A verdade inconveniente da Ucrânia

Imagem: Mathias Reding
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Por GABRIEL VEZEIRO*

A história ajuda a compreender a cilada que o “ocidente” caiu ao dar origem à crise na Ucrânia

É visão comum que, no decorrer da Guerra do Peloponeso, Atenas gradualmente evoluiu para um império expansionista. A leitura metafórica do conceito espinosista de “multidão” é bastante esclarecedora se quisermos entender a crise da Ucrânia no contexto do império ocidental com epicentro nos EUA. Os ocidentais ficamos horrorizados quando vemos civis mortos por bombardeios russos na Ucrânia, mas geralmente não ficamos tão horrorizados e mais propensos a aceitar justificativas oficiais quando ouvimos que civis são mortos por forças americanas, israelitas ou europeias no Iraque, Síria, Iêmen ou Gaza.

A mídia corporativa ocidental desempenha um papel fundamental nessa percepção. Liev Tolstói afirmava que um número incalculável de causas se apresenta quando ficamos na tona e cada causa separada ou série inteira de causas parecem igualmente válidas em si mesmas e igualmente falsas por sua insignificância em comparação com a vasta magnitude dos acontecimentos. Se quisermos entender os acontecimentos com certa subtileza, precisamos nos aprofundar nas fontes, para apanhar no possível a tendência principal e, portanto, evitar sermos enganados pelas nuances. Os preconceitos de massa do mainstream ocidental não são facilmente superados. O ataque terrorista de 11 de setembro, o caos da Guerra do Iraque, a guerra de Síria e a saída dos EUA do Afeganistão e assim por diante, todos falharam em quebrar os nossos petrificados preconceitos.

O exemplo da antiga Atenas ainda significa para nós um regime que buscava espalhar a liberdade individual e coletiva ao mais amplo escopo possível. A tradição liberal-individualista de hoje estabelece poucos obstáculos e sinalizações para a legitimação de desejos como necessidades porque seu próprio credo valida o direito humano de romper restrições. Liderado pelo império dos Estados Unidos, o Ocidente caiu na cilada que Tucídides atinadamente discerniu mesmo sendo um beco de difícil saída.

Nos últimos anos, o conceito de “Cilada de Tucídides” foi amplamente invocado nos círculos acadêmicos e políticos. De acordo com a leitura convencional do conceito, a história mostra que um poder em ascensão está destinado a desafiar o hegemon estabelecido, e que o conflito entre os dois é inevitável. No contexto atual, e por razões óbvias, o conceito é amplamente utilizado. Uma possível leitura de Tucídides mostra que talvez esta interpretação dominante é simplista e pode servir de alerta para prever a inevitável expansão, ou superextensão, de um imperialismo formalmente democrático. Como essa percepção é altamente relevante para nossa discussão sobre as fontes da crise na Ucrânia, merece uma olhada.

Antes de examinarmos o conteúdo específico, é útil entender a fasquia de Tucídides, um historiador e general ateniense, conhecido por sua História da Guerra do Peloponeso, que narra a guerra entre Esparta e Atenas no século V aC. Tucídides foi acunhado de “pai da história científica” por causa de seus rígidos padrões de recolhida de evidências e análise de causa e efeito sem referência à intervenção dos deuses. Para nossos propósitos aqui, a História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, além de seus padrões sem precedentes de objetividade e consequente precisão, também é “uma posse para todos os tempos”, escolmada para aqueles “que desejam olhar para a verdade pura sobre eventos passados e aqueles que nalgum momento futuro, de acordo com a natureza humana, repetir-se-ão de maneiras semelhantes ou comparáveis” (Tucídides 2001, 14). Vale a pena notar como Tucídides argumenta que eventos semelhantes se repetiram na história por causa da persistente natureza humana. Por essas razões, devemos abstrair seu diagnóstico da natureza humana e considerar se a crise de hoje compartilha a mesma lógica. A Guerra do Peloponeso de 431-404 aC foi travada por Atenas e seu império contra a Liga do Peloponeso liderada por Esparta.

O conflito foi memorável não apenas porque “ambos os lados entraram nele florescendo em preparação geral e ao ver que o resto dos helenos estavam se alinhando com um ou outro”, mas também porque “era acompanhado por tais sofrimentos como nunca afligiu a Hélade em qualquer período de tempo comparável. Pois nunca tantas cidades foram capturadas ou deixadas desoladas. (…) nem havia tantos homens exilados ou massacrados, tanto na própria guerra como por facção”. (Tucídides 2001, 3.14) Tucídides atribui explicitamente a guerra à expansão do poder ateniense: a “crescente grandeza ateniense e o medo resultante entre os lacedemônios tornaram inevitável a guerra”.

Com base nessa passagem, muitos estudiosos interpretam a cilada de Tucídides como significando que o poder ascendente necessariamente colide com o hegemon estabelecido. Essa interpretação, no entanto, é feita do ponto de vista do hegemon, e atende a seus interesses ao retratar as potências emergentes como causadoras do problema, justificando a atuação das potências estabelecidas na ação militar contra elas. Uma interpretação menos tendenciosa é que a expansão do imperialismo democrático representado por Atenas inevitavelmente forçou uma reação de Esparta. É uma visão comum entre os estudiosos que, no decorrer da Guerra do Peloponeso, Atenas gradualmente evoluiu para um império expansionista, e há duas explicações complementares para o porquê disso.

A primeira é uma leitura político-econômica, que vê no Estado ateniense um quadro de antagonismo de classe entre as elites rurais, aristocratas ricos e conservadores, os cidadãos radicais da área portuária do Pireu e as classes baixas pobres. Enquanto as camadas da elite se opunham à guerra porque temiam a destruição, os radicais do Pireu, comprometidos na indústria e no comércio, servindo como remeiros navais e com seus interesses e destinos intimamente ligados ao comércio marítimo e à marinha, a favoreciam. A tragédia foi que se tornou gradualmente o pulo determinante da política interna e externa ateniense, o que levou a cidade-estado a enveredar pelo caminho da expansão imperialista.

Uma segunda explicação avançada para a expansão ateniense tem a ver com o caráter nacional da cidade. Muitos historiadores sustentam que a causa do imperialismo ateniense reside na natureza “ousada” e impetuosa da população da cidade. De fato, Tucídides enfatiza repetidamente essa característica dos atenienses em seu livro. O general ateniense Péricles, por exemplo, é registrado como elogiando o caráter “ousado” de Atenas, considerando-o responsável pela grandeza do império da cidade. Péricles chegou ao ponto de se gabar de que os atenienses haviam “obrigado” todos os mares e terras a permitir o acesso à sua ousadia, permitindo-lhes deixar monumentos “imortais” para si mesmos “em todos os lugares”.

Vale a pena pôr em destaque que para denotar o conceito de “ousadia”, Tucídides usa a palavra tolma; esse termo tem uma compreensão semântica mais amplo do que “afoiteza”, sugerindo algo próximo à imprudência. A “ousadia” do caráter ateniense é enxergada por Tucídides como tendo três manifestações. Em primeiro lugar, diz-se que os atenienses como raça se caracterizam por uma ousadia nativa que lhes permite, sem esforço, ser iguais a outros que se esforçam para cultivar virtude (Tucídides 2001, 2.39.4). Em segundo lugar, os atenienses são considerados “ousados” no sentido de que abandonaram sua cidade e embarcaram em seus navios, tornando-se um povo marítimo no sentido literal (Tucídides 2001, 1.18.2).

