Não devemos recorrer às agressões, calúnias, e às injúrias pessoais porque privilegiamos a elegância
Por Valerio Arcary*
A oratória é uma das formas mais complexas de comunicação humana. Ela é essencial na política em qualquer lugar do mundo. Mas no Brasil, por variadas razões, o discurso político está concentrado na forma oral. E a agitação prevalece como forma retórica. A agitação tem o objetivo de defender poucas ideias para muitos.
O abuso na utilização de palavrões é muito comum na luta política brasileira, porque é, dramaticamente, eficaz. O palavrão e o xingamento são chocantes. A brutalidade, a ferocidade e a truculência podem fazer parecer um discurso radical. Mas é uma das formas mais abjetas, desprezíveis, e abomináveis de demagogia.
Os palavrões são funcionais porque eles carregam uma potência emocional concentrada enorme. O tema ressurgiu porque uma das formas espontâneas de repúdio a Bolsonaro, no Carnaval, no Rock in Rio e em manifestações de rua, tem sido o recorrente “Bolsonaro vai tomar no cu”, uma expressão, claramente, homofóbica. Não foi a esquerda que popularizou esta palavra de ordem, felizmente. Mas ela é deseducativa. Não precisamos de xingamentos para derrotar nossos inimigos. Precisamos de bons argumentos. Podemos ser mais do que isso.
Usar palavrões no discurso político não é bacana. É tosco, é grosseiro, é rude. E é errado. Não vale tudo na oratória. Há uma diferença entre a dimensão privada e a dimensão pública da vida social. As palavras têm sentido. A agitação com palavrões e insultos é um recurso ofensivo e desrespeitoso, em primeiro lugar, com aqueles que nos escutam.
Temos visto como a extrema-direita não tem maior constrangimento em recorrer às baixarias mais infames. As provocações são crônicas. Sindicalistas, ativistas dos movimentos negros e de mulheres, militantes estudantis, populares ou ambientais, toda a esquerda é injuriada, sistematicamente: ladrões, vagabundos, canalhas.
Não há forma de expressar a crítica a alguém mais expressiva e direta do que o xingamento. E os neofascistas não têm pudor algum com os insultos. As ofensas são ultrajantes, uma enxovalhação humilhante. Devemos rejeitar, condenar e erradicar na esquerda este tipo de retórica brutal. Ela é indigna de socialistas.
Não devemos recorrer às agressões, calúnias, e às injúrias pessoais porque privilegiamos a elegância. Nossos inimigos de classe não merecem a nossa gentileza. Sim os chefes políticos da burguesia brasileira merecem ser xingados. Mas não devemos fazê-lo. Não precisamos provar que somos pessoas decentes e bem educadas. Não o fazemos porque somos militantes honestos. A eloquência socialista tem como objetivo a educação política dos explorados e oprimidos. E nosso combate é uma luta contra o capitalismo, não somente contra os governantes de turno. Os líderes que representam os interesses dos capitalistas podem ser substituídos, facilmente, por outros.
A oratória militante quer despertar o que há de melhor nas pessoas, não o que há de mais mesquinho, mais egoísta, mais alienado, mais cruel. Está a serviço da luta contra a dominação política burguesa, e quer estimular a união e coesão dos explorados para que se organizem de forma independente, elevar o seu nível de consciência, incendiar sua imaginação, inflar a sua confiança. Queremos que acreditem que a transformação da sociedade é possível. É uma oratória pedagógica porque tem um papel educativo.
Uma oratória militante é uma entrega, uma doação. Um discurso militante tem como objetivo apresentar de forma clara e contundente tudo aquilo que pulsa na mente de milhares, mas não encontrou ainda expressão consciente.
A oratória socialista quer despertar, em cada um de nós, o que há de mais elevado na condição humana, a nossa capacidade de ser solidários. Aquilo que é quase instintivo, que, às vezes, não conseguimos expressar com palavras, mas existe dentro de todo coração humano e toda mente saudável: a sede por justiça, a aspiração à igualdade social e o apetite pela liberdade. Dentro de cada ser humano há esse desejo, essa sede, de que deve haver mais liberdade e mais igualdade. Ambas são indivisíveis. Porque não é possível a liberdade entre desiguais.
