Por LEONARDO SACRAMENTO*
De reunião em reunião do COPOM, com reduções medíocres de 0,25%, a crise é certa
A herança deixada pelo governo anterior é realmente maldita. No campo econômico, o mandarinato do ministro Paulo Guedes deixou granadas em diversos bolsos. As explosões dessas granadas são visíveis a olho nu. A gestão Guedes/Bolsonaro desossou os instrumentos do Estado de intervenção no domínio econômico. E em uma acaciana blague, o problema das consequências é que elas vêm depois.
Uma política de preços de combustíveis que penaliza toda a sociedade e só traz benefícios para os grandes acionistas da Petrobras. Ao mesmo tempo, a privatização dos ativos criou uma miríade de empreendimentos privados na área de refino e logística que não se sustentam sem os ganhos do domínio de toda a cadeia produtiva. A mesma situação se repete nos aeroportos, que são rentáveis apenas se fizerem parte de um sistema aeroportuário. A privatização subfaturada e sem critérios de portos, aeroportos e rodovias já traz majoração de custos logísticos no Brasil.
O esquartejamento do setor elétrico culminou na entrega do controle da Eletrobrás, pasmem, aos controladores das Lojas Americanas. A obra desses personagens no setor elétrico está demonstrada na virtual falência da distribuidora Light, no Rio de Janeiro.
O represamento de investimentos públicos e privados, somado à perda de densidade industrial, produz uma crise de oferta, que mostra seus efeitos na paralisação da indústria automotiva. Apesar da crise de microprocessadores entre Taiwan e China, com promessa de resolução em 2025, no caso brasileiro esse represamento é consequência, em grande parte, do aperto fiscal praticado pelo antigo ministério da economia, pois o aumento dos preços ocorreu de forma muito agressiva aos mais pobres, o triplo em comparação com os mais ricos. A relação profana entre empresas de aluguéis de carros e isenção fiscal, outra bomba do neoliberalismo na cadeia produtiva automobilística, potencializa a crise da perda da densidade industrial.
O caso das Lojas Americanas é a ponta do iceberg da crise do varejo brasileiro. Em que pesem as fraudes e inconsistências em balanços, o varejo tem perdido vendas, em função do desemprego e perda de renda. Essa crise do varejo se espalha na economia através de uma crise de crédito. Crise no crédito é mortal para a atividade econômica.
Há uma recessão contratada na economia brasileira. O Banco Central “independente” mantém uma taxa de juros básica que nem parte do setor financeiro consegue aguentar seu custo de carregamento. Ao mesmo tempo, o presidente bolsonarista guediano do Banco Central assiste impávido ao vai-e-vem da especulação cambial e nada faz para enfrentar a crise, mais uma, de liquidez que se avizinha.
O governo Lula já parte para dar respostas microeconômicas para a crise que se avizinha. Medidas como retomada de investimentos pontuais, implantar programas como o Desenrola, para tirar o povo do Serasa, e correção da tabela do imposto de renda são tímidas e insuficientes para enfrentar a gravidade do quadro.
São necessárias medidas macroeconômicas. Não dá para esperar avaliar a “independência” do Banco Central ao fim do mandato do atual nomeado por Bolsonaro/Guedes. E é preciso agir sobre as travas à ação governamental, como na questão da privatização da Eletrobras. O mesmo deve ser feito acerca da política de preços da Petrobras. São medidas que não dependem de votação no Congresso.
A esses desafios, o Ministro da Fazenda responde com barretadas ao mercado. As medidas propostas pelo ministro são estritas e restritas à microeconomia, baseadas no crédito da população. É importante, mas insuficiente. Se após a crise de 2008 o governo Lula utilizou o crédito como medida anticíclica, conseguiu em virtude de um enorme passivo de consumo estabelecido pela histórica desigualdade e miserabilidade. Havia muitos brasileiros que nunca tiveram acesso a itens básicos.
