Por GEORGHIO A. TOMELIN*
A leitura que os tribunais têm feito dos mecanismos de acesso a direitos é o reflexo de uma sociedade-caranguejo
O caranguejo é conhecido por ser um bicho agressivo que anda de lado. Evitamos comer caranguejo no final do ano justo porque ele anda de lado. E tampouco se comem aves na virada, pois ciscam para trás. No ano novo queremos mostrar que estamos andando para frente. Um novo tempo deve representar um novo ciclo, um caminhar adiante.
A inteligência artificial é um ano novo todo dia. Os giros tecnológicos da revolução industrial hoje se revolvem em minutos. Os robôs e seus mecanismos funcionam initerruptamente, de sol a sol. Os impactos desta nova e rápida tecnologia são sentidos em todas as áreas do conhecimento nas quais o decidir é o ponto central.
O aprimoramento dos robôs virtuais tem ampliado os mecanismos de decisão. Se há cinquenta anos a formação para decidir envolvia somente a leitura de livros, podemos dizer que já faz mais de uma década que temos julgadores formados com a leitura de mecanismos exclusivamente virtuais de acesso à informação. É também digno de nota que a maioria das pessoas funciona como papagaios bem treinados, daí o grande problema que a academia de ciências tem em bloquear o psitacismo intelectual e seus pequenos plágios e furtos de conteúdo. As citações de citações criam verdades autorreferidas nas várias áreas do conhecimento.
E pior: temos agora a Inteligência artificial (IA), que é um papagaio super bem treinado. Neste aspecto a Inteligência artificial vai funcionar bem melhor que a maioria das pessoas. As atividades intelectuais humanas são inicialmente desenvolvidas como descobertas, como achados por vezes aleatórios, mas diante de alguém com capacidade de interpretação. Em um segundo momento tais achados se tornam rotinas que serão repetidas a partir de protocolos de atuação. E então, para tais rotinas cujo caminho já está traçado, o treinamento, com checagem e rechecagem, garantirá o bom funcionamento do cérebro que decide, seja ele humano ou digital.
Quando surgiu o microscópio para análises clínicas, por décadas somente médicos, biólogos e bioquímicos treinados eram capazes de interpretar e obter resultados. Hoje o banco de dados e imagens é tão grande que a maioria dos resultados é obtida com a leitura digital da imagem corporal analisada por um computador. A inteligência artificial foi incorporando os resultados médios e abrindo algoritmos especiais para as variantes. A Inteligência artificial funciona melhor que o cérebro humano, que pode não pensar em uma variante pouco frequente. Já a leitura digital passa em fração de milésimo de segundo por todas as hipóteses, ainda que de diminuta chance de estarem ali.
No direito, deu-se o mesmo fenômeno. Como ciência individual de decisão, a capacidade de decidir nos tribunais foi primeiro ampliada com as assessorias “humanas”, a partir de critérios fiscalizados hierarquicamente pelas chefias-judiciais, e depois alavancada com o uso da informática. O mesmo se deu nos escritórios e nos órgãos ministeriais: minutas digitais circulam para os casos mais frequentes. O psitacismo jurídico tomou conta de parte importante dos operadores do direito, sem tempo para ler ou entender problemas pontuais.
Ocorre que a informática e as facilidades digitais ampliaram também o volume dos processos, o que tornou impossível sua leitura minuciosa. Instalou-se entre nós, como consequência, uma dromocracia-judiciária: a ideia de que a velocidade deve vir em primeiro lugar. Temos então um novo problema vital: peticionar, julgar e executar processos enormes antes que o sujeito de direitos morra. Possíveis soluções para tal problema: ou ampliar o quadro de juízes e assessores, ou reduzir processos exigindo sumários executivos, ou utilizar mecanismos robóticos de seleção dos dados processuais. E é claro que venceram os robôs.
Em um estágio intermediário de castração, o Superior Tribunal de Justiça já havia editado a famigerada Súmula 7: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Em 1990, logo após a Constituição Federal de 1988, o STJ editou súmula que visava justamente diminuir o número de processos que chegavam à Corte, relações jurídicas que subiam para a mera rediscussão de fatos e sem controvérsia sobre o conteúdo ou aplicação da lei. Ocorre que, com passar dos anos, os tribunais se encarregaram de apagar a palavra “simples”, que estava ali no texto da súmula com o sentido de “exclusiva reanálise dos fatos” (e eliminaram junto o debate sobre a lei federal, competência textual do STJ na CF). Mas todo o direito se apoia em fatos e não existe, portanto, Recurso Especial que não suba com alguma discussão sobre fatos (o que não se confunde com os poucos recursos especiais que pedem apenas e tão-somente o simples reexame de provas).
