Por LUIZ EDUARDO SIMÕES DE SOUZA*
Considerações sobre as trajetórias políticas de Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fernando Haddad
“O ser humano não pode deixar de cometer erros; é com os erros, que os homens de bom senso aprendem a sabedoria para o futuro.” (Plutarco).
“O tempo acrescenta as honras moderadas e destrói as honras excessivas.” (Plutarco).
“Um desequilíbrio entre ricos e pobres é a doença mais antiga e fatal de todas as repúblicas.” (Plutarco).
1.
Em um país onde as crises econômicas se sobrepõem como pesadelos em série, uma pergunta se apresenta: o que faz os idealistas capitularem? Há uma teoria misteriosa sobre as cadeiras em Brasília, que envolve esse questionamento razoável. Parece que elas não apenas aderem fortemente aos que nelas se sentam, mas também lhes sugam o espírito e as convicções.
Quando os eventos se amontoam, assentando os propósitos e compactando as intenções – especialmente as boas – a seu verdadeiro tamanho, é possível enxergar, em um recorte temporal, algumas trajetórias que apresentam algum sentido, se a elas lhe atribuímos, como as constelações, ou um fragmento de rocha que mostra alguns fósseis separados pelo tempo.
É possível acusar o espírito público de quase tudo, com relativa facilidade até. Originalidade não consta nesse cardápio. Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fernando Haddad, dois nomes que ecoam nas discussões sobre política econômica brasileira, encarnam essa transição de sonhos a realidades muitas vezes decepcionantes, não como heróis trágicos, mas como elementos representativos do viés de confirmação da hipótese de que vivemos em uma farsa.
Bresser-Pereira. Quando mesmo o hífen apareceu? Certamente não foi durante o debate sobre a inflação nos anos 1980, com a tese da inflação inercial, quando a alta de preços nos deixava tontos ao ponto de termos variações ao longo do dia. Em meio ao caos instaurado durante o pique do Cruzado II, uma daquelas excelentes ideias que hoje habitam o Hades que espera por vários de seus conceptores, Luiz Carlos Bresser-Pereira ascendeu da academia a Brasília pela primeira vez para nos oferecer um plano econômico, que não teve aderência em meio ao caos monetário do final do governo de José Sarney.
É necessário fazer uma ressalva aqui sobre o Plano Bresser, a fim de se fazer justiça. Em primeiro lugar, tratou-se de um plano de ajuste inflacionário, tema que não era o cerne das preocupações teóricas de Luiz Carlos Bresser-Pereira, ou seu objetivo último. Este nunca deixou de se apresentar como um desenvolvimentista. Como Celso Furtado, no Plano Trienal do início dos anos 1960, Luiz Carlos Bresser-Pereira capitulou à lógica de curto prazo, aquiesceu às pressões por controle inflacionário de curto prazo e saiu descendo a marreta na demanda efetiva, na massa salarial e nos rendimentos dos trabalhadores, ao gosto da plateia da primeira fila em Brasília, e pelos pagantes do circo democrático burguês.
O Plano Bresser, lançado em junho de 1987, foi uma tentativa do governo brasileiro de controlar a hiperinflação que assolava o país na década de 1980. O plano manteve o congelamento de preços dos planos anteriores e acrescentou o congelamento de salários e do câmbio. Embora inicialmente tenha reduzido a inflação, que caiu de 19,71% em junho para 4,87% em agosto daquele ano, o controle foi efêmero.
A partir de setembro, a inflação voltou a subir, agravada pela cautela da população e dos empresários, que reajustavam preços antecipando novas intervenções, voltando aos dois dígitos antes do final daquele ano. A inflação inercial ganhara momento, e as reclamações da plateia se concentravam nos “elevados gastos públicos”, o que inspiraria Luiz Carlos Bresser-Pereira num futuro próximo, tomem nota. Eis alguém que sabe ouvir a seu público.