Os exemplos são muitos e cognoscitivamente simples. Se milhões viviam sem energia elétrica e passaram ter com o Programa Luz para Todos, o governo pôde direcionar crédito para a compra de linha branca, como geladeira. O mesmo para TV Smart e eletrodomésticos em geral. Contudo, o contexto é outro. Embora ainda existam brasileiros sem acesso à energia elétrica, a resolução do endividamento não resultará em solução macroeconômica, porque, além da demanda não resolver uma crise cuja origem é a oferta, nada indica que os desenrolados comprarão e trocarão o que compraram e se endividaram na década anterior. Se comprarem, nada indica que será em quantidade suficiente para superar uma crise.
Gabriel Galípolo, o número dois do Ministério da Economia, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 23 de fevereiro, afirmou que o foco do governo está em reverter a tendência de contração de crédito, efeito da fraude do trio das Americanas em que bancos diminuíram a oferta de crédito, com os juros altos, aplicados pelo Banco Central “independente”. Para tanto, o remédio anunciado é o programa Desenrola. Qual a relação do programa e seus efeitos com o diagnóstico do número dois é um mistério.
Ante o diagnóstico, o ministério tem dois caminhos complementares: dar liquidez aos bancos, o que já foi feito na pandemia com a liberação de parte substantiva do prometido R$ 1,3 trilhão de compulsórios por Paulo Guedes, e baixar os juros. Sobre o primeiro, o ministério nada diz. Prefere tratar como um problema da iniciativa privada com o judiciário e de confiança de mercado, mesmo que os efeitos negativos sobre a Eletrobrás, com potencial aumento de tarifas e de custos, sejam iminentes. Sobre o segundo, o atual ministro prefere bajular o garoto de recados de Paulo Guedes e da Faria Lima, como se viu no encontro do G20, disputando a diminuição de míseros 0,25% na próxima reunião do COPOM, em 21 e 22 de março, para tentar fazer cair mais alguma coisa, provavelmente mais 0,25%, em mais 45 dias (meados de maio). Até lá, o primeiro semestre já foi comprometido.
Juros altos, renda decadente, desemprego alto com tendência de aumento da informalidade e apagão estatístico são os elementos que o Ministério da Economia não enfrenta porque esse enfrentamento depende de mudanças significativas no Banco Central e de medidas macroeconômicas. Se o governo não controlar minimamente o câmbio e os juros, já que tenta controlá-los indiretamente por meio do regramento fiscal, a crise é certa. A economia não esperará o enquadramento fiscal proposto tampouco a reforma tributária. Os passivos e as bombas plantadas por Guedes e a Faria Lima nos seis anos do governo Temer/Bolsonaro estão por todos os lados. O IPCA de fevereiro foi 0,76% com alto desemprego e renda média baixa. Esse é o dado objetivo.
Nos últimos anos, Fernando Haddad esforçou-se para se aproximar do mercado. Um dos caminhos percorridos foi o de trabalhar no Insper, think tank neoliberal exclusivo do mercado. Para isso, afastou-se da docência na USP. A sua postura sobre a reoneração da gasolina acabou criando um problema para Lula, que viu o seu ministro ser publicamente fritado pela ala política em apenas dois meses. A mera formação de uma ala política em contraposição ao ministério demonstra didaticamente a sua posição predominantemente neoliberal. Lula fez do limão uma limonada: passou a utilizar a ala política para impor pautas ao mercado por meio do Fernando Haddad – caso pensado?
O país tem pressa nesse momento. De reunião em reunião do COPOM, com reduções medíocres de 0,25%, a crise é certa. Se Jair Bolsonaro vencesse, não seria um problema. O projeto no segundo mandato era de destruição total e rapinagem, com genocídio de indígenas legalizado e naturalizado e venda de todo o patrimônio nacional, de empresas sobrantes do primeiro mandato às praias. Mas o projeto de Lula é distinto e antagônico. Para um projeto de reconstrução e construção, a política de Roberto Campos Neto destruirá o governo de dentro para fora. As medidas relativas à microeconômia de Fernando Haddad terão o efeito de dipirona sobre um câncer avançado ou de cloroquina para Covid-19.
*Leonardo Sacramento é pedagogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).
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