A tragédia sem farsa

Imagem: Liliane Paula
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Por BARUC CARVALHO MARTINS*

Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal

No dia 5 de outubro, tomamos um duro golpe contra os valores mais básicos que as tradições iluminista e socialista nos legaram. Temos enfrentado, sem sucesso, o crescimento da extrema direita no país e, como resultado, estamos perdendo, a passos largos, território na disputa hegemônica de nossa sociedade.

De início, é preciso afirmar a largura e profundidade dessa derrota em toda a sua extensão para que seja possível elaborar estratégias de enfrentamento que estejam assentadas em bases sólidas.

Perdemos e perdemos muito. Não foi a perda da esquerda institucional, foi a perda de toda a esquerda. Partidos mais radicalizados, como PSTU e o PCB estão cada vez menores e sem poder de mobilização. O PSol reduziu de tamanho, perdeu todas as prefeituras e boa parte das cadeiras de vereança, ainda que tenha crescido em termos de votos absolutos e conquistado novas cadeiras em algumas regiões. O PT, por outro lado, cresceu timidamente, muito longe do que precisava.

Mesmo com a ida de Guilherme Boulos ao segundo turno, sentimos essa conquista como uma derrota, haja vista que ele sequer ficou em primeiro lugar, sendo que o bolsonarismo se fragmentou em São Paulo em duas candidaturas que quase disputaram sozinhas essa segunda volta. Além disso, em capitais onde há segundo turno, os candidatos “progressistas” estão muito mal localizados, em especial, nos estados de Rio Grande do Sul, Sergipe e Ceará.

É verdade que a conciliação de classes com a direita tem parte da resposta para essa derrota, mas o que explica campos mais radicalizados não conseguirem se recompor, sejam em termos eleitorais ou organizacionais? Seria só a estratégia de direitização da esquerda em termos discursivos, como aponta Vladimir Safatle, ou de capitulação política para a estrutura do Estado? À essa altura, defender essa tese como argumento soa como olhar para o problema somente de um ângulo, tentando achar um elemento externo para expiar a nossa responsabilidade nessa derrota.

O fato é que essa derrota é uma derrota generalizada de nossos modos de organização, de não entender as novas dinâmicas de classe em jogo e de não conseguir interpretar bem o novo momento do processo de acumulação de capital que vivemos atualmente: mais financeirizado, mais informacional, mais entranhado numa lógica neoliberal que coloca nas costas do indivíduo uma responsabilidade que é do Estado e o transforma num “gestor” de sua própria vida.

Com isso, gastamos tempo demais discutindo Jair Bolsonaro e o bolsonarismo e pouco discutindo como vamos lidar com o fato de que a nossa juventude está cada vez menor e mais velha, os movimentos sociais estão cada vez mais burocratizados e diminutos e nossas ferramentas sindicais não são vistas como importantes instrumentos de luta pela própria classe.

Estamos, enfim, no meio de um movimento acelerado de entropia que só parece que será interrompido quando algo novo surgir. E esse novo pode não ser bem algo de esquerda, mas um “Paes” da vida, que mistura um bolsonarismo sem Jair Bolsonaro e parte da “galera progressista” sem se comprometer, aliás, com nenhuma pauta de esquerda. Apenas não é um troll abominável, como é o caso dos candidatos bolsonaristas raiz.

Preocupa, por isso, o fato de que durante todo esse tempo as eleições municipais foram tratadas como sendo simplesmente “locais” quando os grandes artífices do caos que a gente quer tanto combater (a direita como um todo) sempre a trataram como estratégica. Coligações dos partidos de esquerda com o União Brasil, PSD, Republicanos, PP e o próprio PL, por exemplo, foram tomadas como contingenciais com o objetivo de atingir um fim pragmático, qual seja: melhorar a vida das pessoas por meio de uma eleição.

A tradição socialista é suficientemente clara sobre o resultado que isso gera. Mesmo que, superficialmente, sejam, de fato, governos melhores do ponto de vista da garantia de alguns direitos trabalhistas e sociais. Exemplos fracassados dessa tática temos aos montes, como é o caso de Marcos Xukuru, uma importante liderança indígena que se candidatou pelo Republicanos no estado de Pernambuco e teve a candidatura cassada, inclusive no TSE, por conta de uma acusação falsa de crime de incêndio. Como se percebe, o resultado desse giro pragmático é a Justiça afirmando o seu lugar de classe.

Como lidar com isso, como confrontar a direita, então? Lembrando-se dos pressupostos da luta socialista: (i) vivemos em uma sociedade de classes; (ii) essa sociedade existe em virtude de uma desigualdade social e econômica mais profunda; (iii) essa desigualdade é mantida por uma luta hegemônica; (iv) a luta hegemônica não tem só um sentido, pois nós também temos agência e podemos disputá-la.

Como vivemos um momento de rebaixamento da esquerda, dois sintomas disso têm se afirmado por meio de uma despolitização frequente entre os seus membros e de uma perda de capacidade de mobilização mais espontânea, que é capturada por mecanismos institucionais de Estado, como o Fundo Partidário (slogans de campanhas anteriores como “Tô na rua sem receber um real, tô na rua por um ideal”, por mais precarizantes que sejam, deixaram de circular).

O correto seria perguntar: por onde andam os militantes? Essa figura pré-histórica que pegava tarefas sem cobrar por isso, que acumulava politicamente etc. Talvez estejam em algum divã para falar sobre o excesso de tarefas e de horas de trabalho gerados pelo abuso dos pedidos realizados por direções esclarecidas, entre outros. Mas essa é uma figura que faz falta. Não tanto pelo que foi, mas, sim, pelo potencial de estruturar e contribuir com a direção dos movimentos sociais.

Em resumo, não temos mais militantes, perdemos as condições materiais de mobilizar e as substituímos por um convencimento que se restringe ao plano retórico. Para sair disso, não basta investir em novas formas de comunicação, sobretudo pelo uso aplicado da internet; pois, se a hegemonia é ditada hoje pela extrema-direita, significa que qualquer disputa em torno de “palavras de ordem” e de escolhas linguísticas são insuficientes, porque há todo um mundo para “além da linguagem” que precisa ser conquistado. No trato individual, na relação dialógica cultivada cotidianamente. O que implica o desafio de nos reaproximar das pessoas de maneira física, presencial, intensa, em atividades de longo prazo. E, para fazer isso, faltam-nos… militantes.

Como a história sempre segue seu curso, há algo ainda em disputa. E o que há de mais essencial em disputa hoje é, justamente, a natureza daquilo que chamamos de esquerda. No fim dessa contenda, o nosso campo será constituído majoritariamente por uma esquerda nos termos da tradição latino-americana ou será uma esquerda de base estadunidense (Partido Democrata)? Ou seja, será uma esquerda socialista ou uma esquerda liberal?

Discordo dos que veem essa disputa como algo já acabado, em que o pêndulo encerrou o seu ciclo, terminando por eleger o último polo como vitorioso. Acredito, como mostram as vitórias pontuais que setores mais ou menos à esquerda do campo progressista tiveram, que essa disputa segue ainda em aberto e que a chave que vai definir a forma que vamos dar à esquerda está na capacidade que teremos de formar novos militantes.

*Baruc Carvalho Martins é pós-doutorando em educação na UERJ.


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