Por EVA ALTERMAN BLAY*
A guerra contra a liberdade dos direitos reprodutivos estimula grupos da sociedade que votam contra o direito das mulheres a seu próprio corpo e punem as que buscam o serviço e os/as profissionais que ousam apoiar os direitos das mulheres e meninas de interromper a gestação.
1.
“Prefeitura não retoma serviço de aborto legal” (Estadão, 23/07/205, p. 14). Essa manchete, quase escondida num fim de página, estampa a ação desumana e covarde do Prefeito Ricardo Nunes!
Afinal, que importância tem ação que diz respeito a meninas e mulheres pobres, em geral pretas, que depois de estupradas ficam grávidas e não tem acesso a interrupção de gravidez?
É corriqueiro desobedecer uma lei de 1940 e em consequência abandonar meninas e mulheres que acabam recorrendo a abortos perigosos pondo em risco suas vidas e elevando o número de pacientes no SUS.
Nos anos 1980 um amplo movimento feminista estendeu-se pelo Brasil e centralizou a ação no nacional Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. O amplo movimento popular fortaleceu a demanda e a Prefeita Luiza Erundina em 6 de julho de 1989, assinou portaria que obrigava hospitais públicos da cidade de São Paulo a realizarem o serviço de aborto legal.
Acompanhamos a luta pela implantação desse serviço e testemunhamos o apoio a crises emocionais e psicológicas das que buscavam o serviço desses hospitais. Profissionais bem preparadas atendiam a orientavam questões vinculadas à sexualidade, não apenas interrupção, mas prevenção, orientações para preservar a saúde sexual, física e psicologia.
Entre 2013 e 2023, o hospital realizou cerca de 419 interrupções legais, bem mais do que os outros quatro hospitais municipais juntos, que somaram apenas 190.
2.
O atual Prefeito de São Paulo suspendeu o serviço em dezembro de 2023. São 24 meses sem que o Hospital da Vila Nova Cachoeirinha preste o serviço, ou melhor, descumpra o trabalho para o qual foi criado! Usam-se artifícios legais para fechar as portas do hospital a quem necessita.
Não bastasse não prestar o serviço previsto, a desobediência do Estado pune as mulheres que praticam o aborto em si ou em outrem. Pesquisa da ANIS mostrou que entre 2012 e 2022, quatro em cada cinco mulheres denunciadas por aborto foram punidas pela Justiça, muitas presas antes do julgamento.
A pesquisa aponta um padrão sistemático de criminalização: pelo menos 569 pessoas foram processadas, além de 218 foram privadas de liberdade, sendo 175 presas antes do julgamento! Mesmo sem condenação, muitas enfrentam vigilância, medidas restritivas e anos respondendo à Justiça.
O estudo mostra que confissões são obtidas sob coação em hospitais, e que provas ilícitas sustentam processos marcados por estereótipos de gênero. Serviços de saúde, que deveriam cuidar, muitas vezes ameaçam, negam atendimento e violam o sigilo médico. Adolescentes são denunciadas por conselheiros tutelares e expostas em documentos públicos relata a pesquisa.
Enquanto o aborto legal é negado, o sistema atua com rigor punitivista justamente contra as mais vulneráveis aponta a ANIS- Instituto de Bioética. Paradoxalmente em nome dos embriões, os membros da “Pela Vida” estão dispostos a matar! A diretora da ANIS entre outras/os teve de deixar o Brasil para resguardar sua vida.
A guerra contra a liberdade dos direitos reprodutivos estimula grupos da sociedade como o Conselho Regional de Medicina que, por razões religiosas ou ideológicas, vota contra o direito das mulheres a seu próprio corpo.
Punem não apenas as que buscam o serviço, mas também os/as profissionais – médicos, enfermeiras – que ousam apoiar os direitos das mulheres e meninas de interromper a gestação.
É longa a ação dos movimentos feministas pelos direitos humanos das mulheres: por mais de dois séculos se buscou romper o casamento tradicional; mais de um século para que as mulheres pudessem entrar na universidade; só quando premidos pela falta de mão de obra aprovou-se uma legislação específica para que as mulheres pudessem trabalhar como “margaridas” (varrendo ruas, recolhendo lixo); até hoje a prostituição ocupa o limbo no campo dos direitos profissionais; as advogadas são obrigadas a denunciar como são desqualificadas pelos colegas de profissão; o feminicídio mata cerca de cinco mulheres por dia por assassinos que consideram os corpos das mulheres propriedade privada deles!
Depois de um século de movimentos pelos direitos humanos das mulheres, como nossas filhas e netas vão superar o retorno dos poderes autárquicos em plena luta contra a democracia?
*Eva Alterman Blay é professora titular sênior do Departamento de Sociologia da USP e ex-senadora. Autora, entre outros livros, de Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo (Nobel). [https://amzn.to/46zBG0X]
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