Para um lutador popular, a bandeira da igualdade e da liberdade é a causa mais justa, mais elevada do tempo que nos coube viver, e o seu nome é socialismo. Não há nada mais importante do que defender essa causa. Os recursos que usaremos devem ser selecionados para defender essa bandeira. Meios e fins são indivisíveis. Meios impróprios não aumentam, ao contrário, diminuem a nossa luta.
Entretanto, uma técnica é somente um recurso e pode ser pervertida. Pode ser usada a serviço de interesses miseráveis, mesquinhos. Portanto, como nós aprendemos na escola da vida, há uma dimensão moral na oratória. São técnicas que têm de ser usadas com responsabilidade. Devem ser usadas para uma causa justa. Não podem ser aproveitadas, demagogicamente, para defender interesses mesquinhos, pessoais, egoístas.
O maior perigo da oratória é a vaidade. Mais do que em outras tarefas, a oratória permite a exposição pública, que é muito perigosa. Expor-se publicamente leva um grau de reconhecimento que parece intransferível, ou insubstituível, e pode incendiar egos e alimentar invejas, potencializando rivalidades desnecessárias e destrutivas.
Acontece que somos todos imperfeitos e a vaidade é, portanto, uma atitude infantil. Ninguém reúne todas as capacidades em máximo grau. Ninguém é insubstituível. Todos os dias nascem, em cada greve, em cada combate, novos lutadores que poderão desenvolver qualidades extraordinárias, se encontrarem um ponto de apoio, uma organização em que possam desenvolver o seu potencial. Os coletivos militantes são em primeiro lugar, escolas de formação de lideranças. É somente uma ilusão de ótica, portanto, uma conclusão falsa, a ideia de que os oradores mais experientes são os que já deram provas no passado. Militantes mais jovens surpreenderão se a eles forem dadas as oportunidades para desenvolver suas habilidades.
A vaidade não deve ser subestimada. Algum grau de vaidade é plausível, mesmo entre militantes mais experientes, mas deve ser contrabalançada pela pressão do trabalho de equipe. Militantes socialistas devem ser educados na percepção de que os aplausos que recebem são aplausos para as ideias que defendem.
Na luta política e social, na esfera dos sindicatos, dos movimentos sociais e dos partidos, toda militância deve ser um trabalho de equipe com divisão de tarefas. Mesmo que o camarada seja escolhido como porta-voz de um coletivo, em determinado momento, isso não o autoriza a concluir que ele é o “rei da cocada preta”. Quem perde o sentido da humildade é uma pessoa imatura, sem sentido das proporções, “sem noção”. O personalismo, o estrelismo, o egocentrismo, portanto, o individualismo é ridículo. Triste e patético. Militantes devem ser, na dimensão pessoal, discretos sobre si mesmos.
O domínio de uma técnica de oratória é uma forma de poder. Um poder de influenciar os outros, de vencer na luta de ideias. Quando um conhecimento é usado a serviço de uma causa miserável, ele se transforma no contrário do que deveria ser. Deixa de ter uma função emancipadora, e passa a ter uma função alienadora, opressora. Um grande orador a serviço de um projeto mesquinho, como conquistar a direção de um sindicato ou de um movimento para usar de trampolim em busca de privilégios, é um monstro.
A história está repleta de exemplos de líderes que se transformaram, monstruosamente, em criminosos. Portanto, é realmente importante saber sempre a serviço de quais interesses se luta. Quando alguém se esquece disso, quando o uso da oratória se transforma em um fim em si mesmo, para manter posições de poder, de cargos de prestígio, a tendência é o embrutecimento. Quem age assim se desumaniza.
Não somos instrumentos a serviço da oratória, tampouco o contrário. A oratória não é um instrumento a nosso serviço. Somos, cada um de nós, nosso corpo, nossa vontade, nossa voz, nossa mente, nossa emoção, militantes a serviço de uma causa que é muito mais grandiosa do que nós. Quando alguém toma a palavra e as luzes estão concentradas sobre ele; quando pega o microfone e os outros estão sentados e estão ouvindo, a responsabilidade é imensa. Com o domínio da oratória vêm as responsabilidades de quem está se construindo como liderança.
*Valério Arcary é professor titular aposentado do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia).