A subjetividade fascista

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

No fascismo, comungam a passividade dos oprimidos com a perversão consentida, a má consciência das “classes abonadas”

As determinações do fascismo como gênero, na crise do capitalismo, tanto nos seus conteúdos econômicos como sociais, são aquelas que fundam o seu surgimento e os seus contornos, em um determinado espaço territorial e cultural. Quando o fascismo, todavia, se torna um movimento político com perspectivas de poder – para compreendê-lo e combatê-lo – é preciso localizar na subjetividade dominante os seus esconderijos mentais mais reservados e na conduta dos sujeitos políticos as suas manifestações mais soturnas (e violentas) na vida cotidiana.

A dramática situação do país, onde a democracia se esvai em cada jargão fascista emitido pelos grunhidos presidenciais – em um país afetado pela mortandade da pandemia e pela fome endêmica – exige uma sofisticada estratégia política por parte das forças da oposição democrática para refutá-lo. O “bolsonarismo” dominante conseguiu apartar da reflexão e do diálogo político – necessário para a democracia liberal-representativa funcionar – uma parte significativa e policlassista da sociedade.

Esta foi jogada para um espaço onde o debate não penetra, os argumentos não valem e as mentes funcionam apenas refletindo a palavra autorizada do “mito”. A fragmentação da estrutura de classes da sociedade favorece este isolamento, no qual estes grupos “apartados” criam um mundo próprio, ilusório, no qual a terra pode ser aceita como “plana”. Nela, o comunismo também ronda as famílias “de bem” e a veneração das “pirocas” ocultas nas mamadeiras – como arma política – pode se reproduzir ao infinito. Aproximadamente 1/3 da população está dominada por estes bolsões de ignorância manipulada.

Ao longo da sua história, o fascismo sempre capitalizou as mentiras que se tornaram fundamentos que basearam o seu poder político. A diferença pela qual essa capitalização se processa hoje, em relação aos tempos do século passado, é que ela flui muito mais rapidamente e pode ser isolada em bolhas de inacessibilidade, nas quais as contestações ao mito são bloqueadas na sua “entrada”. E repelidas.

O bloqueio das contestações às mentiras é feito com argumentos diretos e simples, erigidos para satisfazer não só as mentes mais simplórias assediadas pela crise social e pela insegurança, mas também para repousarem nas consciências pervertidas de grande parte dos estratos mais altos da população. No plano da subjetividade pública, o fascismo é a revelação da preguiça mental dos oprimidos, combinada com a perversão consentida, presente na má consciência das “classes altas”.

Qual é a “sofisticação” a que me refiro como necessária, para a oposição tornar-se eficaz? A unidade das partes fragmentárias da proposta fascista é feita pelo “mito”, que se desloca de uma “bolha” fechada para outra, de um fragmento para outro, com protocolos simples de rejeição da modernidade ilustrada. Particularmente essa “rejeição” se contrapõe às possibilidades humanas de liberação dos sujeitos das influências dos preconceitos religiosos e a sua superação – pela verdade – dos anátemas políticos produzidos pela grande mídia, em relação à esquerda.

Os contestadores dos valores do fascismo são atacados a partir da moralidade aparente das castas do “medievo”, moralidade constituída para o bloqueio mental de tudo que estiver fora dos padrões da família patriarcal, frequentemente ampliada como ideia de nação. Para isso o fascismo aposta na cegueira pelo ódio, que essas liberdades individuais ou grupais podem provocar no senso comum, sempre apresentadas como “contrárias” à vida ordeira, que é instabilizada por estes “desvios”.

A ideologia fascista transforma, assim, a perversão e a intolerância em virtude da ordem e em projeto de nação: é a ideologia dos frustrados, dos ressentidos excluídos da boa vida dos dominadores que se voltam, então, contra todos que toleram a desordem e geram instabilidade nas famílias. A verdade do que é o mito, não interessa ao fascista, pois o que o seduz é sua própria inverdade tornada símbolo para a redenção da mediocridade mergulhada na infelicidade coletiva.

A superação desta subjetividade não ocorrerá sem a derrota do mito e a derrota do mito não ocorrerá sem que possamos quebrar a unidade daquela parte das classes dominantes com ele, produzida para os seus fins específicos de dominação. Esta dominação, em primeiro lugar, usa o “mito” para promover reformas e acentuar a privatização do Estado, tanto pelo aumento do poder das milícias, como pela privatização de ativos públicos.

A futura Frente política que deverá governar o país deve ser composta pelos quatro movimentos de uma sinfonia política, que apontem para uma retomada da ordem republicana de 1988: no primeiro, derrotar o “bolsonarismo” e expulsá-lo do poder, unindo o que tem de democrático na nação contra ele; no segundo movimento, preparando um programa de transição comum, para uma economia produtivista, não rentista e inclusiva no emprego e na atividade; um terceiro movimento, organizando a esquerda para ser o pivô de uma frente política de natureza eleitoral – que vá além da esquerda para governar –; e um quarto movimento, com a força do poder institucional, reformar o sistema político para abrir novas perspectivas de reformas sociais e institucionais que reforcem a soberania nacional e coesionem a América Latina em torno da democracia e da solidariedade continental.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A faca no pescoçopexels-minan1398-694740 19/12/2024 Por MARILENA DE SOUZA CHAUI; LUÍS CÉSAR OLIVA & HOMERO SANTIAGO: Reflexões sobre o novo modelo de pós-graduação das universidades públicas paulistas.
  • Nota sobre o ataque especulativoJoão Carlos Brum Torres 20/12/2024 Por JOÃO CARLOS BRUM TORRES: A disparada do dólar é um ataque especulativo do mais poderoso dos atores políticos do Brasil, o partido do mercado, cujo objetivo é impedir que o atual governo venha a haurir qualquer reconhecimento pelo excelente momento da economia
  • A chantagem do andar de cimaandar de cima 20/12/2024 Por LEDA PAULANI: Campos Neto cumpriu com bravura covarde sua missão pusilânime de iniciar o movimento de reversão das expectativas positivas que se desenhavam para o cenário econômico sob o governo Lula
  • Quem critica o governo ajuda o fascismo?elenira_vilela 18/12/2024 Por ELENIRA VILELA: Há uma esquerda que gosta de se autoproclamar revolucionária e radical, mas que é apenas sectária e coloca sua auto construção como projeto estratégico
  • O pobre de direita e a miséria da sociologiadireita 20/12/2024 Por RENATO NUCCI JR. & LEONARDO SACRAMENTO: O termo pobre de direita é um meio de segmentos da esquerda se livrar da responsabilidade que têm pela situação política e social que nos encontramos
  • A cultura dos juros altosLuiz Carlos Bresser-Pereira 19/12/2024 Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: A economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • A era de crise psíquica fabricadamãop 15/12/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Quanto maior a extensão da possibilidade de diagnósticos clínicos, menor a chance de mobilizar o sofrimento psíquico como fundamento para a revolta social
  • Realismo neoliberalDennis de Oliveira_edited 21/12/2024 Por DENNIS DE OLIVEIRA: O embate ideológico entre defesa do capital e luta contra o capital se reduz a quem defende só os ricos ou quem se preocupa com a pobreza
  • Um Banco Central desarmadoBanco Central prédio Brasília 18/12/2024 Por JOSÉ LUIS OREIRO: Se instrumentos adequados forem dados ao Banco Central, como feito na crise do Euro em 2012, o Banco Central poderá fazer o necessário pela estabilidade da moeda

Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!