podemos ignorar que a lógica capitalista obriga os indivíduos a se separarem em um movimento predatório que reifica arbitrariamente os espaços heterotópicos, garantindo que essas propriedades estejam nas mãos dos donos do capital para gerar nada além do lucro. No entanto, ao pensarmos a relação do espectador com sigo mesmo e com o outro, podemos conceber uma reflexão sobre a importância de se repensar os espaços de subjetividade, mantendo-os vivos na construção de um pensamento crítico dentro de uma comunidade.
Dentro dessa concepção, o cerceamento da oferta e do consumo não podem ser pensados como algo fundamental para a manutenção desses espaços. Assim sendo, as heterotopias só serão dinâmicas e alinhadas com a condição existente, se exprimirem o embaralhamento da posição entre o artista e o espectador; no rompimento da fronteira entre a proposta do primeiro e a subjetividade do segundo.
Portanto, ao observarmos com atenção, podemos afirmar que ainda existem outras formas de tratar a emancipação social. Pois, enquanto for possível questionar o mundo à nossa volta, buscaremos ações inovadoras e outras maneiras de apresentação do fazer artístico, na medida em que o sujeito continuará a ampliar o seu capital intangível.
*Rodrigo Mantoan Cavalcante Muniz é graduando em filosofia na Universidade de São Paulo.
Referências
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ECHO de Richard Serra, Instituto Moreira Salles, São Paulo, 30/01/2023. Disponível em: https://ims.com.br/exposicao/echo-de-richard-serra-ims-paulista/
Nota
[i] Informação retirada do site do Instituto Moreira Salles conforme referência bibliográfica.
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