Propostas enganosas e verdadeiras para a crise planetária

Imagem: Kelly
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LEONARDO BOFF*

Qualquer modelo que pretenda dar conta da crise planetária deverá resgatar aquilo que um dia tivemos e perdemos e é guardado pelos povos originários

É já uma obviedade reconhecer que estamos mergulhados numa perigosa crise planetária. Até os negacionistas mais ferrenhos estão sentindo na própria pele (tufões, enchentes, nevascas inimagináveis, secas severas, desertificação, guerras e genocídios a céu aberto e outros fenômenos) os efeitos da crise atual. A mudança climática não poupa ninguém, chegando nos países nórticos a mais de 40oC abaixo de zero e entre nós, como no Rio de Janeiro, a 50oC com percepção de 70oC acima de zero. Tais eventos não permitem tergiversações. Muitos estão percebendo que estão embarcados num navio indo a pique e procuram soluções de todo tipo, algumas de grande perversidade.

A primeira foi excogitada no interior dos trilhardários (0,1% da humanidade) que se encontram anualmente em Davos. Projetaram a Great Reset do capitalismo, vale dizer, a grande e radical retomada do capitalismo levado ao extremo.Por meio da Inteligência Artificial, eles propõem uma espécie de despotismo cibernético, pelo qual controlam cada pessoa, todo um povo, os celulares e computadores desligados e até a pasta de dente que estou usando. Imporiam seu tipo de produção distribuição e consumo a toda a humanidade. Esse projeto é tão perverso que não tem chance nenhuma de realização. A todo poder se oporia um anti-poder da humanidade inteira e inviabilizaria seu intento.

A segunda proposta é o “capitalismo verde”. Ele se propõe reflorestar todas as áreas devastadas e a conservar todas as áreas verdes, o que parece muito atraente. Mas o capitalismo é sempre capitalismo. Este projeto não muda o sistema produtor de mercadorias, visando o lucro. O verde não questiona a perversa desigualdade social. Antes mercantiliza toda a natureza. Exemplo: não apenas lucra com a venda do mel de abelhas, mas cobra por sua capacidade de polinização. Como diz com acerto Michael Löwy, diretor de pesquisa em sociologia na CNRS de Paris num artigo sobre o decrescimento: “Não há solução para a crise ecológica no marco do capitalismo, um sistema inteiramente dedicado ao produtivismo, ao consumismo e à luta feroz por “fatias de mercado”. Sua lógica intrinsecamente perversa conduz inevitavelmente à ruptura do equilíbrio ecológico e à destruição dos ecossistemas”.

Mas há propostas promissoras, no pressuposto de que tenhamos tempo para isso. Apontaremos apenas algumas. A que mais futuro projeta é aquela economia que trabalha o território (bioregionalismo).Define o território não pela divisão convencional em municípios,mas pela configuração que a própria natureza oferece:tipo de fauna e flora, de bacias hídricas, lagos, montanhas e vales e tipo de população. No âmbito do terreno pode-se construir uma economia realmente sustentável com a utilização racional dos bens e serviços naturais, com redes de cooperativas de produção solidária, integração de toda a população, permitindo uma democracia de fato representativa, valorização dos bens culturais como as tradições e festas locais e a celebração dos personagens notáveis que viveram na região. Como tudo é produzido no local, evita-se o transporte longo. Poderíamos imaginar o planeta Terra como um tapete de milhões de territórios com economia integrada e sustentável, com mais equidade ou real diminuição da pobreza.

 Outro modelo vem sob o nome de economia solidária e agroecológica. Como o nome indica, trata-se de cooperativas que trabalham solidariamente à base da agroecologia, em sintonia com os ritmos na natureza, diversificando a produção para permitir a regeneração do território. Elas se desdobraram com ONGs Cidades sem Fome, hortas urbanas e escolares. Aproveitam-se espaços não utilizados das cidades ou inteiros terraços para uma produção de consumo local, com a participação de todos. Não se apresenta como um projeto total, mas como forma de garantir alimentos saudáveis às populações. O MST tem mostrado os efeitos benéficos e integradores deste tipo de economia solidária.

Outro modelo se apresenta como economia circular. Ela se baseia na redução, reutilização, recuperação e reciclagem e energia. Especialmente se reciclam embalagens, vidros, PET, PP e papel. Poupam-se os recursos naturais, aproveita-se o já aproveitado. Desta forma rompe-se o atual modelo linear de extração-produção-eliminação. Esse modelo ecologicamente é interessante, mas não coloca as questões da ecologia social que visa a superar as desigualdades sociais. Assim a economia circular é de alcance limitado.

Um modelo há séculos vivido pelos andinos é o bem viver/conviver. É uma economia profundamente ecológica, pois, parte-se que a Pacha Mama (Mãe Terra) tudo produz. O ser humano com seu trabalho a ajuda quando carece a abundância. Para eles o conceito-matriz é a harmonia que começa na família, se estende para a natureza, da qual cada ser é portador de direitos, até consignados na nova constituição da Bolívia e do Equador. A centralidade não é posta na economia, mas na convivência pacífica e na relação amigável para com a natureza, as águas, as florestas e as montanhas. Quem sabe, quando um dia a humanidade despertar para a sua profunda pertença à Terra e à natureza, o bem-viver/conviver será um ideal a ser vivido por todos.

Há ainda o movimento da economia de Francisco e Clara proposta pelo Papa Francisco. Depois de fazer uma contundente crítica ao sistema do capital e de sua cultura consumista, propõe uma fraternidade universal. Esta vigora entre todos os seres e entre os humanos, todos irmãos e irmãs (sua encíclica Fratelli tutti). A centralidade é ocupada pela vida em todas as suas formas, especialmente a vida humana, com particular cuidado com a vida dos mais vulneráveis. A economia e a política estariam a serviço da vida em primeiríssimo lugar e somente depois ao mercado. É um ideal generoso, ainda em gestação.

Seguramente o projeto do ecosocialismo é o que mais tem chance de realização histórica. Não tem nada a ver com o socialismo vivido no estilo soviético, mas quer realizar o ideal maior de dar a cada um segundo a sua necessidade e cada um oferecer as suas possibilidades. Esse projeto é o mais avançado e sólido. Supõe um contrato social mundial com um centro plural de governança para os problemas globais da humanidade, como foi o caso do Coronavírus e agora da mudança climática.

Os bens e serviços naturais são de todos e se propõe um consumo decente e sóbrio que incluiria também a comunidade de vida que também precisa dos nutrientes necessários para a sua sustentabilidade. Ganharia mais fôlego se este projeto fosse além de seu sociocentrismo ecológico e incorporasse os dados mais seguros da nova cosmologia e biologia que consideram a Terra e a vida humana como um momento do grande processo cosmogênico, biogênico e antropogênico. O ecosocialismo ecológico seria uma emergência deste processo global.

Por fim, qualquer modelo que pretenda dar conta da crise planetária deverá resgatar aquilo que um dia tivemos e perdemos e é guardado pelos povos originários: nossa profunda pertença e comunhão com a Mãe Terra e com todas as suas criaturas. Esta visão ancestral para os povos originários, será, segundo o pensador Ailton Krenak (cf. Futuro ancestral), o nosso futuro, aquele que nos garantirá continuar neste planeta. Esperamos que os tempos da Terra nos sejam generosos para viver esse sonho.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes) [https://amzn.to/3RNzNpQ]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES