Aleksandr Dovjienko

Ilya Repin, Rebocadores do Volga, 1894. (Museu do Estado Russo de São Petersburgo)
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Por JOÃO LANARI BO*

A trajetória de um cineasta ucraniano na URSS

A guerra na Ucrânia em seu curso mortífero e sangrento pode ser vista como uma operação de soterramento histórico – que começa, em um passado longínquo, com linhas de força que se dispersam e se reagrupam. Planícies férteis, espaço geográfico intercalado entre o gigante russo e diferentes potências europeias, a Ucrânia sempre foi percebida como objetivo estratégico de impérios e etnias migratórias.

Os czares durante séculos promoveram o soterramento na base da servidão e violência: os bolcheviques atualizaram o impulso com o revestimento ideológico da emancipação do proletariado. No meio do fogo cruzado, emergiu, aos trancos e barrancos, uma identidade nacional ucraniana – conceito desgastado, mas útil, que indica a condição social de um indivíduo e que sintetiza um conjunto de sentimentos patrióticos, os quais o fazem sentir-se identificado e de fazer parte integrante de uma ou mais nações e suas culturas.

A atual ofensiva comandada por Vladimir Putin é a atualização no século XXI desse movimento histórico. Não é mero exercício retórico ou diatribe o desejo expresso de aniquilar a Ucrânia, de extirpar sua existência: é um desejo soterrado que volta, mais uma vez, à superfície. Embutidos nesse discurso que flerta com contornos nazistas – a percepção de insegurança e o espaço vital, a proteção de cidadãos russos como justificativas para a invasão e a ruptura do direito internacional – estão séculos de mortes e pilhagens, luto e melancolia.

O cinema – e, em particular, o vigoroso cinema soviético – surge como o instrumento privilegiado de exposição desse devir, captado na abrupta transição revolucionária. Aleksandr Dovjienko, uma das estrelas desse firmamento – ao lado de Eisenstein, Pudovkin e Viértov – nasceu na Ucrânia, filho de camponeses, e veio a ser um ponto nevrálgico na expressão dos saltos e sobressaltos da conturbada relação Moscou – Kiev. Entre 1928 e 1930 completou três obras fundamentais do cânon cinematográfico, a trilogia A Montanha do Tesouro, Arsenal e Terra.

Tempo acelerado

Em um texto autobiográfico de 1939, escrito em tom apologético como parte do seu pedido de readmissão no Partido Comunista, Aleksandr Dovjienko escreveu: “

No início de 1920, juntei-me ao partido Borotbist (partido comunista ucraniano). Essa ação, errada e desnecessária como era, aconteceu da seguinte maneira. Eu queria muito ingressar no Partido Comunista dos Bolcheviques da Ucrânia, mas me considerava indigno de cruzar seu limiar e assim me juntei aos borotbistas, como se estivesse entrando na aula preparatória em um ginásio, o que o partido borotbista, é claro, nunca foi. O próprio pensamento de tal comparação parece absurdo agora. Em poucas semanas, o partido borotbista juntou-se ao Partido dos Bolcheviques e, dessa forma, tornei-me membro do partido”.

Foram tempos conturbados, para dizer o mínimo. Em março de 1917, na sequência da Revolução de Fevereiro na Rússia, Kiev declarou sua autonomia e elegeu o Rada, Conselho Central da Ucrânia, dominado por partidos socialistas, de esquerda. Em outubro, o Conselho denunciou a tomada do poder pelos bolcheviques e proclamou a República Popular da Ucrânia, com território abrangendo aproximadamente oito províncias imperiais russas.

Pouco depois, os russos invadiram o país e massacraram milhares de pessoas na capital – e o comandante enviou a Lênin um telegrama curto e grosso: “A ordem foi restaurada em Kiev”. Em seguida, porém, os ucranianos assinaram acordo de paz com a Alemanha e a Áustria-Hungria, cujas tropas se mudaram para a Ucrânia na primavera de 1918 e expulsaram os bolcheviques, inclusive do Donbass. Acabaram saindo no final de ano, com a guerra aproximando-se do fim, depois de derrubar o Conselho e instalar um regime fantoche autoritário. Nesse meio-tempo, em Kharkov – palco de sangrenta batalha na atual guerra – os bolcheviques estabeleceram sua própria República Popular Ucraniana, uma ficção criada para fornecer um grau de legitimidade para a ocupação.

O quadro, enfim, era confuso: soviéticos e aliados locais – a República Popular Ucraniana bolchevique – movimento rebelde dos Brancos, Polônia, exércitos estrangeiros, nacionalistas ucranianos e anarquistas lutavam o tempo todo entre si e contra todos. Kiev mudou de mãos cinco vezes em menos de um ano – cidades e regiões foram isoladas umas das outras pelas numerosas frentes. As comunicações com o mundo exterior foram interrompidas quase completamente.

Os anarquistas, liderados por Nestor Makhno, recusaram-se a submeter-se ao governo bolchevique e atuaram como uma espécie de contraponto ao nacionalismo ucraniano, aos imperialismos e ao bolchevismo. Diante desse caos, e obviamente envolvido com a Guerra Civil pós-revolução, Lênin percebeu com a habitual acurácia que concessões ao Estado ucraniano, inclusive nos domínios da língua e da cultura, eram necessárias para manter o controle do país. As aspirações ucranianas à independência eram tão fortes, raciocinou, que exigiam um grau de autonomia e um status igual ao da Rússia dentro da União Soviética. Em 1922, a República Socialista Soviética Ucraniana tornou-se membro fundadora da União Soviética.

Segundo Vladimir Putin, “a Ucrânia soviética é o resultado da política dos bolcheviques e pode ser chamada de ‘Ucrânia de Vladimir Lenin’. Ele foi seu criador e arquiteto”. É uma poderosa síntese, uma reescritura da história equivalente às versões stalinistas que reconfiguravam o passado para ordenar o presente. No meio desse caldeirão, Aleksandr Dovjienko saiu de Kiev em fevereiro de 1919 e passou oito meses fugindo dos bolcheviques: foi preso pela Cheka, a polícia secreta, em setembro. Conseguiu a libertação através da ala esquerda dos borotbistas, que haviam se aliado a Moscou, e obteve a reconciliação.

Sua trajetória política entre 1917 e 1920 não tem, aparentemente, coerência: mas é o que pode esperar-se do caos desencadeado pela revolução, invasão e guerra. Quando as circunstâncias mudavam, ele fazia o que muitos faziam – mudava de lado. Sobreviveu como podia nesse mundo volátil: suas escolhas políticas e angústias nesse curto e intenso intervalo foram determinantes para sua formação – e também para a construção estética de seus filmes, a relação com o poder autocrático de Stalin e o sofrimento e privação que amargou no final da vida.

A montanha do tesouro

Finalizado em 1928, A montanha do tesouro – Zvenígora, título original – é o quarto filme de Aleksandr Dovjienko, mas o primeiro assumido artisticamente pelo o diretor. Extremamente ambicioso, almeja nada menos do que uma síntese milenar, um pouco ao estilo de Intolerância de Griffith (exibido com sucesso na nascente URSS). Estruturado em três seções temporais que se cruzam e colidem, Zvenígora propõe-se a construir paralelos de diferentes tempos históricos, sem sinalizações lógicas de causa e efeito, desorientando o espectador, no limite da perplexidade. Na atualidade do tempo diegético, a revolução soviético-ucraniana do início do século XX, um avô camponês e seus dois netos buscam o tesouro perdido de Zvenígora: a primeira menção do tesouro remonta ao ano 1087.

Um dos netos deixa-se seduzir pela promessa de fortuna fácil e emigra para a Europa a fim de levantar fundos para a busca do tesouro: o outro recusa-se a colaborar, e junta-se às forças progressistas dos bolcheviques. A narrativa alterna flashbacks na época de Roksana, mulher ucraniana capturada pelos tártaros da Criméia e vendida para um sultão turco, no século XVI.

Legenda histórica popular e mitificada, Roksana trai o marido e liberta os cossacos capturados – reproduzindo a saga dos oprimidos versus invasores coloniais. A genealogia da revolução soviética transita pelo passado mítico, em duas etapas cronologicamente assimétricas, e no final a vitória da razão revolucionária é reassegurada: o neto nacionalista suicida-se, o avô é resgatado pelo neto militante e embarca em um trem rumo ao futuro.

Produzido no estúdio ucraniano VUFKU, em Zvenígora o folclore torna-se discurso político, intercalando disjuntivamente a Revolução de Outubro, eventos reais e mitificados da história ucraniana, narrativas folclóricas e tradição pagã eslava. Aleksandr Dovjienko dobrou a aposta: o período ainda permitia experimentos formais no campo das artes, desde que pautados pela eloquência revolucionária.

A montanha do tesouro é uma obra elíptica, ou eclética, como disse o próprio autor – e foi recebida por um entusiasmado Eisenstein como uma “profunda invenção nacional e poética”, opinião que não era consensual na crítica russa, começando pelo Pravda. Na Ucrânia, exceto por aqueles que se batiam pelas narrativas lineares e fáceis, foi saudado como o primeiro filme verdadeiramente ucraniano.

Para Gilles Deleuze, Aleksandr Dovjienko (e Zvenígora, em particular) era um cineasta obcecado com a “trágica relação entre as partes, o conjunto e o todo. Sua maestria era mergulhar o conjunto e as partes em um todo que dava a eles uma profundidade e uma extensão desproporcionais aos seus próprios limites. Nessa incomensurabilidade do tempo, a ideologia soviética podia ser sutilmente subvertida e o passado remoto, surpreendentemente, reinstalado”.

Arsenal

A despeito da recepção ambígua, o Partido encomendou a Aleksandr Dovjienko seu próximo filme, sobre a revolta do Arsenal de Kiev – ocorrida em 29 de janeiro de 1918 durante as eleições ucranianas para a Assembleia Constituinte, em que os bolcheviques eram minoritários. Sua tarefa era “desmascarar o nacionalismo reacionário e chauvinista ucraniano e ser o bardo da classe operária”. O que seria uma celebração cinematográfica, entretanto, fragmentou-se em distintas ondas de violência, desvelando as inconsistências não apenas das forças imperiais – alemães – mas também dos demais implicados no conflito, ucranianos e bolcheviques.

Os deslocamentos narrativos de tempo e espaço, mais calibrados em relação ao seu trabalho anterior, operam em uma estrutura rigorosamente construída, cheia de alusões e imagens elaboradas: o resultado é uma textura visualmente potente, de alta voltagem poética, mas sem glórias à Revolução, pelo contrário, introduzindo uma moral ambígua no seio do projeto revolucionário. A guerra e suas consequências sacrificam inocentes, mães e filhos, camponeses e proletários – e liquidam o progresso social. Não há espetacularização da guerra, há um fluxo constante de guerra, que atinge a tudo e a todos, do soldado alemão que gargalha atingido pelo gás ao protagonista Timosh, soldado-operário que brada: “eu sou ucraniano!” para se fechar no arsenal de Kiev e lutar em prol do avanço do Exército Vermelho.

A questão da identidade nacional está no centro de Arsenal: a trajetória do soldado desmobilizado se funde na Duma, gênero folclórico musical-literário surgido no século XVI na Ucrânia, vetor de lamentos e tristezas, cantado por cossacos nômades e cegos. Logo no início, um intertítulo anuncia:

“Oh, havia uma mãe com três filhos
Houve uma Guerra
Os filhos da mãe não existem mais”

O lamento atualiza-se com o tratamento poético contemporâneo, e a tradição oral da Duma dissolve-se no modernismo estético de inspiração marxista. Também na composição visual, Aleksandr Dovjienko utiliza um tratamento que seculariza a iconografia da Igreja Ortodoxa bizantina: críticos ucranianos identificam nessas estratégias de linguagem uma sintonia com as vanguardas europeias e formas tradicionais populares. A revolta do arsenal de Kiev não é o centro do filme: ela é marginalizada e apropriada com outros objetivos. O que importa é a construção estética de cenas e situações, não o arco narrativo do enaltecimento revolucionário.

