A suposta volta do Estado

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
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Por BERNARDO JOÃO DO REGO MONTEIRO MOREIRA*

Considerações sobre a celebração acrítica e passiva de medidas estatais de disciplina, controle e repressão, em nome do combate ao negacionismo

No artigo “Sobre a volta do Estado – o papel do Estado no capitalismo neoliberal e seus deslocamentos na crise atual provocada pela pandemia” produzo uma crítica sobre a tese corrente de uma suposta volta do Estado durante a pandemia do Covid-19, utilizando como ferramentas as concepções teóricas da Wertkritik, do situacionismo, do marxismo estruturalista e do pós-estruturalismo deleuziano; tendo como ponto central da crítica a ignorância de tal análise à relação de complementaridade hostil Estado-mercado e da função global do Estado enquanto fator de coesão da unidade da formação social.

Em poucas palavras, o Estado nunca foi embora, apenas reorganizou-se. Aqui, como continuação de tal crítica, explorarei um tema lateral de tal texto porém central para os debates políticos correntes sobre a relação entre Estado e a “gestão da crise”: a posição problemática de estratos auto-intitulados progressistas ou à esquerda de celebração acrítica e passiva de medidas estatais de disciplina, controle e repressão, em nome do combate ao negacionismo.

Um sintoma cruel da decadência de um processo efetivo de autocrítica se manifesta quando os oponentes mais indesejáveis enunciam a verdade de nossos equívocos. Em Na pandemia, esqueceram Foucault[i], o historiador Jean Marcel Carvalho França, conhecido por seu posicionamento autodenominado liberal e frequentemente conivente com o atual presidente[ii], argumenta que houve uma inversão entre os campos “progressistas” e “conservadores” diante de posições históricas acerca do controle estatal. Enquanto os progressistas com o comum apreço pela obra foucaultiana rapidamente foram em defesa de mecanismos de disciplina e controle com uma crença quase-mística nas boas intenções do Estado e da indústria farmacêutica, os conservadores e reacionários, por motivos outros que o da crítica ao biopoder em Foucault, foram se apresentar como críticos e questionadores do poder vigente e da ordem estatal.

A curta análise provocadora de França, ainda que não dê conta do problema inteiramente, é um texto amargo e difícil de deglutir para a esquerda que agora se vê abraçada com o Estado capitalista, ainda mais quando enunciada por aqueles que servem de “argumento de autoridade” para conservadores e reacionários. Porém, o ataque normalmente não é tão atordoante; pois não totalmente ausente de reflexão, o bordão comum se enuncia com clareza: o negacionismo e a tarefa de salvar vidas são nossas prioridades atuais. Exploraremos, portanto, os dois aspectos dessa comum réplica; não apenas para analisar seus pressupostos implícitos, como para responder à inconsistência da própria posição supostamente questionadora do negacionismo.

O termo negacionismo é especialmente complexo, pois a sua disseminação exige a ocultação das bases de sua definição. O negacionista é uma figura de predicados vis: ignorante, teimoso, conspirador e insano. Tal predicação emerge em referência àquilo que o negacionista nega: a ciência, predominantemente personificada pelas instituições e autoridades de saúde, no caso em questão. Curiosamente, a posição negacionista apela frequentemente ao jargão e à teatralidade cientificista: o recurso à médicos alinhados à “causa”[iii], a defesa de remédios farmacêuticos para o tratamento de doenças[iv], a insistência cética nos processos de testagem de vacinas[v] e a denúncia de efeitos colaterais de medicamentos[vi].

Em geral, a ciência enquanto tal não é posta em dúvida em prol de outro modo de explicação e aplicação prática de tratamento (como rituais religiosos ou mágicos). O negacionismo é, em última instância, uma posição contrária a alguns consensos gerais da comunidade científica; algo que pode ser entendido como um desafio ao paradigma científico. Entretanto, o problema se encontra neste detalhe: a posição negacionista é um mote político, que tem sido mobilizado por governantes direitistas da onda trumpista como forma de colocar-se na posição de outsider para atender as demandas eleitorais de recusa da “velha política”; sendo tão dogmática e acrítica quanto seus “oponentes”.[vii]

Como forma de descartar o paradigma científico, o negacionismo denuncia uma crise de legitimidade, por meio da produção discursiva de um vínculo entre o consenso e uma agenda política inimiga. Com isso, a conspiração encontra em todas as ações das instituições em questão a influência de forças essencialmente malvadas, algo explícito no dualismo moralista do conspirador negacionista. O negacionista não é portanto anticiência, mas algo como uma posição heterodoxa motivada por inspirações político-morais reacionárias e conspiratórias.

Emerge, assim, uma questão: por que a ciência tem sido discursivamente construída como uma entidade una, coesa, sem contradições e boa, com o objetivo de combater um estrato radicalizado de reacionários revoltosos? Uma indicação talvez esteja em Giorgio Agamben. Sua posição de encarar todo o processo pandêmico como uma estratégia estatal de extensão do Estado de Exceção e dos mecanismos biopolíticos de disciplina e controle é, no mínimo, ingênua e demasiado localizada na Europa; a acusação de negacionismo a ele é, também, rasa e descontextualizada.[viii]

A crítica de Agamben, que passou por mudanças ao longo do desenvolvimento do processo pandêmico, enfatiza uma questão que explica os problemas da abordagem dogmática e cúltica da ciência: “Science’s triumphs appear today before our very eyes, and they determine in an unprecedented way every aspect of our existence. This conflict does not pertain, as it did in the past, to general theories and principles but, so to speak, to cultic praxis.[ix]

A posição dogmática frente à ciência é frontalmente contrária aos princípios científicos, em suas formulações mais básicas. A denúncia de Agamben é, portanto, referente à aceitação acrítica do que é apresentado como consenso científico, tal como um dogma; algo que se revela no próprio discurso de defesa da verdade contra as informações falsas. Com isso, a acusação de negacionismo seria a de um desvio em relação ao dogma, e não de rejeição absoluta da ciência enquanto tal; o que explica o uso do mesmo termo como acusação tanto para Agamben quanto para reacionários antivacina. Enquanto a posição reacionária deve ser rejeitada por seus pressupostos também acríticos e dogmáticos, a posição de crítica ao dogmatismo cientificista, assumida por Agamben e outros pensadores do campo crítico, deve ser analisada com atenção.

Retornamos, com isso, ao tema central deste texto: qual a relação entre a posição dogmática cientificista e a celebração por parte da esquerda “progressista” dos mecanismos de controle e disciplina do Estado?

A relação se explicita por meio da análise da segunda prioridade enunciada pelos entusiastas do Estado: a tarefa de salvar vidas. Em Soares e Collado (2020), há uma crítica frontal ao modo como o conceito de Vida é produzido abstratamente como forma de reduzir a vida singular a uma mera sobrevivência espetacular, “reduzir o bíos à pura zoé, a mera vida animal”.[x] Algo que, fazendo ressalvas à Agamben, orienta Jappe para afirmar que: “O que explica finalmente a redução dos seres humanos à “vida nua”, a serem apenas “simples corpos vivos”, não é outra coisa senão o trabalho abstrato (…). Isso leva a dois movimentos contraditórios. Por um lado, a necessidade do trabalho vivo para alimentar a valorização do valor exige a preservação da vida. Por outro, o processo de valorização não pode ser interrompido, e estamos prontos a aceitar o sacrifício de vidas humanas para garantir a continuidade da economia”.[xi]

Desta forma, podemos entender como a combinação de biopolítica (controle da vida), necropolítica (condenar à morte, tanto por violência direta quanto pelo característico deixar morrer da política negacionista) e tanatopolítica (controle pelo medo da morte) são mediações articuladas pelo Estado para produzir a vida enquanto um mero recurso para a acumulação capitalista. A incongruência entre as vidas que esperamos salvar e as vidas que são “salvas” para servir de combustível para a máquina de sacrifício do capital nos mostra que o confinamento total ou o laissez-faire do vírus são diferentes lados de uma mesma moeda.

A questão se orienta, portanto, para a forma de distribuição de tais políticas, algo especialmente evidente na atual (janeiro, 2022) gestão da crise da variante Ômicron. Após quase dois anos de pandemia, os países centrais são inundados com doses de reforço e tecnologias de controle do vírus, enquanto a periferia é deixada para morrer com sua frágil infraestrutura de saúde, diretamente decorrente dos processos históricos de acumulação primitiva permanente ao qual é relegada. Com isso, abre-se um precedente para a segregação ainda maior de populações marginalizadas, enquanto os estadunidenses e europeus portadores de um “passaporte forte”, como diria Spivak[xii], são permitidos à livre circulação.

Provoco aqui esse ponto para enfatizar a inocência dos setores da “esquerda” progressista (ou melhor, liberal) frente às boas intenções do Estado e das autoridades de saúde e sua valorização de nossas “vidas”. Enquanto nossas formas-de-vida forem reduzidas ao estatuto de recurso, a combinação bio-/necro-/tanato-política continuará a operar por meio da sentença daqueles que devem viver e daqueles que devem morrer, mas especialmente como devem viver ou morrer. Não há qualquer possibilidade de aposta segura na tirania do Capital, que pode tanto operar com governantes negacionistas quanto pró-OMS.

Não prego uma equivalência entre a predominância de uma estratégia ou outra: ambas, com suas formas específicas de violência e brutalidade, interditam qualquer abertura à emancipação. Se a geografia do vírus é a geografia do capital[xiii], a crise não se resolverá por giros internos, num cenário de pandemias cada vez mais frequentes e contagiosas num mundo superpopuloso e em aceleração progressiva de fluxos desterritorializantes do Capital; com tendência de abertura de novas rotas de invasão mais resistentes às tecnologias de segurança e higiene, uma imuno-política de pânico constante.[xiv]

Com a crescente manipulação de nossas vidas e mortes, seguimos em direção à previsão pessimista de Baudrillard acerca do futuro das intervenções hospitalares/higiênicas sobre nossos corpos: a criança que nasce em uma bolha asséptica e morre no momento em que beija a mãe; com os próprios fluxos de anticorpos coincidindo com o movimento de controle da vida pelo Estado capitalista.[xv] Se não há liberdade na ilusão negacionista do fim das máscaras e vacinas, pouco há no regime de confinamento e trabalho remoto, que intensifica a drenagem de nosso tempo para a dedicação exclusiva à produção de mais-valor e ao consumo espetacular.[xvi]

*Bernardo João do Rego Monteiro Moreira é graduando em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

Referências


AGAMBEN, G. Where are we now? The Epidemic as Politics. Londres: ERIS, 2021.

BAUDRILLARD, J. “The Child In The Bubble”. In: GARNET, E. (ed.). Impulse Archaeology. Toronto: University of Toronto Press, 2005.

FRANÇA, J. M. C. Na pandemia, esqueceram Foucault. Gazeta do Povo, 30 de setembro de 2021. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/na-pandemia-esqueceram-foucault/>

JAPPE, A. et al. Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global. São Paulo: Elefante, 2020.

MOREIRA, B. J. R. M. Sobre a volta do Estado: O papel do Estado no capitalismo neoliberal e seus deslocamentos na crise atual provocada pela pandemia. A Terra É Redonda, 21 de julho de 2021. Disponível em: <https://dpp.cce.myftpupload.com/sobre-a-volta-do-estado/?doing_wp_cron=1638925598.5527799129486083984375>

PLANT, S.; LAND, N. “Cyberpositive (1994)”. In: MACKAY, R.; AVANESSIAN, A. (ed.). #ACCELERATE: The Accelerationist Reader. Windsor Quarry: Urbanomic, 2014.

SOARES, A.; COLLADO, F. O Vírus como Filosofia, A Filosofia como Vírus: Reflexões de emergência sobre a Covid-19. São Paulo: Glac Edições, 2020.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

Notas


[i] Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/na-pandemia-esqueceram-foucault/

[ii] Como, por exemplo, nesta entrevista carregada de jargões dos bolsonaristas supostamente “moderados”: https://germanomartiniano.com.br/jean-historiador-ha-uma-aposta-no-panico/

[iii] Ver: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/18/medicos-defendem-tratamento-precoce-e-cloroquina-na-cpi-da-pandemia

[iv] Ver: https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/03/ministerio-da-saude-autoriza-uso-de-cloroquina-para-casos-graves-de-coronavirus

[v] Ver: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/anvisa-nao-aprova-importacao-da-vacina-sputnik-v

[vi] Ver: https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2020/12/15/vacinas-se-tornam-alvo-de-noticias-falsas.htm

[vii] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro-agora-adepto-ao-toma-la-da-ca-ja-foi-um-feroz-critico-da-velha-politica-relembre.shtml

[viii] Para uma resposta à altura para Agamben e seus críticos, ver: Soares, Collado, 2020 e Jappe et al, 2020; referenciados na Parte I deste texto.

[ix] “Os triunfos da ciência aparecem hoje diante de nossos olhos, e eles determinam, de modo sem precedentes, todos os aspectos de nossa existência. Esse conflito não diz respeito, como foi no passado, às teorias e princípios gerais, mas, de certo modo, à uma práxis de cultuação.” [Tradução minha]. (Agamben, 2021).

[x] (Soares, Collado, 2020).

[xi] (Jappe et al, 2020:94).

[xii] (Spivak, 2010:31; referência à como Spivak caracteriza o processo de subjetivação do Sujeito europeu colonizador, livre de predicados e livre para transitar sem restrições).

[xiii] Ver Parte I.

[xiv] (Plant, Land, 2014).

[xv] (Baudrillard, 2005).

[xvi] (Jappe et al, 2020).

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