Por PIERRE CHARBONNIER*
Introdução do livro recém-lançado
Durante o tempo necessário para escrever este livro, o observatório americano em Mauna Loa, Havaí, indica que a concentração de CO2 na atmosfera ultrapassou a marca das 400 partes por milhão e, em seguida, das 410 partes por milhão.[i] Essas medidas atestam que, na escala de uma atividade tão pequena quanto a redação de um livro de filosofia, a realidade ecológica se transforma silenciosamente em proporções espetaculares. Ressalte-se apenas que esse valor havia permanecido abaixo da marca de 300 partes por milhão ao longo de toda a história humana pré-industrial, e que o autor destas linhas nasceu quando a conta estava em 340 partes por milhão.
Um estudo alemão bastante difundido mostrou também que a biomassa de insetos voadores foi reduzida em 76% em 27 anos[ii]: apesar das medidas de proteção e da criação de áreas naturais, três quartos dos insetos desapareceram em poucas décadas. E isso ainda é apenas uma pista em meio a um vasto conjunto de pesquisas sobre a degradação dos solos, da água, das funções de polinização e de manutenção dos ecossistemas,[iii] as quais indicam que a transformação da Terra ocorre agora em um ritmo comensurável com a duração de uma vida, e até mesmo de um simples projeto de escrita.
Ao longo do mesmo período de cinco anos, o cenário político global passou por transformações igualmente impressionantes. A ascensão ao 10 poder de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2017, de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2019, mas também a vitória dos partidários do Brexit, em junho de 2016, são os marcos mais claros de uma série de acontecimentos frequentemente interpretados como a desintegração da ordem liberal. Em vários lugares do mundo, um movimento de retorno às fronteiras e de conservadorismo social enlaça certos perdedores do globalismo desesperadamente à procura de novos protetores e as elites econômicas determinadas a envolver os povos no jogo da rivalidade entre as nações, a fim de preservar a acumulação de capital.
Antes, porém, os acordos de Paris, assinados com entusiasmo geral em dezembro de 2015, deixavam entrever a emergência de uma diplomacia de novo tipo, responsável por trazer o concerto das nações para a era do clima. A despeito das fragilidades constitutivas desse acordo, é essa articulação entre cooperação diplomática e política climática que os novos mestres do caos atacaram: fora de cogitação, assim, a ideia de se fundar uma ordem mundial levando-se em conta a limitação da economia.
Ainda durante esse mesmo período, assistimos à multiplicação de frentes de contestação social que questionam o estado da Terra. As últimas correções deste livro foram feitas no ritmo das mobilizações dos “coletes amarelos” na França, desencadeadas – não se pode esquecer – por uma proposta de imposto sobre o combustível. A invenção de uma nova relação com o território, no âmbito da ZAD de Notre-Dame-des-Landes, ou por ocasião do conflito entre os habitantes da reserva indígena Standing Rock e o projeto do oleoduto em Dakota, se iniciou no momento em que eu começava, em meus seminários, a estabelecer os vínculos entre a história do pensamento político moderno e a questão dos recursos, do habitat e, mais amplamente, das condições materiais de existência.
A atualidade, em suma, confirma e alimenta sem cessar a ideia de uma reorientação dos conflitos sociais em torno da subsistência humana. Mas, ao lado de tudo isso, ao lado das marchas climáticas, dos discursos de Greta Thunberg e das operações de desobediência realizadas pela Extinction Rebellion em Londres, há também o Haiti, Porto Rico, Houston: a intensificação dos furacões tropicais e a falência das respostas governamentais transformaram a vulnerabilidade climática no indicador de desigualdades sociais cada vez mais politizadas. A distribuição das riquezas, dos riscos e das medidas de proteção nos obriga a compreender no mesmo passo o destino das coisas, dos povos, das leis e das máquinas que os enlaçam.
Cinco anos são suficientes, assim, para se observarem grandes mutações. Cinco anos são suficientes para que olhemos para um passado ainda que próximo como um universo totalmente diferente daquele no qual agora evoluímos, e para o qual jamais voltaremos. A velocidade desses desenvolvimentos nos coloca diante de uma questão mais sombria: onde estaremos quando mais cinco anos tiverem transcorrido?