O filme foi entendido e aceito pelo público e pelo Partido, mas não pela comunidade de escritores, ou, podemos supor, pela alta liderança ucraniana, lamentou o diretor em sua autobiografia de 1939: na imprensa de seu país, críticos impiedosos, alguns velhos amigos, acusaram-no de profanar a nação ucraniana e tratar os nacionalistas como non-entities e aventureiros. Uma delegação de intelectuais se deu ao trabalho de viajar a Moscou para pedir o banimento do filme – e não foi repreendida pela liderança do Partido, o que magoou o realizador. Aleksandr Dovjienko sentiu orgulho pela obra que criou, ao mesmo tempo em que experimentou uma amargura: “me dei conta que a sociedade soviética não era esplêndida como gostaríamos”.

Terra

Reconciliar o passado pastoral de contornos culturais de seu país com as exigências do presente revolucionário soviético pleno de demandas urgentes – a essa tarefa engajou-se Aleksandr Dovjienko no terceiro filme de sua trilogia. Um esforço que partia necessariamente de uma juntura problemática, a própria origem do diretor. Sua premissa logrou um feito único: absorvendo a energia liberadora da Revolução de 1917, foi pensada como exemplo da propaganda comunista e da centralidade da luta de classes na representação social; ao mesmo tempo, subterraneamente, foi percebida como panfleto da espiritualidade panteísta ucraniana, com alusões perigosamente nacionalistas.

Em 1930, a Ucrânia foi duramente atingida pela coletivização da agricultura, na mesma época em que Terra estava sendo finalizado. A violência contra os kulaks foi tanta que se instalou uma revolta espontânea em território ucraniano, obrigando o governo a uma breve suspensão das medidas mais duras de repressão, o que, ironicamente, permitiu que o filme fosse exibido. A proposta era ousada: reinstalar o conflito da coletivização entre camadas geracionais de kulaks, articulando com os procedimentos poéticos desenvolvidos nos trabalhos anteriores. Hoje existem pelo menos seis versões diferentes do filme, resultado das mutilações sofridas ao longo da sua tumultuada recepção.

A dialética de Aleksandr Dovjienko era peculiar: nas imagens em que os personagens dirigem o olhar à audiência, com o objetivo de implicá-la em sua luta e sublinhar a unidade da família e da classe social, a fonte de inspiração foram os ícones ortodoxos, figuras sacras pintadas sobre madeira com um fundo sem perspectiva – só que, em lugar da figura sacra, surge um rosto potencialmente revolucionário. A aura religiosa foi adaptada ao materialismo prevalecente na visão estético-ideológica do Partido. E não apenas nos retratos em primeiro plano dos heróis, vilões e vítimas do processo histórico, mas também nos objetos e na natureza.

Circundados por um halo produzido por um sutil fora de foco, as imagens em primeiro plano – rostos, flores, objetos mecânicos – adquirem uma “significação corpórea” que desperta uma sensação de toque no espectador. Uma combinação, por certo, que provoca forte efeito de estranhamento – cinema-poesia, que se funda na premência do momento histórico da revolução socialista para produzir uma consciência da transição e superação históricas, sustentando ao mesmo tempo uma subjetividade fecunda e original.

As porções férteis das terras soviéticas, como era o caso da Ucrânia, eram prioridade para as políticas ligadas à coletivização da agricultura. O resultado final foi dramático: deportação em massa de centenas de milhares de kulaks para a Sibéria; fome motivada pela queda abrupta da produção agrícola em função do intervencionismo; juntamente com as execuções dos fazendeiros rebeldes, esses desdobramentos teriam levado à morte cerca de sete milhões de pessoas, das quais quatro ucranianos. O gerenciamento de uma tal política em um país extenso e complexo era uma tarefa árdua.

No topo da hierarquia, o próprio Stálin emitia sinais contraditórios, como no artigo que publicou no Pravda, em março de 1930, alertando para os excessos cometidos ao longo do processo (o título é por si só revelador, “Vertigem do sucesso”). Para o líder, em fevereiro daquele ano, metade das propriedades rurais de toda a União Soviética tinham sido coletivizadas, mas o sucesso veio com um lado sórdido – uma intoxicação nos agentes causada pelo sucesso da implementação: “a imprensa deveria denunciar esses sentimentos antileninistas […] que só surgiram porque alguns dos nossos camaradas ficaram tontos com o sucesso e por um momento perderam a clareza do raciocínio e a sobriedade da visão”.