Reconhecido o insucesso do plano, para a surpresa do éter, veio o recuo tático. Luiz Carlos Bresser-Pereira voltou rapidinho à FGV e a São Paulo, para articular, com outros luminares da intelectualidade sudestina, o PMDB premium, ou PSDB, no final daquela década. É, a gente se lembra…
Até porque ele retornaria, já com mais musculatura política, como Ministro do Governo FHC I, com a pasta da Administração e Reforma do Estado, panaceia que seria apresentada como pauta da social-democracia brasileira, nessa primeira rodada. Tratava-se de tornar a administração pública mais ágil e “eficiente”, leia-se reduzir as despesas com os salários dos funcionários públicos a partir de sua base, é claro.
Como bom patrono, duraria pouco, saindo com as mãos limpas e deixando o trabalho sujo da precarização do funcionalismo público à secretária-executiva Cláudia Costim, uma ex-pecebista bastante representativa da memória dos ex-comunistas que ascendem à burocracia e à apostasia. O ministério não resistiria à gestão dos dois. Já havia cumprido a tarefa de colocar a ideia em pauta nas políticas públicas (e a granada no bolso dos servidores).
Novamente de volta à academia, Luiz Carlos Bresser-Pereira voltaria a se estabelecer no campo progressista do debate, reinventando-se, acrescentando um hífen aos sobrenomes (fica mais alto nas referências em ordem alfabética, é verdade…), foi se consolidando como um crítico da ortodoxia econômica e do pensamento neoliberal, juntamente com outros quadros da intelectualidade do PMDB premium dos anos 1980 que se espalharam pelo PSDB (do qual é necessário reconhecer que Luiz Carlos Bresser-Pereira iria progressivamente se afastando desde o início deste século) e até pelo PT e adjacências.
Alguns deles estão por aí, até hoje. Bresser-Pereira passeia livremente por aí, aparentemente sem a lembrança dessas duas grandes contribuições ao nosso estado de coisas. Não que tenha faltado oportunidade a ele para isso, mas o grande projeto das Conversas com economistas, de Biderman, Cosac e Rego (Editora 34) deu-lhe uma pena leve para a balança. Até botaram o hífen, nas edições posteriores. Para algum desatento, poderá até constar como um pensador progressista, que nada fez senão consolidar o neodesenvolvimentismo…
2.
Agora vamos falar de Fernando Haddad, uma figura tão idealista quanto pragmática, que conseguiu transitar entre as esferas da academia e da política como quem muda de roupa, sem perder a compostura, mas, talvez, a essência. Haddad começou sua carreira com uma sólida formação acadêmica, incluindo um doutorado em filosofia orientado por Paulo Arantes – aquele Paulo Arantes da velha crítica ácida ao capitalismo.
E, assim como Bresser Pereira, Fernando Haddad também teve seu batismo de fogo em Brasília, ao lado de Lula e Dilma Rousseff. Entre a passagem pelo Ministério do Planejamento e sua chegada ao Ministério da Educação, Fernando Haddad fez uma transição típica da burocracia brasiliense: saiu de uma função técnica para outra, com a serenidade de quem compreendeu que o verdadeiro poder está nos detalhes administrativos. Como assessor especial no Planejamento, ajudou a estruturar as famigeradas Parcerias Público-Privadas (PPPs), aquela fórmula mágica que promete desenvolvimento com dinheiro alheio.
Esse jogo de cintura chamou a atenção de Tarso Genro, que o puxou para o MEC como secretário-executivo. Ali, Fernando Haddad já começava a dar sinais de que sabia o caminho das pedras: uma combinação perfeita entre gestão tecnocrática e retórica de inclusão social. A sua contribuição mais notória? Um ministério recheado de programas que, na superfície, soavam como soluções definitivas para os problemas da educação brasileira.
Como ministro da Educação, Fernando Haddad foi o pai do ProUni, uma brilhante ideia para mascarar o problema estrutural do ensino superior no Brasil. Afinal, por que investir diretamente em universidades públicas quando podemos oferecer bolsas para as privadas? E, para coroar essa política, Fernando Haddad reformulou o Enem, convertendo o exame em uma espécie de “super vestibular” nacional, uma bela jogada para dar a ilusão de acesso democrático ao ensino superior enquanto o número de vagas realmente continuava aquém da demanda.
Como prefeito de São Paulo, Fernando Haddad parecia determinado a transformar a cidade num laboratório de urbanismo progressista. Ciclovias para todos os lados, faixas de ônibus rasgando avenidas, e o tal “Arco do Futuro”, que prometia redirecionar o crescimento da metrópole. Mas, como sempre, a realidade bateu à porta. Enquanto era celebrado como visionário por alguns jornais estrangeiros, em casa enfrentava uma São Paulo dividida entre o caos do trânsito e a irritação dos motoristas. No fim, sua gestão entregou menos do que prometeu, e ele saiu do cargo com uma ciclovia cheia de buracos e uma derrota retumbante para João Doria.
A candidatura de Fernando Haddad à presidência em 2018 foi um espetáculo previsível: lançado às pressas como substituto de Lula, ele nunca foi mais que o “plano B” do PT. Tentando equilibrar o discurso técnico com o carisma emprestado do ex-presidente, Fernando Haddad enfrentou uma campanha desastrosa, marcada pela ascensão meteórica de Jair Bolsonaro. Enquanto tentava discutir propostas, foi esmagado por memes, fake news e a rejeição ao petismo. No final, saiu do segundo turno com os votos de um terço do país e a certeza de que, no tabuleiro político, era apenas uma peça sacrificável.
Após a derrota em 2018, Fernando Haddad assumiu seu lugar como a eterna sombra de Lula, orbitando o petismo sem nunca alcançar o brilho próprio. Voltou à cena política como candidato ao governo de São Paulo em 2022, só para repetir o roteiro: segundo turno e nova derrota, dessa vez para Tarcísio de Freitas, o mais novo queridinho do bolsonarismo. Mesmo assim, sua resiliência política foi recompensada em 2023, quando Lula o resgatou para o Ministério da Fazenda, uma posição que ele ocupa com a calma de quem sabe que a economia não se resolve com slogans. Agora, Fernando Haddad se equilibra entre as pressões do mercado e o ranço da velha esquerda, tentando provar que é mais do que um “poste”, mas sempre à sombra do mentor.
Curiosamente o quadro intelectual petista recentemente passou a ser aplaudido pela Faria Lima, que tradicionalmente torcia o nariz para qualquer coisa vinda do PT. Como Ministro da Fazenda, mostrou-se mais pragmático do que muitos esperavam, adotando uma postura de diálogo com investidores e empresários, enquanto tentava equilibrar a ortodoxia fiscal com as demandas sociais do governo Lula.
O Fernando Haddad que agora circula entre planilhas e gráficos parece ter finalmente compreendido que, para sobreviver no Brasil, é preciso acalmar os ânimos dos bancos enquanto se distribui pão aos que precisam. E, assim, o mesmo mercado que um dia o demonizou como um tecnocrata de esquerda, agora o trata como um aliado inesperado.
Se Luiz Carlos Bresser-Pereira pode ser acusado de ceder às pressões econômicas, Fernando Haddad foi mais fundo: ele não só cedeu, mas entregou-se ao pragmatismo político como um bom estudante de Herbert Marcuse, trocando o sonho revolucionário pelo realismo político. Afinal, Fernando Haddad, com seu ar professoral, conseguiu navegar entre escândalos, políticas dúbias e uma administração que não escapou da armadilha que engole todos os que entram em Brasília: a de prometer o impossível e entregar o factível, sempre com um sorriso didático nos lábios.
Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fernando Haddad, cada um em seu tempo e contexto, encarnam o dilema clássico entre o idealismo e o pragmatismo na política brasileira. Bresser, com seu arcabouço acadêmico e seu viés desenvolvimentista, sempre carregou consigo o peso de promessas que nunca se concretizaram como esperado. Fernando Haddad, por sua vez, de formação sólida e marcado por seu tempo como pupilo de Lula, passou pela política como quem muda de pele, ajustando seu discurso e prática à maré política. Se Plutarco nos ensina que “o tempo acrescenta as honras moderadas e destrói as honras excessivas”, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fernando Haddad são testemunhas vivas desse processo de ajuste às circunstâncias.
No início de suas jornadas, ambos compartilhavam uma dose significativa de idealismo, Luiz Carlos Bresser-Pereira com seu plano de reforma do Estado e Fernando Haddad com seu protagonismo nas políticas educacionais. Contudo, o primeiro, ao tentar salvar o país da hiperinflação com o Plano Bresser, viu suas ideias serem tragadas pelas engrenagens políticas de Brasília, da mesma forma que Plutarco observava os líderes da República Romana sucumbirem às pressões das facções rivais.
Fernando Haddad, por outro lado, trouxe à educação brasileira programas ambiciosos, como o ProUni e a reformulação do Enem, mas, assim como Luiz Carlos Bresser-Pereira, encontrou a resistência de uma realidade muito menos maleável do que esperava. Ambos, em momentos cruciais, cederam ao que se impõe como inevitável em Brasília: a transformação dos ideais em paliativos.
Tanto Luiz Carlos Bresser-Pereira quanto Fernando Haddad foram moldados pelas circunstâncias, mas com estilos diferentes. Luiz Carlos Bresser-Pereira, em sua primeira incursão em Brasília, atacou a inflação à custa dos salários e do bem-estar dos trabalhadores, sendo rechaçado pela mesma elite que desejava controlar. Fernando Haddad, ao contrário, adotou um caminho mais suave, mas igualmente problemático: disfarçou a falta de investimento em universidades públicas com o ProUni, e fez do Enem uma plataforma de inclusão ilusória. Se “um desequilíbrio entre ricos e pobres é a doença mais antiga e fatal de todas as repúblicas”, Fernando Haddad, com sua habilidade tecnocrática, apenas tratou os sintomas sem jamais atacar a doença subjacente.
Bresser-Pereira e Fernando Haddad representam o clássico percurso dos idealistas que, ao se confrontarem com a realidade política de Brasília, acabam cedendo ao pragmatismo. Luiz Carlos Bresser-Pereira, em sua tentativa de reformar o Estado e controlar a inflação, viu suas ideias se dissiparem diante das pressões políticas, retornando à academia com o peso de suas promessas frustradas. Fernando Haddad, por outro lado, soube navegar com mais habilidade entre a política e a tecnocracia, criando programas como o ProUni que, apesar de populares, mascaravam problemas estruturais. Ambos, em momentos diferentes, aprenderam que a política brasileira exige mais sobrevivência do que transformação, e suas trajetórias espelham essa capitulação gradual.
Essas trajetórias, contudo, não são as primeiras e certamente não serão as últimas a refletirem esse paralelismo entre idealismo e capitulação. A política brasileira, marcada por sucessivas gerações de intelectuais que adentram o cenário com grandes esperanças e saem dele com concessões amargas, é um palco onde esse drama se repete ciclicamente. Tanto Luiz Carlos Bresser-Pereira quanto Fernando Haddad são apenas mais dois atores nesse enredo já conhecido, onde o tempo e as circunstâncias corroem as grandes ideias, transformando-as em pragmatismo calculado. O espetáculo, no entanto, continua, com novos personagens sempre prontos para ocupar essas cadeiras que sugam não só o corpo, mas também o espírito.
No final, ambos compartilham a mesma sina: foram tragados pelo pragmatismo e se distanciaram dos projetos transformadores que, um dia, defenderam. Luiz Carlos Bresser-Pereira, agora uma figura mais afastada do poder, ecoa críticas ao neoliberalismo que ele mesmo ajudou a moldar em seus dias de PSDB. Fernando Haddad, em contrapartida, equilibra-se entre o mercado financeiro e as demandas populares no Ministério da Fazenda, acenando para a ortodoxia econômica que tanto criticou.
Plutarco estaria sorrindo ao notar que, no final, “o ser humano não pode deixar de cometer erros; é com os erros que os homens de bom senso aprendem a sabedoria para o futuro”. O problema é que, em Brasília, os erros não são só individuais — são estruturais, e parecem se repetir com uma precisão trágica. Como pesadelos em uma noite que não termina.
*Luiz Eduardo Simões de Souza é professor de história econômica na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA