A subjetividade enfraquecida

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Por ALEXANDRE MARUCA*

Apontamentos a respeito da ascensão da extrema direita a partir de uma leitura de Anselm Jappe

1.

Desde a primeira década dos anos 2000 é possível identificar força política de personagens ligados à extrema direita ao redor do mundo. Victor Orban, Georgia Melloni, Jair Bolsonaro e agora o retorno de Donald Trump nos Estados Unidos. Vários políticos de escopo ultraconservador têm se tornado populares em diversos países e sob as mais variadas condições.

No Brasil, a maior expressão desse fenômeno deu-se na eleição presidencial de 2018. Dessa eleição, passando pela significativa votação de Jair Bolsonaro em 2022 até o fenômeno Pablo Marçal em São Paulo, muitas hipóteses têm surgido, sendo uma das mais preponderantes um descrédito com a política e com os políticos tradicionais (Beraldo, 2018). Descrédito que pode ter como causa eventos nacionais como a Operação Lava Jato ou a baixa correlação entre promessas de campanha e realizações pelos políticos (Concli, 2017).

Porém, essas suposições não dão conta da totalidade das causas quando se observam fenômenos similares ocorrendo em diversos países como EUA (Donald Trump), França (Marie Le Pen), Grã Bretanha (Brexit), Itália (Giorgia Meloni).

As explicações que levam em conta a ascensão da extrema direita em diferentes países também consideram a descrença com o meio político tradicional (Martínez-Vargas, 2017), reflexos da crise econômica de 2008, ainda não totalmente contornada (Polo, 2023), a questão imigratória presente na Europa e nos Estados Unidos (León, 2024); um neoliberalismo excessivo, que ao tornar as pessoas cada vez mais “empresárias de si mesmas” resultaria num sentimento de insegurança e numa busca por uma figura forte e protetora (Filho, 2020) entre outros.

Ocorre que, mesmo sendo verdadeiras essas proposições, elas não necessariamente explicam as situações como um todo em países como El Salvador, Índia e até mesmo Brasil.

E em relação à questão econômica dos EUA em 2024, mesmo sendo verdade que o poder de compra do americano pode ter ficado comprometido nos últimos meses em razão da inflação, isso parece não explicar a primeira eleição de Donald Trump, quando os salários vinham aumentando com Obama, apesar de também certo aumento da inflação (BBC, 2024). E sim, o tipo de emprego importa. É verdade que a precarização do trabalho é potencialmente condutora de um sentimento de insegurança e revolta. Mas isso sozinho justificaria o tamanho da votação de Donald Trump em 2024 em diversos segmentos econômicos da população americana?

Voltando os olhos ao Brasil e às questões econômicas, a catarse de junho de 2013, que gerou uma energia canalizada posteriormente pela direita em 2015 e 2016 (Alonso, 2023, p. 262), não se deu num panorama econômico rebaixado. Os indicadores macroeconômicos eram muito favoráveis, com índices de desemprego bastante baixos e um Produto Interno Bruto que se mostrava bem mais positivo do que o do resto do mundo (Lisboa, 2014) (Banco Central do Brasil, 2013).

2.

Esses eventos muitas vezes um tanto desconexos demonstram uma insatisfação dispersa e sem intenções claras.

A crítica do sujeito de Anselm Jappe pode servir de base teórica para auxiliar a compreensão do fenômeno. Anselm Jappe desenvolve seu trabalho a partir da crítica ao capitalismo, que em sua fase mais avançada teria como consequência a formação de uma subjetividade de certa forma enfraquecida e um sentimento de vazio existencial que chega a ter ares de revolta, considerando todo o ambiente social em que o sujeito está envolvido (Jappe, 2021, p. 270).

Há um descontentamento que unifica os diversos locais onde o movimento se dá. Que não parece ser um descontentamento de ordem concreta contra alguém, uma classe ou uma situação que tem data e hora, mas um sentimento generalizado de revolta contra o que está posto (Jappe, 2021, p. 259).

Para esse autor, a condição de formação dessa subjetividade já existia em potência desde os primórdios do desenvolvimento do capitalismo e foi se agudizando conforme a forma capital foi se desenvolvendo.

Para Jappe a sociedade capitalista, a partir do movimento desmesurado de valorização do valor, conduz-se a uma situação de frágil equilíbrio e autodestruição, cujo exemplo mais atual é a questão ambiental (Jappe, 2021, p. 15).

Em paralelo às mudanças estruturais dadas pelas diversas fases do capitalismo há o desenvolvimento de um sujeito de cunho fragilizado e cuja percepção de inutilidade frente a um mundo no qual tudo e todos são intercambiáveis é cada vez mais comum (Zacarias, 2018, p. 48).

A forma dada pelo trabalho abstrato no qual as pessoas são substituíveis, em que apenas a quantidade é relevante (e não a qualidade), prevalece na sociedade capitalista desenvolvida. E nesse ambiente de cada vez maior irrelevância, o indivíduo nutre um sentimento de nulidade que se soma à falta de perspectiva e futuro incerto, propiciados pelas condições precárias de emprego e segurança.

O trabalho abstrato é a base para a valorização do valor, sob o qual as particularidades e a concretude do trabalho são reduzidas “a um simples gasto de energia humana” (Jappe, 2021, p. 160).

Essas condições são inseridas num contexto de sociedade do espetáculo, conceito desenvolvido por Guy Debord (Debord, 2013), no qual também o sujeito é enquadrado numa situação de passividade e impotência frente ao movimento das mercadorias, ou ao fetichismo da mercadoria, em termos marxistas (Debord, 2013, pp. 28, 139).

Guy Debord foi influenciado pela teoria da reificação de Lukács ligada também a uma passividade do trabalhador submetido ao ritmo das máquinas e à racionalidade da indústria (Lukács, 1989).

Pode-se dizer que a crítica do sujeito de a subjetividade de certa forma enfraquecida Jappe de certa forma foi iluminada pelo aparato teórico desenvolvido por Guy Debord.

3.

Trinta anos após o lançamento de A Sociedade do Espetáculo Anselm Jappe publica seu estudo sobre Guy Debord debruçando-se principalmente a respeito desta obra (Jappe, 1999). Em seguida, seus próximos trabalhos citam de forma às vezes esparsas sua visão sobre a formação do sujeito sob os condicionantes da sociedade capitalista desenvolvida.

Em A sociedade autofágica (Jappe, 2021) Anselm Jappe traça um panorama do que ele observa como transformações da subjetividade resgatando maneiras de se analisar o mundo desde pensadores iluministas até autores contemporâneos. Na verdade, o autor aponta formas de pensar e se comportar que vão se alterando ao longo do tempo conforme o meio social se modifica. Isso em paralelo ao desenvolvimento de uma sociedade que na busca desmesurada da valorização do valor consome-se a si mesma, o que o título do livro já revela.

Nessa obra, Anselm Jappe em certo momento remete a uma situação limite que é o amoque para demonstrar até onde é capaz de ir a chamada crise do sujeito.

O “amoque” pode ser descrito como a ação de um indivíduo que atenta à vida de outros em escolas, cinemas ou locais públicos em geral e depois se mata (Jappe, 2021, p. 246). Essa pulsão de morte, segundo o autor, multiplica-se desde a década de 1990, principalmente nos Estado Unidos (Jappe, 2021, p. 240).

Esse ódio sem destino certeiro seria causado pela percepção de insignificância do indivíduo no mundo: “O que perpassa por esta forma de ódio é a certeza que o sujeito contemporâneo tem da própria nulidade e superficialidade. É o contrário da situação do explorado, que sabia que o explorador necessitava dele e era, portanto, obrigado a “reconhecê-lo”. Disso resulta um sentimento característico da nossa época, que se encontra em todos os indivíduos propensos a amoques: a impressão de “não existir no mundo”. Essa impressão em nada se deve a uma falha individual ou a uma culpável “incapacidade de a pessoa se adaptar a uma sociedade que muda” (Jappe, 2021, p. 270).

Ao citar Götz Eisenberg e Alice Miller Jappe recorda que o amoque ocorre como uma forma extrema decorrente de uma sociedade fria que submete as crianças muito cedo às racionalidades econômicas. Crianças marcadas pela indiferença e que descobrem logo cedo que “o trabalho, os objetos de consumo e, especialmente, os aparelhos eletrônicos de “comunicação” são mais importantes para seus pais do que elas próprias” (Jappe, 2021, p. 256).]

O sentido de revolta causador do amoque é limítrofe e não se dissemina por todo o meio social. Porém, ele é ilustrativo da formação do sujeito em uma sociedade na qual os indivíduos encontram-se cada vez mais entregues a si mesmos, onde as relações se dão de maneira atomizada e o senso coletivo é bastante comprometido.

Em No espelho do terror Gabriel Zacarias – cuja análise tem muitos pontos em comum à de Anselm Jappe – ao tratar do amoque, fala do entrelaçamento entre sociedade do espetáculo e narcisismo (Zacarias, 2018, p. 51). A percepção de onipotência, característica do narcisismo, é dada pela relação entre sujeito e mercado quando, em potência, tudo pode ser conseguido “ao alcance de um clique”. E no caso do amoque o “terrorista apenas troca o clique do mouse pelo clique do gatilho e opta por uma restituição ilusória de potência que não se dá mais pelo consumo, mas pela destruição” (Zacarias, 2018, p. 50).

O mundo oferece-se ao sujeito (mesmo que de forma falseada) que nutre um sentimento de onipotência. Onipotência que entra em conflito com a impotência real, com a sensação de nulidade propiciada pela sociedade capitalista desenvolvida.