Realismo socialista

Nos novos tempos de centralização autoritária promovida por Stálin, não restou alternativa a Aleksandr Dovjienko a não ser procurar soluções de compromisso. A senha para a produção artística nessa nova era – realismo socialista – foi referendada em 1934, no I Congresso de Escritores Soviéticos, presidido por Andrei Jdánov e Górki. No discurso de abertura, Jdánov revelou os procedimentos adequados para a produção politicamente correta. O que podem escrever os autores burgueses, disse, “que sonhos, que fonte de inspiração, se os trabalhadores dos países capitalistas estão inseguros diante do futuro?” As características dessa decadente cultura são “as orgias do misticismo e superstição, e a paixão pela pornografia”. A literatura tenta, de forma vã, esconder essa decadência, insistindo “que nada aconteceu e que tudo está bem no reino da Dinamarca”.

Segundo Andrei Jdánov, o camarada Stálin descreveu os escritores soviéticos “como engenheiros da alma humana”. Isso significa que o dever dos artistas era o conhecimento da vida e a capacidade de descrevê-la verdadeiramente em obras de arte, “não de forma escolástica ou simplesmente como realidade objetiva, mas a realidade no seu desenvolvimento revolucionário”. O dever dos escritores implicava também na remodelação ideológica e educação dos trabalhadores no espírito do socialismo. Tal método nas belles lettres e crítica literária é o que chamamos de realismo socialista”.

Para um autor como Aleksandr Dovjienko, sobreviver nesse ambiente, física e intelectualmente, significava derivar sua linguagem para um tratamento realista estranho aos seus princípios. Terra e mesmo Ivan, o longa-metragem que realizou em 1932, foram alvo de duras críticas: Sua primeira produção sonora, Ivan, foi taxada pelo Comissário da Educação do Partido na Ucrânia de fascista. O personagem-título sai do campo para tornar-se operário na construção de uma hidroelétrica, onde morre em um acidente. Seu aprendizado técnico e conscientização política desdobram-se simultaneamente sob o pano de fundo do plano quinquenal. Temeroso, o cineasta mudou-se para Moscou e escreveu carta a Stálin solicitando “conselhos”, ou seja, proteção.

Foi atendido e recebido no Kremlin, em 14 de abril de 1934, por longos 70 minutos. O roteiro que acabara de completar, “Aerogrado”, foi o tema principal. O próprio diretor descreveu o encontro: “O grande Stálin me recebeu naquele dia, no Kremlin como um mestre gentil, e apresentou-me, animado e feliz, aos camaradas Molotov, Voroshilov, Kirov: ouviu minha leitura, deu sua aprovação e desejou-me sucesso em meu trabalho. Quando eu o vi, senti que o mundo havia mudado para mim. Com sua paternal solicitude, o camarada Stálin tirou de minhas costas o fardo de muitos anos, quando eu me sentia criativamente e, portanto, politicamente, inferior, um sentimento incutido em mim pelo ambiente em que circulava”.

Aerogrado é uma fictícia cidade com um aeródromo estratégico e de interesse vital para a Rússia: trata-se de um posto avançado na Sibéria Oriental sob ameaça de ataque dos japoneses. O caçador Stepan Glushak, bolchevique veterano da guerra civil, luta com ajuda de seus vizinhos para defender sua floresta de infiltrados japoneses, oriundos da Manchúria chinesa ocupada pouco antes. O grupo derrota os invasores e abre caminho para a construção da moderna cidade de Aerogrado. Stálin gostou do projeto e aventou, com o cineasta, qual seria a melhor localização da hipotética cidade, diante do mapa na parede do seu escritório privativo.

Aleksandr Dovjienko ficou comovido pela atenção recebida: em fevereiro de 1935, recebeu a Ordem de Lenin, no 15º aniversário do cinema soviético, quando discursou calorosamente sobre Stálin. Estava, por óbvio, ciente das prisões e expurgos que se intensificaram nos anos 1930, sobretudo os que ocorreram na Ucrânia. Amigos e colaboradores, como Danylo Demutsky, seu talentoso e dileto diretor de fotografia, estavam entre as vítimas.