A Constituição da República outorgou ao STJ, no seu art. 105, a reanálise como corte de cassação de decisões de segundo grau que contrariem ou neguem vigência à lei federal. As matérias de competência da lei federal estão no art. 22 da mesma Constituição, e todas elas envolvem a aplicação do direito sobre os fatos da vida. Assim, a competência constitucional do STJ é definir a correta aplicação das leis federais sobre estes fatos da vida. Mas a Súmula 7, acertadamente, diz que o “simples reexame da prova” não deve subir como Recurso Especial. Não diz a Súmula e nem poderia dizer: “a lei federal aplicável sobre fatos não está no âmbito da jurisdição do STJ prevista no art. 105, inc. III, alínea ‘a’ da CF, para todas as matérias do art. 22 da CF”. E não diz, pois isto configuraria fraude à Constituição, uma vez que a competência constitucional das cortes é irrenunciável.
Foram então vários degraus para o aniquilamento de direitos votados. Primeiro: uma súmula diz que o simples reexame de fatos não dá acesso ao STJ. Segundo: os tribunais em admissibilidade prévia e o STJ em filtragem posterior interpretam que qualquer discussão que refira fatos merecerá os ouvidos moucos da instância especial. Terceiro: robôs são utilizados para a leitura digital dos textos dos recursos. Quarto: decisões automáticas são produzidas (com apoio de ferramentas digitais) indeferindo a subida ou o julgamento de recursos que não pretendem a reinterpretação da lei federal que recobriu fatos da vida (cuja prova o recorrente aceitou e não deseja reexaminar). Quem recorre não quer rever a prova, mas apenas a qualificação jurídica dada ao caso pelo tribunal de segundo grau quando estiver em descompasso com o texto legal.
Um quinto e um sexto mecanismos de castração precisam ser tomados em consideração. Criou-se a prática de entender que o direito legislado não é o que está nas leis em vigor. O direito legislado passa a ser aquilo que o tribunal de segundo grau diz, em seu acórdão, que seria o direito em vigor. Assim, não basta ter o bom direito ao seu lado para ter acesso ao STJ. É também necessário ter um bom direito-negado, e que o tribunal de segundo grau diga que o tal alegado-bom-direito seria um mau-direito, pois se o tribunal nada disser sobre a lei em debate no primeiro grau, tudo se passará como se o congresso nacional nunca tivesse votado a lei em questão.
Vale dizer, se o direito existe ou não (seja ele um bom ou um mau direito) não depende mais dos representantes do povo, mas sim de o julgado em segundo grau negar textualmente o direito (e não há embargo ou prequestionamento que resolva isso), pois caso contrário a norma sequer será avaliada por Brasília. Perceba-se então que esse quinto mecanismo de castração se desdobra em um sexto mecanismo: os tribunais, abaixo do STF, atropelam a competência da Corte Constitucional para retirar as normas do sistema, amesquinhando o impacto de tais normas como se elas nem sequer existissem.
O golpe final nos direitos vem agora dos robôs de leitura de recursos. A rotina robótica é alimentada com a busca das palavras prova, reexame, fatos, fático etc. Ou seja, basta que o recorrente tente dizer que não se trata de caso de aplicação da Súmula 7 que aí mesmo que ela será aplicada (como diria La Fontaine: “é no caminho para evitar a catástrofe que você vai encontrar o seu destino”). A Súmula 7 se tornou uma “Emenda à Constituição”, alterando o conteúdo do seu art. 105. A leitura que os tribunais têm feito dos mecanismos de acesso a direitos é o reflexo de uma sociedade-caranguejo que pode estar até, digitalmente, andando para trás. E pior: que dá de ombros para as normas votadas pelos representantes do povo. Tal sistema precisa de urgente revisão. Ou bem ampliam-se os tribunais para que cumpram sua função constitucional ou então se deslegitimará todo o sistema judicial de acesso a direitos.
Publicado originalmente no portal Conjur.
*Georghio A. Tomelin, advogado, é doutor em direito do Estado pela USP e doutor em filosofia pela PUC-SP. Professor do curso de pós-graduação em direito da UNISA.
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