Essa experiência pode ter tido um impacto profundo na formação do caráter ateniense, uma vez que o povo da cidade foi forçado a desistir da sua pátria, bem como de todas as suas amarras fixas, incluindo os grilhões da tradição e piedade para com devanceiros ancestrais e os deuses. Isso leva à terceira manifestação do caráter “ousado” dos atenienses, sua “paixão erótica”. Presente no relato de Tucídides apenas como um fio oculto, esse conceito, no entanto, tem implicações importantes ainda que a palavra eros e seus derivados aparecem poucas vezes no livro de Tucídides, cada uma delas está num momento crucial, desempenhando um papel significativo no tratamento do antigo escritor do imperialismo ateniense e da psicologia política de Atenas.

A razão é que os atenienses, tendo abandonado em grande parte os dispositivos tradicionais usados para apoiar a comunidade e o patriotismo, precisavam recorrer a dispositivos extraordinários para unir um povo individualista e intemperante para um empreendimento imperialista. Esses dispositivos incluíam o apelo ao Eros, que era individualista, até egoísta, mas poderia levar à mais intensa devoção e disposição ao sacrifício.  Como resultado, o imperialismo ateniense para Tucídides foi “composto duma combinação volátil de paixão erótica e ousadia, qualidades tecidas no tecido do regime ateniense”. A devoção à democracia não era “dedicação ao bem comum como tal, mas sim a uma espécie de liberdade privada de restrições de todos os tipos, uma liberdade de seguir aonde a paixão levar”.

Uma terceira explicação avançada para a expansão ateniense diz respeito ao regime democrático da cidade. Talvez seja difícil para muitos no Ocidente entender como uma democracia fundada em princípios como liberdade, igualdade e estado de direito pode envolver no imperialismo. Esse aparente paradoxo é explicado com alguma precisão por um autor que argumenta que os democratas tendem a ser zelosos com seus valores e instituições, em nome dos quais mostram uma forte compulsão para pregar. Compreender isso nos coloca em uma posição melhor para apreciarmos como os atenienses justificaram seu império. Sentiam que o império assegurava a paz e unia as dependências da cidade, protegendo-as da invasão e do governo de povos ditatoriais como os persas e ajudando-os a manter ou estabelecer “democracias”. Além disso, os atenienses também acreditavam que seu império era bem-vindo por seus súditos porque a estes últimos era garantida mais justiça pelo estado de direito ateniense do que pela força bruta (Tucídides 2001, 1.75.1, 1.77.2).

Junto com os argumentos acima, proclamados pelos próprios atenienses, sugere mais duas razões que os atenienses poderiam ter usado para tentar conciliar as contradições entre sua democracia interna e o domínio imperial externo. A primeira é que os atenienses precisavam da riqueza que o império proporcionava se quisessem manter práticas democráticas na casa, e a segunda é que o império satisfizesse a necessidade doméstica de honra e poder.

Ainda que as explicações exprimidas tendam a explicar a expansão ateniense apenas duma perspectiva, todas elas deitam alguma luz sobre a questão e, juntas, têm o potencial de formar um quadro completo. Por trás dum fenômeno complexo como a emergência dum império democrático, certamente há razões que dizem respeito à economia política, ao caráter nacional e ao regime político. É nesse sentido que as três explicações se complementam. Para muitas pessoas, as semelhanças entre o império democrático liderado pelos EUA e o imperialismo liderado por Atenas são, sem dúvida, óbvios.

Pode-se argumentar que as razões que levaram Atenas a se engajar na expansão imperialista também se aplicam aos atuais Estados Unidos. Por exemplo, a necessidade do império dos EUA de explorar mercados e recursos no exterior fornece um forte impulso político e econômico para a expansão. De feito, existem inúmeras obras e autores que criticam os Estados Unidos a partir dessa perspectiva pelo lançamento da Guerra do Iraque. Moramos na dinâmica da bolha imperial explicada pelo analista político americano John Mearsheimer. A análise crítica de Mearsheimer, por exemplo, há tempo destacou o realismo exibido pelo lado russo como uma resposta direta a uma sucessão de movimentos ocidentais ameaçadores e com base num neoliberalismo errado. Mearsheimer referiu-se repetidamente à derrubada do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em fevereiro de 2014, como um golpe e acrescentou que havia “elementos fascistas significativos entre os manifestantes, que estavam armados, [e] há matança no Maidan”.

“Se tiver um golpe em Kiev, e algumas das pessoas que chegam ao poder têm tendências fascistas ou são fascistas, como você quiser definir esse termo, isso terá consequências realmente enormes”, disse Mearsheimer. O estudioso argumentou que as três “causas profundas” da crise na Ucrânia foram a expansão da OTAN, a expansão da UE e os programas de “promoção da democracia” do governo dos EUA (quer dizer, mudança de regime). Mas o realmente assustador em seu prognóstico é que os EUA vão fazer tudo o que puderem para deter a ascensão da China e impedir que ela se torne a hegemonia regional no hemisfério oriental, e que a Austrália deveria alinhar-se com os EUA nessa batalha ou então enfrentaria a ira de Washington.

Como entidade nacional pouco apegada à tradição, os Estados Unidos também apresentam características de ousadia e impetuosidade. Isso é bem demonstrado pelas várias guerras em que o Ocidente se envolveu sob a liderança dos EUA. Há também semelhanças e paralelismos impressionantes na maneira como o império ateniense e o império liberal ocidental liderado pelos EUA pregava a democracia. Mesmo os dilemas enfrentados pelos dois impérios e as justificativas apresentadas para sua existência são notavelmente análogos.

Por essas razões, não é difícil ver a lógica por trás da visão de que, no caso da crise da Ucrânia, o Oeste caiu no beco da Cilada de Tucídides e não tem saída. Por exemplo, alguns podem objetar que o sistema político ateniense não pode ser considerado democrático, uma vez que se baseia na escravidão. Essa é uma questão legítima, mas está resolvido se subscrevermos a concepção de Aristóteles dos tipos de regime. Há certamente diferenças profundas entre os regimes antigo e contemporâneo, mas enquanto as características definidoras são as mesmas, as diferenças não são decisivas.

A análise de Aristóteles é principalmente filosófica no sentido de que transcende contextos locais, bem como épocas específicas. Para alguns, as características definidoras dos regimes são se o poder político é distribuído de acordo com a virtude, a riqueza ou a liberdade, e acho que esses critérios ainda se aplicam aos regimes contemporâneos. As democracias ocidentais empraçadas consideram que o conceito tradicional de virtude interior não tem lugar nos assuntos públicos, e que a política deve ser baseada numa franquia geral de indivíduos igualmente livres. Certamente, cobiçar riqueza ainda desempenha um papel importante na democracia ocidental, de modo que o regime ocidental contemporâneo poderia bem ser tomado como uma mistura de imperialismo (capitalismo), oligarquia (neoliberal) e democracia formal, algo já previsto por Aristóteles.

Espinosa está ciente da “necessidade afetiva e racional das instituições jurídicas, como materiais incontornáveis de construção da imaginação e da razão políticas”, mas está mais preocupado com “sua falsa transcendência, a sua capacidade de enfeitiçar a multidão e seduzir eruditos, de aparecer no alto ou contra nós, na imponente, mas imaginária majestade da potestas, com sua aura residual de divindade”. Para Espinosa, esse núcleo de mistificação é extraordinariamente resiliente, e os efeitos ideológicos que exerce são extraordinariamente poderosos” operando através da doutrina e prática do constitucionalismo, que corre o risco de fetichização e reificação das constituições. O atual zelo mundial pelo constitucionalismo liberal ocidental seria então um bom exemplo de tal mistificação e fetichização.

O que Habermas chamou de “patriotismo constitucional” mostra outra ligação fulcral entre imperialismo e constitucionalismo que tem a ver com sua origem comum no conceito de “multidão”. No pensamento político de Espinosa, essa é uma ideia central e complexa. Para fins de simplificação, pode “ser concebida como uma matriz geradora para a subjetividade política coletiva e individual, um ‘tecido’ social exclusivamente plástico e totipotente (totipotencia é a potência celular máxima, que dá à célula a capacidade de dirigir o desenvolvimento total dum organismo). Por outras palavras, é equivalente à “massa”, que é a base de classe definidora das democracias liberais contemporâneas, ecoando a teoria política de Aristóteles.

É, portanto, concebível que a parte de massa duma sociedade pode ser mais capaz do que a parte de elite dessa sociedade para provocar, ecoar, invocar ou unir a parte de massa semelhante doutra sociedade. A leitura metafórica acima do conceito de “multidão” é bastante esclarecedora se quisermos entender a crise da Ucrânia no contexto do império ocidental liderado pelos EUA. Se teoricamente nada limita a magnitude da multidão é uma capacidade inerente à pura força, à própria potentia, da multidão. Os corpos podem se unir, e os corpos que esses corpos unidos formam podem se unir por sua vez. Os únicos limites para uma multidão seriam físicos. Os únicos limites físicos finais são os do próprio globo terrestre.

Assim, vista em relação às potentia da multidão, a demarcação do território é sempre apenas artificial ou convencional. Como resultado, assistimos ao surgimento dum império como uma nova forma de imperialismo no mundo globalizado de hoje, que é capilar, horizontal, acéfalo, rizomático e enfaticamente não metropolitano; não está situada em nenhum lugar: está em toda parte. Por tanto, o imperialismo é constitucionalismo em grande escala. Se o imperialismo na fase tardia e pós-colonial tornou-se um motor para a propagação de “constitucionalismos” locais em vez duma grande versão metropolitana, a chegada do Império testemunha uma renovação sem precedentes das pressões sobre os “constitucionalismos locais” para a convergência num nível moi limitado de modelos institucionais. O constitucionalismo persiste e prospera como nunca antes, para melhor e para pior. A força da juridificação, a fetichização e a reificação de arranjos institucionais particulares teima em perdurar. O império centralizado nos EUA funciona assim como uma bolha gigante que trabalha lentamente para absorver multidões e nações que ainda não foram convertidas em estados clientes imperiais.

 

Verdade inconveniente

A expansão da OTAN/UE e o “projeto de democracia liberal” empreendido pelo Ocidente na Ucrânia não levaram em conta e consideração os interesses estratégicos russos e os líderes ocidentais não mostraram a devida cautela ao considerar as prováveis consequências. Mesmo se tenha demonstrado com sucesso que a Rússia foi tomada como bode expiatório após a queda do Pacto de Varsóvia e a conversão da OTAN numa máquina de guerra sem outro alvo que a sua maquinaria militar a serviço do império realmente existente, apesar de seu declínio evidente quanto inexorável. Nesse sentido, a Guerra do Afeganistão deu uma contribuição crucial e particularmente lamentável, expondo definitivamente como ilusórias alegações de supremacia militar dos EUA.

A guerra mais longa da história dos EUA já deveria ter levado os americanos a refletir sobre as consequências de sucumbir às tentações imperiais num mundo onde o império há muito se tornou obsoleto. Quando as forças americanas ajoelharam em lugares distantes como Panamá, Iraque, Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, Sérvia, Afeganistão, Sudão e Filipinas ao Afeganistão, Iraque, Líbia, vários países da África Ocidental, Somália, Iraque (pela terceira vez) ou Síria, a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou do Congresso classificou-se como algo entre incidental e desnecessário.

Para ações militares que variaram de invasões em grande escala a assassinatos como mera demonstração de força, qualquer justificativa que o “líder do Mundo Livre” escolhesse oferecer era considerada suficiente. Com a vassalagem da Europa em mente e confundindo os interesses de EUA com os da UE. Especialistas belicistas, especialistas em política externa e funcionários do governo, ano após ano, desastre após desastre, presunçosamente esquivam-se da responsabilidade pelos fiascos militares que orquestram e passaram a pressionar pela expansão da OTAN na Europa Central e Oriental após a queda do Muro de Berlim, violando um acordo para não estender a OTAN além das fronteiras de uma Alemanha unificada e antagonizando imprudentemente a Rússia.

No entanto, não se aprofundou nas razões do preconceito, bem como no inevitável erro do Ocidente na Ucrânia. De fato, os erros e os preconceitos do Ocidente têm profundas raízes históricas e ideológicas. Sob a liderança dos EUA, o Ocidente não conseguiu aprender com erros semelhantes no passado e não demonstrou discernimento sobre a natureza erradas das suas próprias normas políticas. Pior de tudo, o Ocidente caiu na armadilha que Tucídides identificou corretamente, uma cilada cujas origens estão na natureza e no destino da multidão.

Como Mearsheimer aponta  –algo que na narrativa oficial da mídia é ignorado de propósito – Putin deixou explícito que a incorporação da Ucrânia e da Geórgia à OTAN representaria uma “ameaça direta” à Rússia, e que a Rússia nunca permitiria que isso acontecesse. De fato, a invasão russa da Geórgia deveria ter demonstrado plenamente essa determinação. Enquanto isso, a UE também estava se expandindo; em maio de 2008, lançou a iniciativa da Eastern Partnership (Parceria Oriental), com os objetivos declarados de promover “a prosperidade” em países como a Ucrânia e integrá-los na economia da UE. Dada a forma como a UE e a OTAN se expandiram em sintonia uma com a outra, os líderes russos compreensivelmente, considerou este movimento como abrindo caminho para uma maior expansão da OTAN.

O alvo do Ocidente de “promover a democracia” na Ucrânia é consistente com a filosofia e os valores declarados pelas elites políticas do Ocidente e também defendidos pelas pessoas comuns. Sua estratégia tem sido apoiar aqueles que estão no terreno na Ucrânia que estão buscando agendas políticas de estilo ocidental, mantendo pressão sobre os governos em Kiev por todos os canais disponíveis. O efeito dessas políticas na Ucrânia foi completamente desestabilizador.

Os Estados Unidos têm um orçamento militar que excede o de todos os seus principais adversários e aliados juntos, opera quase mil bases em todo o mundo, destrói países um após o outro por sanções e subversão, claramente quer mudar regimes e pratica jogos de guerra nuclear nas fronteiras de Rússia e China. Suas pretensões hegemônicas mundiais são abafantes e assustadoras. O paradoxo contraproducente é que se alguma nação resiste a esse ataque global, ela também deve ser imperialista. Porque os Estados Unidos e seus aliados travam guerras país após país há décadas, esculpindo faixas de destruição por cidades, vilas e vilarejos numa escala muito maior do que até agora vimos na Ucrânia (os EUA e seus aliados lançaram mais de 337.000 bombas e mísseis, ou 46 por dia, em nove países somente desde 2001).

O que não diminui a gravidade da guerra na Ucrânia, pelo contrário, mostra-nos a normalidade, sem interrupção, dos bombardeios devastadores de cidades e áreas povoadas nas últimas décadas: de Mosul no Iraque a Raqqa na Síria, de Mariupol na Ucrânia a Sanaa no Iêmen ou Gaza na Palestina. Porque nas guerras as mortes de civis são inevitáveis, mesmo que os agentes envolvidos aleguem serem não ‘intencionais’. O que não exonera moralmente a ninguém.

Victoria Nuland, Secretária de Estado Adjunta dos EUA para Assuntos Europeus e Eurasianos (principal vice-assessora de política externa de Dick Cheney.) estimou em dezembro de 2013 que os Estados Unidos sozinhos tinham investido mais de US$ 5 bilhões na Ucrânia desde 1991 para atividades de “promoção da democracia”; o National Endowment for Democracy, apoiado pelo governo dos EUA, financiou mais de 60 projetos destinados a promover a sociedade civil na Ucrânia, como declarado por Mearsheimer em 2014.

Forças nazistas, como observado por V. Engel, desempenharam um papel importante na chamada “revolução da dignidade” na Ucrânia (2014). A sua participação ativa nos eventos do Maidan levou ao feito de que o protesto social contra autoridades corruptas no final de 2013 – início de 2014 rapidamente se tornou deturpado por grupos paramilitares de ideologia neonazi. Esses movimentos certamente contribuíram para a chamada “Revolução Laranja”, que ocorreu na Ucrânia em 2004. Para o mundo também foi descobrir que o nacionalismo ucraniano tornou-se a ideologia básica da sociedade ucraniana moderna, que permitiu que os atores políticos locais “forjaram espadas para berrar” em apenas alguns anos e mudassem a proporção “ucraniano-russo” em favor do ucraniano, especialmente nos territórios ocidentais. Como observa D. Gudimenko, “o nacionalismo radical ucraniano é único. Às vezes é distinguido por seu caráter paranoico, agressividade desenfreada e extremismo. Além disso, essa ideologia realmente se tornou o Estado na Ucrânia. Uma característica distintiva dos nacionalistas radicais ucranianos deve ser notada: eles têm ódio, ‘mas paixão ardente’ – à Rússia. O nacional-socialismo ensina que o nacionalismo altamente exagerado pode comprometer o existencialismo de outras nações. Por exemplo, Hitler (1935) adotou o chamado Leis de Nuremberg, que criaram a base legal para a perseguição de judeus na Alemanha. Desde então, o antissemitismo tornou-se não apenas legal, mas também um direito prescrito.

Um feito interessante é que na 74ª sessão da Assembleia Geral da ONU, por iniciativa da Rússia, foi adotada uma resolução por votação para combater a glorificação do nazismo. O documento foi apoiado por 133 estados, e 52 países se abstiveram: “Combatendo a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”. Contra, apenas os EUA e a Ucrânia.

Quando um regime não consegue lidar com as rápidas transformações que emergem do nível de base da sociedade, a desordem é inevitável, e esse padrão foi bem demonstrado no Euromaidan. Essa “revolução” pode ser categorizada como um coup d’état de feito, já que o presidente democraticamente eleito foi deposto por meios obviamente ilegais e os aplausos vicários do Ocidente perante o que acontecia nas zonas mineiras do Leste. Porém, as manifestações e a repressão não fazem uma revolução. A força por trás dos protestos de Maidan contra Yanukovych, apoiados pelos EUA, veio de milícias neonazistas treinadas no oeste da Ucrânia, organizadas em brigadas e enviadas para Kiev.

No jornal britânico The Guardian o colunista Seumas Milne observou que políticos norte-americanos proeminentes como o senador John McCain estavam na Praça Maidan de Kiev em 2014, trabalhando ao lado de extremistas de extrema direita. Milne lembrou que “o presidente ucraniano foi substituído por um governo selecionado pelos EUA, numa tomada de poder totalmente inconstitucional ” e “o embaixador dos EUA regateou com o departamento de estado sobre quem comporia o novo governo ucraniano”.

Ao reduzir a guerra da Ucrânia a um confronto entre eles e Putin, a imprensa hegemônica e não poucos intelectuais ocidentais descartam como insignificantes milhões de russos do Donbass que, por mais críticos que sejam, apoiam em preferência a intervenção russa a serem bombardeados pelo seu governo ou a mãos de fanáticos neonazistas. Acreditam e consentem, ao parecer, uma vara de medição dupla: a dominação global americana, que os neocons e intervencionistas neoliberais afirmam, é benigna, uma força para o bem, “hegemonia benevolente”.