Este livro é a um só tempo uma investigação sobre as origens e o significado desses acontecimentos e uma de suas múltiplas manifestações – microscópica, sem dúvida. Ele ganha sentido nesse contexto de mudanças ecológicas, políticas e sociais globais cuja importância percebemos de forma confusa, sem, porém, ainda sabermos muito bem como descrevê-las, e muito menos como transcrevê-las em linguagem teórica. Em certo sentido, este trabalho consiste em inserir a prática da filosofia nessa história, recalibrar seus métodos – ou seja, o tipo de atenção que confere ao mundo – em função dessas mutações.
Ele se apresenta como um longo desvio histórico e conceitual, abrangendo vários séculos e formas de conhecimento bastante diferentes umas das outras. Esse desvio pode ser resumido da seguinte forma: para entender o que está acontecendo com o planeta, bem como as consequências políticas dessa evolução, é preciso retornar às formas de ocupação do espaço e do uso da terra vigentes nas sociedades da primeira modernidade ocidental. A implantação da soberania territorial do Estado, os instrumentos de conquista e de aprimoramento do solo, mas também as lutas sociais ocorridas nessas circunstâncias – tudo isso forma a base de uma relação coletiva com as coisas da qual vivemos hoje os últimos momentos.
Antes mesmo do início efetivo da corrida pela extração de recursos, que se sobrepôs, no século XIX, às noções de progresso e de desenvolvimento material, uma parte das coordenadas jurídicas, morais e científicas da relação moderna com a terra já estava implantada. Em outras palavras, para compreender os impérios do petróleo, as lutas por justiça ambiental e as curvas perturbadoras da climatologia, é preciso voltar à agronomia, ao direito e ao pensamento econômico dos séculos XVII e XVIII; a Grotius, a Locke, aos fisiocratas. Para compreender nossa incapacidade de impor restrições à economia em nome da proteção de nossa subsistência e de nossos ideais de igualdade, é preciso retornar à questão social do século XIX e ao modo como a indústria afetou as representações coletivas da emancipação. Os debates atuais sobre a biodiversidade, o crescimento e o estatuto da natureza selvagem são apenas a última etapa de uma longa história no decurso da qual nossas concepções sociais e a materialidade do mundo foram conjuntamente construídas. O próprio imperativo ecológico, na medida em que é reconhecido como tal, encontra seu significado nessa história.
Em termos mais propriamente filosóficos, isso significa que as formas de legitimação da autoridade política, a definição dos objetivos econômicos e as mobilizações populares por justiça sempre estiveram estreitamente ligadas ao uso do mundo. O significado que damos à liberdade e os meios empregados para instituí-la e preservá-la não são construções abstratas, mas sim produtos de uma história material em que os solos e os subsolos, as máquinas e as propriedades dos seres vivos forneceram alavancas de ação decisivas.
A atual crise climática revela de maneira espetacular essa relação entre a abundância material e o processo de emancipação. A administração americana responsável pela energia, por exemplo, batizou recentemente o gás natural, um combustível fóssil, de “moléculas da liberdade US”,[iv] invocando assim o imaginário de uma emancipação em relação aos constrangimentos naturais: a liberdade estaria literalmente contida na matéria fóssil. Esse enunciado fabuloso contrasta com tudo o que indicam as pesquisas em climatologia e sua tradução política: o acúmulo de CO2 na atmosfera não apenas compromete a habitabilidade da Terra, mas exige uma nova concepção de nossas relações políticas com os recursos. Em outras palavras, essas mesmas moléculas contêm o inverso da liberdade, elas são uma prisão ecológica da qual não encontramos a saída.
Trata-se, portanto, de compor uma história e de identificar problemas políticos de um novo tipo, utilizando a experiência geológica e ecológica presente como um revelador, como a parte visível de um enigma a ser reconstituído. O principal fio condutor dessa história é indicado pelo título do livro: como a construção jurídica e técnica de uma sociedade de crescimento impregnou e orientou o sentido que damos à liberdade? Como, por sua vez, as lutas pela emancipação e pela autonomia política investiram no uso intensivo dos recursos para se desenvolver? Em suma, o que uma história material da liberdade nos ensina sobre as transformações políticas atuais?
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Construí essa narrativa e essa análise em torno de três grandes blocos históricos, separados por duas mudanças ecológicas e políticas de alcance revolucionário.
O primeiro desses blocos é a modernidade pré-industrial: trata-se de um universo social em que o trabalho da terra constitui a base da subsistência e o suporte dos principais conflitos sociais, uma referência incontornável para pensar a propriedade, a riqueza e a justiça. A terra é, assim, a um só tempo um recurso disputado, a base da legitimidade simbólica do poder e o objeto de conquistas e de apropriações.
E então, progressivamente, ao longo do século XIX, uma nova coordenada ecológica vem se juntar ao universo material e mental dos humanos: o carvão e, depois, o petróleo, ou seja, as energias fósseis. Um segundo bloco histórico começa então quando as sociedades se reconfiguram em torno do uso dessas energias concentradas, econômicas em espaço, facilmente intercambiáveis e capazes de redesenhar em profundidade as funções produtivas e o destino social de milhões de homens e de mulheres. Com as energias fósseis, os modos de organização e os ideais coletivos passarão pelo teste de um grande rearranjo material.
Finalmente, bem perto de nós, desenrola-se uma segunda mutação ecopolítica cujas proporções são ao menos tão vastas e cruciais quanto a precedente. Ela inaugura um terceiro universo, do qual vivemos os primórdios, e que pode ser definido pela alteração catastrófica e irreversível das condições ecológicas globais. O conjunto dos ciclos biogeoquímicos que estruturam a economia planetária é impelido para além de suas capacidades regenerativas pelo ritmo das atividades produtivas; a natureza dos solos, do ar e das águas está mudando e, com isso, inscrevendo os coletivos humanos e suas lutas em novas coordenadas.
Após um primeiro capítulo introdutório e geral, os capítulos 2 e 3 são dedicados à primeira sequência histórica; o capítulo 4 tenta descrever as características da primeira grande transformação; os capítulos 5 a 9 tratam da sequência intermediária; os dois últimos delineiam os desafios que emergem no limiar da era do clima. O pensamento político moderno desdobra-se então historicamente em três mundos bem diferentes. Um mundo agrário, altamente territorial; um mundo industrial e mecânico, que engendrou novas formas de solidariedade e de conflitualidade; e um mundo que sai do controle, sobre o qual ainda pouco se sabe, exceto que a busca dos ideais de liberdade e igualdade assume uma face inteiramente nova. A cada vez, as aspirações coletivas e as relações de dominação foram profundamente marcadas pelas características específicas desses mundos.
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Com este livro, gostaria de contribuir para a politização do problema ecológico e, de forma mais ampla, para a construção de uma reflexão coletiva sobre o que está acontecendo com o paradigma moderno do progresso. Pode-se ter uma ideia do estado em que se encontra esse debate simplesmente relembrando as duas posições opostas que o estruturam.
De um lado, certo número de dados estatísticos globais mostra uma redução da miséria, da doença e da ignorância: a renda média global quase dobrou entre 2003 e 2013, uma proporção cada vez menor da população se encontra abaixo da linha da extrema pobreza[v], a expectativa de vida aumentou e a alfabetização se expandiu, as taxas de mortalidade infantil e de desnutrição diminuíram. Alguns intelectuais, como o filósofo britânico Steven Pinker, ganharam celebridade por interpretar esse tipo de dado como uma prova das virtudes da utopia liberal.
A articulação entre capital, tecnologia e valores morais centrados no indivíduo – por ele remetida, de forma um tanto monolítica, ao Iluminismo – constituiria uma fórmula comprovada para tirar a humanidade de sua difícil condição, em um plano a um só tempo moral e material. Os sucessos parciais vividos pelo esquema dominante do desenvolvimento são assim interpretados a fim de bloquear as tentativas de reorientação social e política e desestimular aqueles e aquelas que, ao exigir mais, ou melhor, imprudentemente fragilizariam essa mecânica do progresso.[vi]
Do outro lado, encontramos naturalmente todos aqueles e aquelas que se alarmam com a degradação da biodiversidade, com a sexta extinção em curso, com o aquecimento global, com o esgotamento dos recursos, com a multiplicação dos desastres, e que às vezes chegam a antecipar o fim iminente da civilização humana, se não do mundo em si. Sem adotar a retórica do apocalipse, as grandes instituições científicas responsáveis por registrar as mudanças no sistema-terra, em particular o IPCC e o IPBES*, alimentam um legítimo sentimento de perda. Todavia, da mesma forma que se deve diferenciar entre a melhoria de certos indicadores econômicos e humanos e a validação de uma teoria do desenvolvimento nascida no século XVIII, há um fosso entre os gravíssimos danos infligidos ao planeta e a identificação da modernidade como pura e simples catástrofe. A voga atual dos pensamentos do colapso revela uma consciência apurada da vulnerabilidade ecológica, e a crença de alguns de que seria tarde demais para salvar o mundo não é senão o ponto de incandescência.
A depender dos indicadores que selecionamos e do modo como os hierarquizamos, é possível estimar que vivemos no melhor ou no pior dos mundos. A filosofia da história há muito estabeleceu uma oposição entre a narrativa da missão civilizadora universal da razão e a contranarrativa da loucura inerente à vontade de controle. No entanto, esse topo teórico é não apenas redutor em termos da história das ideias como, sobretudo, nos tornam incapazes de apreender o problema que enfrentamos: é possível, ao menos para alguns, viver melhor num mundo que se deteriora.
A contradição que a nós se apresenta não é uma questão de percepção, nem mesmo de opinião, mas se situa na própria realidade e, mais exatamente, em uma realidade social diferenciada. O economista Branko Milanovic, por exemplo, mostrou que os frutos do crescimento econômico das últimas duas décadas beneficiaram amplamente uma nova classe média global – tipicamente, a enorme classe média da China, gerada pela explosão industrial do país[vii]. Mas é também essa população a que mais sofre com a poluição, com um ambiente urbano congestionado, bem como com uma feroz disciplina do trabalho, no quadro de um Estado repressivo[viii].
O crescimento mensurável da economia, das rendas, é uma indicação enganosa. Porque, se ainda veicula, para muitos, a imaginação do aprimoramento material e moral, ele é também inseparável do processo de perturbação planetária que nos leva ao desconhecido. A politização adequada da ecologia reside na lacuna que se abre entre essas duas dimensões da realidade histórica. O entusiasmo angelical e as profecias sombrias do fim são, portanto, apenas duas interpretações caricaturais de uma realidade muito mais complexa, o que nos impele a reconsiderar o sentido que damos à liberdade em um momento em que as suas dependências ecológicas e econômicas colocam em perigo sua própria perpetuação.
*Pierre Charbonnier é pesquisador em filosofia no CNRS-França. Autor, entre outros livros, de La composition des mondes (Flammarion).
Referência
Pierre Charbonnier. Abundância e liberdade: uma história ambiental das ideias políticas. Tradução: /Fabio Mascaro Querido. São Paulo, Boitempo, 2021, 368 págs.
Notas
[i] Ver o site da National Oceanic and Atmospheric Administration: <www.esrl.noaa. gov/gmd/ccgg/trends>.
[ii] Caspar A. Hallmann et al., “More than 75 percent decline over 27 years in total flying insect biomass in protected areas”, PLoS ONE, v. 12, n. 10, 2017.
[iii] Ver especialmente os trabalhos da Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services IPBES: <www.ipbes.net>.
[iv] “Department of Energy Authorizes Additional LNG Exports from Freeport LNG”. Disponível em: <https://www.energy.gov/articles/department-energy-authorizes- additional-lng-exports-freeport-lng>.
[v] Max Roser, “No matter what extreme poverty line you choose, the share of people below that poverty line has declined globally”. Disponível em: <https://ourworl dindata.org/no-matter-what-global-poverty-line>. E, mais amplamente, os dados compilados em: <www.ourworldindata.org>.
[vi] Steven Pinker, Le Triomphe des Lumières, Paris, Les Arènes, 2018, e a crítica de Samuel Moyn, “Hype for the Best. Why does Steven Pinker insist that human life is on the up”. Disponível em: <https://newrepublic.com/article/147391/hype-best>.
* Respectivamente, siglas em inglês do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, organização científica fundada em 1988, e do Painel Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, organização intergovernamental fundada em 2012, ambas na esfera da Organização das Nações Unidas (ONU). Em francês, o IPCC é conhecido pela sigla GIEC: Groupe d’experts intergouvernemental sur l’évolution du climat. (N. T.)
[vii] Branko Milanovic, Inégalités mondiales. Le destin des classes moyennes, les ultra-riches et l’égalité des chances, Paris, La Découverte, 2019.
[viii] Ver, por exemplo, Matthew E. Kahn e Siqi Zheng, Blue Skies Over Beijing. Economic Growth and the Environment in China, Princeton, Princeton University Press, 2016.