Acate o incêndio, homem de bem!

Imagem: Anselmo Pessoa
image_pdf

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Mais que nostálgicos da Guerra Fria, os garantidores da Lei e da Ordem do Brasil são vidrados mesmo é no tempo colonial

Alguns trataram o general Augusto Heleno como senil e imbecil por ter dito que a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) teria como missão espionar “maus brasileiros”. A Lei 9.983/99 designa como missão desta Agência obter informações sobre ameaças internas e externas à ordem constitucional. As ameaças não estão claramente definidas, e o que sempre prevalece é a percepção dos próprios agentes. Os organismos legalmente destinados à preservação da Segurança definem o que constitui ameaça.

Movimentos sociais, ONGs, partidos políticos, parlamentares, militantes sindicais, anti-racistas e variados atores que se destacam na denúncia de injustiças sempre foram tratados como inimigos por instituições encarregadas de velar pela ordem e pela segurança do Estado.

Os governantes eleitos democraticamente contiveram arroubos na atuação destas instituições, sendo a principal delas o Exército. Mas não lograram mudar os valores que orientam a atuação destes organismos acerca do que presta ou não presta na sociedade brasileira.

Centrar fogo num homem que, pela idade, pode estar perdendo a autocensura, é contraproducente ou inócuo. Serve para encobrir a realidade. De que adianta estigmatizar solitariamente o general-ministro e substituí-lo por alguém mais comedido nas palavras, de gestos menos grosseiros, mas com a mesma percepção escabrosa e o mesmo gosto de sangue na boca?

Excetuadas as nuances, Heleno traduziu sinceramente o que pensam o presidente da República, os comandantes militares, os chefes policiais e as forças de sustentação do governo.

Categorias como “bons” e “maus” brasileiros integram a forma como as instituições de segurança sempre perceberam a sociedade. Os que contestam a ordem socioeconômica e política estariam na lista dos “maus”, devendo, quando possível, ser silenciados ou eliminados pelo bem da pátria, pensam os integrantes destas instituições.

Não cabe esquecer: o Exército ainda não se desapegou da mentalidade que justificou a matança de cabanos, balaios, farrapos…  Depois da Proclamação da República, matou mais de dez mil brasileiros que contestavam no sertão baiano. Nunca teve a coragem de dizer “errei”. Nem a grandeza de um pedido de desculpa. Pelo contrário, homenageia os que comandaram as chacinas e maldiz os desobedientes. Em Canudos, eram homens, mulheres e crianças levados a pegar em armas para se defender da besta-fera.

Lutar pela superação do legado de atrocidades do período colonial persiste sendo ameaça à segurança do Estado. Acate as iniquidades e serás homem de bem, alegam os que hoje mandam no Brasil.

São legítimos herdeiros da racionalidade do frei italiano André João Antonil, que morreu em 1716, em Salvador, depois de escrever um longo tratado sobre  como o colonizador devia explorar as florestas, o campo, as minas e o povo. Seu dito mais famoso é o de que nativos e africanos precisavam ser tratados com pão, pau e pano.

Mais que nostálgicos da Guerra Fria, os garantidores da Lei e da Ordem do Brasil são vidrados mesmo é no tempo colonial.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES