A vassalagem antipatriótica

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Por LUIZ MARQUES*

Enquanto o nacionalismo latino-americano celebra liberdade e natureza, o europeu e norte-americano alimentam monarquias e caça a “inimigos internos”. No Brasil, a extrema direita sequestra símbolos pátrios para mascarar sua vassalagem colonial — transformando o verde-amarelo em cortina de fumaça para o entreguismo e o fascismo

Houve época em que os intelectuais cosmopolitas do velho continente viam o nacionalismo como uma patologia, por estar enraizado no medo e no ódio do Outro. As Grandes Guerras da primeira metade do século XX, na Europa, deixaram cicatrizes e lições. Nações que flertam com os ideais nacionalistas tendem à beligerância expansionista. O treinador Felipão descobriu que brincava com fogo ao propor que a população desfraldasse o estandarte nacional na frente de casa, em apoio à seleção de futebol de Portugal; a proposta foi enterrada pela opinião pública para sua surpresa.

Além das razões econômico-financeiras, a União Europeia serve de antídoto aos conflitos hoje. Mas na América Latina o nacionalismo valoriza a independência em face da dominação colonialista, sem a tentação de um expansionismo embora algumas escaramuças em fronteiras. Entre nós, símbolos pátrios não têm conotação bélica. Preparam o espírito para exibições festivas, em vez de invasões.

Os hinos das nações latino-americanas exaltam a liberdade, no idioma legado pelos colonizadores: Oíd, mortales, el grito sagrado / Libertad! Libertad! Libertad! / Oíd el ruido de rotas cadenas / Ved en trono a la noble igualdad // Y los libres del mundo responden / al grand pueblo argentino, salud! (“Ouçam, mortais, o grito sagrado / Liberdade! Liberdade! Liberdade! / Ouçam o som das correntes quebradas / Vejam a nobre igualdade no trono / E os livres do mundo respondem / ao grande povo argentino, um brinde!”). A luta para a fundação da república independente é motivo de admiração.

Ao lado da liberdade e igualdade, também são enaltecidas as belezas naturais que inspiram paixão: “Do que a terra mais garrida / teus risonhos, lindos campos têm mais flores / Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores // Brasil, de amor eterno seja símbolo”. O temor e a abominação não costumam figurar nos produtos culturais (poesia, música) das antigas colônias, que reforçam a identidade territorial e a autodeterminação. O patriotismo sinaliza para a maioridade.

O hino britânico foca a figura do monarca. God save our gracious King // Send him victorious / Happy and glorious / Long to reign over us // Oh, Lord, our God arise / Scatter his enemies / And make them fall // Confoud their politics / Frustrate their knavish trics / On Thee our hopes we fix / God save us all (“Deus salve nosso bondoso Rei // Que o faça vitorioso / Feliz e glorioso / Que tenha um longo reinado sobre nós // Oh, Senhor, nosso Deus venha / Dispersar seus inimigos / E fazê-los cair // Confunda sua política / Frustre seus truques fraudulentos / Em Ti depositamos nossa esperança / Deus salve a todos nós”. Não há referência à nação e o povo aparece de coadjuvante.

Já o hino dos Estados Unidos aponta o dedo para inimigos intrínsecos. When our land is illumined / With Liberty’s smile / If a foe from within / Strike a blow at her glory // Down, down with the traitor / That dares to defile / The flag of her stars / And the page of her story (“Quando nossa terra é iluminada / Com o sorriso da Liberdade / Se um inimigo de dentro / Golpear a sua glória // Abaixo, Abaixo o traidor / Que ousa contaminar / A bandeira das estrelas dela / E a página de sua história”). O campo sempre esteve fértil ao macartismo e ao trumpismo. Não importa que as emoções hínicas nasçam de versos medíocres: nos hemisférios Norte e Sul, ser patriota implica doses de sacrifício.

Conforme Benedict Anderson, em Comunidades imaginadas, obra que prioriza o tema da formação do sentimento nacional na criação de Estados nacionais, “hinos são cantados em grandes situações” para estimular a sensação de pertença. Indivíduos compartilham, pela imagem e pela unissonância, a experiência subjetiva da “realização física com o eco da comunidade imaginada”. A nação desse modo passa a ser não apenas uma simples fatalidade histórica, mas o imaginário comum a partir de uma língua que, para impor-se, teve de destruir as línguas originárias ou impingir-lhes o silêncio.

Os falsos patriotas

O bolsonarismo, na alegoria do gesto da arminha, ameaça de morte os opositores de esquerda, “a começar por Fernando Henrique Cardoso”, e também extirpa do vocabulário cotidiano os termos identificados com as batalhas épicas por direitos humanos, justiça social, fraternidade, igualdade, trabalho, sindicato, movimento, feminismo, antirracismo, etc. Estigmas surgem durante o processo de fascistização onde a liberdade perde o sentido público para justificar o desfile do livre mercado, atrás do trio elétrico de falsos patriotas em prol de um status submisso ao Consenso de Washington.

O imaginário comum é reduzido ao desejo dos mais fortes economicamente; não remete à vontade geral de construção dos meios de socialização da liberdade para o conjunto da cidadania. Este é um direito válido somente para os que exercitam o mando nas relações sociais de desigualdade, como o policial numa blitz na periferia, o patrão com o empregado, o motorista de caminhão na estrada ou o cafetão com as prostitutas nas ruas. Liberdade de expressão vira liberdade aos abusos de autoridade.

O ex-presidente adula o setor econômico mais nefasto ao meio ambiente (o agronegócio); se fosse ainda mandatário não aprovaria a demarcação do solo indígena. Políticas impúblicas se convertem em pseudopolíticas públicas. A terra antes garrida abriga agora soja para exportação. Os bosques têm mais mortes de trabalhadores rurais sem posses; do seio mater escorre a mercadoria, não o humanismo. A agricultura familiar que alimenta os conterrâneos é maltratada. Uma lógica colonial-escravista mantém o país na condição subalterna do prosaico posto comercial de conveniências.

O meliante ao descrever que “pintou um clima” ao abordar meninas venezuelanas acompanhado de seguranças, em Brasília, reatualiza o racismo do senhor da casa grande prestes a estuprar a escrava na cozinha, como no romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Ao alegar que não violenta uma mulher “porque é feia” reitera a tradição sexista do patriarcado. Ao furtar as joias da União reproduz a primitiva ação extrativista da colonização. O antipatriotismo do atraso continua a marcha a ré do neocolonialismo que afasta o Brasil de si mesmo, no mapa-múndi civilizacional.

A falta de empatia com o sofrimento dos humildes; a misoginia; a agressão ao conhecimento e à ciência condensada no estrangulamento financeiro das universidades; a composição ministerial com personagens que odiavam as áreas às quais eram indicadas – educação, saúde, meio ambiente, relações exteriores; não eram um acaso. Eram parte do desmonte do Estado de bem-estar social iniciado em 2003, e interrompido com o impeachment de 2016. A obrigatoriedade do hino nacional em partidas do Brasileirão deve-se à lei de 2016, do golpista Michel Temer. O criminoso volta à cena do crime, para banalizar a realização da cerimônia e arrefecer a indignação cívica que protege a democracia.

A extrema direita sequestra o hino nacional e faz refém o amarelo nas manifestações em favor do regime de exceção autoritário, em substituição do Estado de direito democrático; enquanto uma corrupta CBF vende camisas à classe média forjada na Rede Globo. O nacionalismo carnavalesco não propõe o desenvolvimento autóctone da nação e nem a participação popular como método de governo. Ao contrário, o líder bate continência à bandeira dos EUA. O ridículo só não é maior do que a ignomínia do sabujo do rentismo e do trumpismo que fez da política a negociata da famiglia.

Eduardo Bolsonaro imita o nonsense do chefe do clã, catapultado do esgoto parlamentar a líder do fascismo nativo. Mas a pantomima ruiu com os aspirantes (Tarcísio, Caiado, Ratinho Jr, Zema) à posição de Kingfish (Peixe-rei). A quinta coluna quebrou a cara. A adesão ao tarifaço de Donald Trump teve efeito reverso. Deu visibilidade ao presidente Lula – o defensor da soberania nacional, empresas, empregos contra a arrogância da metrópole imperial. Aumentou o apoio governamental. Escancarou-se a vassalagem antipatriótica do nacionalismo ultradireitista. A demagogia nas redes sociais cedeu à verdade e o cortejo necropolítico flopou na avenida. “Abaixo, abaixo os traidores!”.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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