Importante lembrar que esse “vazio existencial” a que Anselm Jappe se refere não é uma característica ligada apenas ao neoliberalismo. É uma característica em potência do capitalismo e da forma abstrata que se impõe com o desenvolvimento do sistema através, principalmente, do dinheiro e do trabalho abstrato (Jappe, 2021, pp. 55,56 e 160).

Para Jappe o sujeito narcísico “é propenso a um ódio sem objeto”. Vê-se devorado pelo receio de que a sua estrutura psíquica possa dissolver-se inteiramente, e a agressão lhe serve como mecanismo para conservar o eu” (Jappe, 2021, p. 259).

Na mesma linha de sentimento de nulidade frente à realidade, em Realismo capitalista, lançado em 2009, Mark Fisher ao falar dos estudantes britânicos observa que são pouco engajados por, apesar de saberem que as coisas vão mal, “sabem que não podem fazer nada a respeito” (Fisher, 2020, p. 43)

Fica claro pelas abordagens anteriores que a percepção de insignificância frente a um mundo no qual as pessoas são substituíveis e pouco relevantes, seja em relação à sociedade em geral ou em relação ao núcleo familiar, está presente em diversos teóricos. Em certos casos esse sentimento pode desembocar numa ação extrema como o amoque, mas na maioria não. O que se percebe é a disseminação de um niilismo no meio social, que pode resultar numa revolta contra a ordem estabelecida.

4.

É bastante comum encontrar pesquisas qualitativas nas quais há indicações de sentimentos antissistema e de descrenças com o meio político em geral (Camila Rocha, 2024) (Borges, 2024) (Gallego, 2021) (Gallego, 2018). Creio que seja possível refletir sobre se não há algo mais profundo, que deságua na política, mas que extrapola suas fronteiras. Um sentimento ligado à ordem capitalista, à descartabilidade do sujeito. Isso somado a um tanto de outras condições pode ajudar a compreender o fenômeno. O sentido de revolta a partir da crítica de Anselm Jappe quem sabe nem mesmo seja o preponderante, mas permeie todo o meio social. Sentido de revolta que atualmente está ligado à extrema direita e a seus discursos antissistema.

*Alexandre Maruca é graduado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP).

Referências


Alonso, A. (2023). Treze – a política de rua de Lula a Dilma. São Paulo: Companhia das Letras.

Banco Central do Brasil. (2013). Fonte: Boletim anual do Banco Central do Brasil: https://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual2013/rel2013cap1p.pdf

BBC. (setembro de 2024). Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gey2y0z97o

Beraldo, P. (23 de junho de 2018). Descrédito nos partidos atinge 8 em 10 brasileiros. O Estado de São Paulo.

Borges, A. (14 de março de 2024). Scielo. Fonte: Scielo: https://www.scielo.br/j/op/a/wTHTff4Y73WvPLPPBBvBSYn/?format=pdf&lang=pt

Camila Rocha, E. S. (2024). Bolsonarismo sem Bolsonaro? São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung.

Concli, R. (11 de julho de 2017). Fonte: Jornal da Usp: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/o-que-esta-por-tras-da-desconfianca-em-relacao-aos-partidos-no-brasil/

Debord, G. (2013). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

Filho, A. F. (15 de julho de 2020). Fonte: Exame: https://exame.com/colunistas/money-report-aluizio-falcao-filho/os-pobres-podem-ser-de-direita/

Fisher, M. (2020). Realismo Capitalista. São Paulo: Autonomia Literária.

Gallego, E. S. (2018). Crise da democracia e extremismos de direita. São Paulo: Friedrich Ebert Stiftung Brasil.

Gallego, E. S. (2021). A evolução do bolsonarismo: análise qualitativa da percepção deste eleitorado em 2019 e 2020. São Paulo: Fundação FHC.

Jappe, A. (1999). Guy Debord. Petrópolis: Vozes.

Jappe, A. (2021). A sociedade autofágica. São Paulo: Elefante.

León, L. P. (11 de junho de 2024). Fonte: Agência Brasil – EBC: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-06/pobreza-imigracao-e-guerra-explicam-resultado-de-eleicao-na-europa

Lisboa, V. (30 de janeiro de 2014). Agência Brasil – EBC. Fonte: Agência Brasil – EBC: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2014-01/denise-desemprego-fecha-2013-com-menor-media-anual-da-serie-historica

Lukács, G. (1989). História e consciência de classe. São Paulo: Editora Elfos.

Martínez-Vargas, I. (17 de maio de 2017). Descrédito em países democráticos favorece populismo, diz pesquisador. Fonte: Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/05/1884683-descredito-em-paises-democraticos-favorece-populismo-diz-pesquisador.shtml

Polo, A. P. (23 de maio de 2023). aterraeredonda. Fonte: A terra é redonda: https://aterraeredonda.com.br/a-ascensao-da-extrema-direita/

Zacarias, G. F. (2018). No espelho do terror – Jihad e espetáculo. São Paulo: Elefante.


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