Mas a mídia ocidental dominante, devido ao seu preconceito profundamente aferrado, nunca viu a reviravolta dessa maneira ou usou um termo tão negativo para descrevê-la. Enquanto isso, o Ocidente em seu impulso de expansão provou ser incapaz de levar em consideração os interesses estratégicos da Rússia ou agir com prudência, de olho nos resultados das suas iniciativas. Temos o direito de perguntar: os americanos permitiram que potências hostis colocassem seus vizinhos como Canadá e México em sua órbita?

A Rússia, devido à sua fraqueza nos primeiros anos pós-soviéticos, pode ter sido incapaz de resistir às fases iniciais da ampliação da OTAN e da expansão da UE. Hoje, porém, a situação é diferente. A crise da Ucrânia pode ser vista como cinco ameaças à Rússia: restringe as escolhas da política externa russa; ameaça a segurança e a soberania do país; desafia toda a ordem pós-soviética; incentiva o crescimento do nacionalismo ucraniano; e ameaça a estabilidade doméstica.

Não é surpreendente que desde o Euromaidan tenha provocado uma forte reação em Moscou que terminou numa infeliz invasão militar. O Ocidente pode não ter pretendido provocar uma guerra civil na Ucrânia antes e uma intervenção da Rússia agora, mas através de suas políticas míopes conseguiu exatamente isso enquanto o governo de Putin agiu seguindo os passos do imperialismo americano. Assim como o caos que suas intervenções criaram em países como Iraque e Síria, os resultados de sua intromissão na Ucrânia não ensinaram nada ao Ocidente sobre autocontrole. É comum, por exemplo, ver comentários culpando a Rússia pelo caos visto na Ucrânia desde a revolução Euromaidan.

Porém, somente quando os americanos reconheceram abertamente suas transgressões imperiais, merecem ser levados a sério quando demonizam a Rússia. Os ocidentais ficamos horrorizados quando vemos civis mortos por bombardeios russos na Ucrânia, mas geralmente não ficamos tão horrorizados e mais propensos a aceitar justificativas oficiais quando ouvimos que civis são mortos por forças europeias e mesmo americanas no Iraque, Síria, Iêmen ou Gaza. A mídia corporativa ocidental desempenha um papel fundamental nisso, mostrando-nos cadáveres na Ucrânia e os lamentos de seus seres queridos, mas “protegendo-nos” de imagens igualmente perturbadoras de pessoas mortas pelos EUA ou forças aliadas. Devemos lembrar, no entanto, durante a ocupação militar do Iraque pelos EUA, tanto o Comitê Internacional da Cruz Vermelha quanto a Missão de Assistência da ONU ao Iraque documentaram violações persistentes e sistemáticas das Convenções de Genebra pelas forças dos EUA, inclusive da Quarta Convenção de Genebra de 1949 que protege os civis dos impactos da guerra e da ocupação militar,  incluindo casos em que tropas americanas torturaram prisioneiros até a morte. Porém, ninguém foi responsabilizado. Sempre é fácil apontar o dedo para os outros.

*Gabriel Vezeiro é bacharel em filosofia.

 

Referências


Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Tradução: Raul M. Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.

V. Engel, V. “Ksenofobiia, diskriminatsiia i agressivnyi natsionalizm v Evrope”, Geopoliticheskii zhurnal Vol: 5 num 12 (2015): 38.

Gudimenko, D. V. “Ukrainskii radikalnyi natsionalizm: ideologiia voiny i terror”, Vestnik Akademii ekonomicheskoi bezopasnosti MVD Rossii num 6 (2015): 86

Neo-Nazism is a Dangerous Challenge to Human Rights, Democracy and the Rule of Law. Report of the Russian Foreign Ministry (Moscou, 2015): 75-81

Medea Benjamin and Nicolas J. S. Davies Hey, Hey, USA! How Many Bombs Did You Drop Today? https://www.codepink.org/hey_hey_usa_how_many_bombs_did_you_drop_today

 

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