Por LEONARDO BOFF*
O que é desordem para um serve de ordem para outro. É através de um equilíbrio precário entre ordem e desordem que a vida se mantem
Precisamos conhecer mais e melhor nossa Casa Comum, a Terra. A vida não está apenas sobre a Terra e ocupa partes da Terra (biosfera). A própria Terra, como um todo, emerge como um super organismo vivo. A Terra é viva. Por exemplo, num só grama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de micro-organismos: bactérias, fungos e vírus.[1] São invisíveis mas sempre ativos, trabalhando para que a Terra permaneça viva e fértil. A Terra assim cheia de vida é a mãe que gera todos os seres vivos.
Tal constatação nos obriga a uma reflexão mais detida sobre a questão da vida. Tanto para Albert Einstein quanto para Niels Bohr “a vida ultrapassa a capacidade de compreensão da análise científica”.[2] Entretanto a aplicação da física quântica, da teoria da complexidade (Morin), do caos (Gleick, Prigogine) e da biologia genética e molecular (Maturana, Capra) mostraram que a vida representa a irrupção de todo o processo evolucionário, desde as energias e partículas mais originárias, passando pelo gás primordial, a super novas, as galáxias, o pó cósmico, a geosfera, a hidrosfera, a atmosfera e finalmente a biosfera.
Como afirma o prêmio Nobel em biologia de 1974, Christian du Duve: “o carbono, o hidrogênio, o nitrogênio, o oxigênio, o fósforo e o enxofre formam a maior parte da matéria viva”.[3]
Foi obra especial de Ilya Prigogine, prêmio Nobel em química 1977 mostrar que não basta a presença dos elementos químicos. Eles trocam continuamente energia com o meio ambiente. Consomem muita energia e por isso aumentam a entropia (desgaste da energia utilizável). Ele as chamou, com razão, de estruturas dissipativas (gastadoras de energia). Mas são igualmente estruturas dissipativas num segundo sentido, paradoxal, por dissiparem a entropia. Os seres vivos produzem entropia e ao mesmo tempo escapam da entropia.
Eles metabolizam a desordem e o caos do meio ambiente em ordens e estruturas complexas que se auto-organizam, fugindo à entropia, produzem negentropia: entropia negativa; positivamente: produzem sintropia.[4]
O que é desordem para um serve de ordem para outro. É através de um equilíbrio precário entre ordem e desordem[5] que a vida se mantem.[6]
Isso vale também para nós humanos. Entre nós se originam formas de relação e de vida nas quais predomina a sintropia (economia de energia) sobre a entropia (desgaste de energia). O pensamento, a comunicação pela palavra, a solidariedade, o amor são energias fortíssimas com escasso nível de entropia e alto nível de sintropia. Nesta perspectiva temos pela frente não a morte térmica, mas a transfiguração do processo cosmogênico se revelando em ordens supremamente ordenadas, criativas e vitais. Esse futuro nos é misterioso.
Baste-nos a referência às investigações do médico e biólogo inglês James E. Lovelock e da bióloga Lynn Margulis[7] que constataram que vigora uma calibragem sutil entre todos os elementos químicos, físicos, entre o calor da crosta terrestre, a atmosfera, as rochas, os oceanos, todos sob os efeitos da luz solar, de sorte que tornam a Terra boa e até ótima aos organismos vivos. Ela surge destarte como um imenso super-organismo vivo que se autoregula, chamado por James E. Lovelock de Gaia, consoante a clássica denominação da Terra de nossos ancestros culturais gregos.
Ele foi precedido pelo geoquímico russo Wladimir Vernadsky (1863-1945), que elaborou o conceito de “biosfera” (1926) que propôs uma ecologia global, do planeta Terra como um todo, considerando a vida como um ator ecológico planetário. Mas foi o nome de James E.Lovelock que se impôs.
A Terra por sua vez manteve nos milhões e milhões de anos a temperatura média entre l5º-35ºC, o que representa a temperatura ótima para os organismos vivos. Somente agora começou uma nova era, a do aquecimento.
A articulação sinfônica das quatro interações básicas do universo continuam atuando sinergeticamente para a manutenção da atual seta cosmológica do tempo rumo a formas cada vez mais relacionais e complexas de seres. Elas, na verdade, constituem a lógica interna do processo evolucionário; por assim dizer, a estrutura, melhor dito, a mente ordenadora do próprio cosmos. Vale citar a famosa afirmação do físico britânico Freeman Dyson: “quanto mais examino o universo e os detalhes de sua arquitetura, mais acho evidências de que o universo sabia que um dia, lá na frente, iríamos surgir”.[8]
Esta visão sustenta que o universo é constituído por uma imensa teia de relações de tal forma que cada um vive pelo outro, para o outro e com o outro; que o ser humano é um nó de relações voltado para todas as direções; e que a própria Divindade se revela como uma Realidade panrelacional, como o Papa Francisco enfatiza em sua encíclica Laudato Si’ (n. 239). Se tudo é relação e nada existe fora da relação, então, a lei mais universal é a sinergia, a sintropia, o inter-retro-relacionamento, a colaboração, a solidariedade cósmica e a comunhão e fraternidade/sororidade universais. É o que nos falta no mundo atual.
Essa visão de Gaia poderá reencantar nossa convivência com a Terra e fazer com que vivamos uma ética da responsabilidade necessária, da compaixão e do cuidado, atitudes que salvarão a vida na Casa Comum, a Terra.
*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo (Vozes). [https://amzn.to/3zR83dw]
Notas
[1] Edward O. Wilson, A criação, p. 26.
[2] Niels Bohr, Atomic Physis and human knowledge, 1956 – capítulo Light and Life, p.6.
[3] Christian du Duve, Vital Dust, 1995, capítulo 1.
[4] Ilya Prigogine, Order out of chaos 1984.
[5] Caos: Dupuy, Ordres et Désordres, 1982.
[6] Paul R. Ehrlich, O mecanismo da natureza, 1993, 239-290.
[7] James E. Lovelock e Lynn Margulis, Gaia, 1989; 1991; 2006; Lutzemberger, 1990, Gaia; Lynn Margulis, 1990, Microcosmos.
[8] Freeman Dyson, Disturbing the universe, 1979, p. 250.