De acordo com informantes do NKVD, Comissariado do Povo de Assuntos Internos que controlava a segurança e o serviço secreto, o diretor teria comentado em privado que onde há fumaça a fogo, mas a situação tornou-se muito complexa, e a industrialização da URSS seria agora a prioridade política mais importante. Aerogrado veio a ser um filme de sucesso, nos parâmetros do realismo socialista, e reabilitou politicamente Aleksandr Dovjienko. Stepan Shahaida, o ator que representou o caçador Glushak, entretanto, não teve a mesma sorte: foi preso e executado em 1938.

À procura do herói positivado

Mykola Shchors foi um comunista ucraniano que serviu como comandante do Exército Vermelho durante a Guerra Civil: entre 1918 e 1919 lutou contra a recém-estabelecida República Popular da Ucrânia. Foi morto após a evacuação de Kiev em 1919, com 24 anos. Antes de 1935, poucos sabiam quem era Mykola Shchors, que desempenhou papel secundário no conflito. Stálin mencionou o nome nas suas observações sobre a cinematografia soviética, por ocasião do 15º aniversário, e Shchors tornou-se da noite para o dia “um dos organizadores e comandantes das primeiras unidades do Exército Vermelho na Ucrânia… que ajudou a libertar a Ucrânia da contra-revolução”.

Na reescritura da história, que mobilizava historiadores e jornalistas, passando inapelavelmente por cineastas, Aleksandr Dovjienko foi convocado para escrever o roteiro e produzir o filme, Shchors: a ideia era reproduzir o sucesso de Tchapaiev, dirigido por Serguei Vassíliev e Gueórgui Vassíliev (sem relação de parentesco), que narrou a fase final da vida de Vassíli Ivánoviych Tchapaiev – comandante não comissionado do Exército Vermelho, de origem camponesa humilde, celebrado pelo carisma e feitos heroicos na guerra contra os Brancos. Em 21 de novembro de 1934, o Pravda publicou pela primeira vez um editorial inteiramente dedicado ao cinema soviético, intitulado “Todo o país está assistindo Tchapaiev”.

A encomenda caiu pesada nos ombros do diretor. As contradições se aguçaram: como se não bastasse a distorcida versão do que se passou na Ucrânia naqueles anos revolucionários, o consultor militar do filme, Ivan Dubovy, que ficou amigo de Aleksandr Dovjienko, foi preso e executado em 1938, tendo antes confessado que tinha matado Shchors para tomar seu lugar como comandante da divisão. Todos sabiam como eram obtidas tais confissões naqueles anos sombrios. As dúvidas se avolumaram: como representar Dubovy na tela?

E Stálin, que começava sua ascensão triunfal no cinema com Lênin em Outubro, realizado por Mikhail Romm em 1937? A expectativa era que todos comandantes revolucionários, em qualquer filme, deveriam mencionar a liderança revolucionária do Secretário-Geral, não importando se era verdade ou uma simples licença dramática. Não faltavam razões para adensar a inquietação do cineasta. Entre 27 de fevereiro de 1935, quando o projeto foi apresentado pela primeira vez a Aleksandr Dovjienko, até março de 1939, quando Shchors foi lançado, o líder soviético encontrou-se várias vezes com o diretor, a cada uma delas mais exigente e menos cordial. Encontros que podiam acontecer tarde da noite – ou não acontecer, depois de horas de espera. Em um deles, Beria teria acusado Aleksandr Dovjienko de ser agente de uma conspiração nacionalista.

Ivan Dubovy – que no roteiro original assumia o comando depois da morte de Shchors na batalha – acabou excluído do filme, e Shchors terminou seus dias numa circunstância indefinida, etérea, tal como Tchapaiev. Stálin também não compareceu, e uma suposta conversação do herói do filme com Lênin é apenas mencionada. Em compensação, Shchors pontifica como protagonista solidamente determinado, convicto dos ideais leninistas. Como o filme sobre Tchapaiev, em última análise quem se beneficiou da exaltação heroica de Shchors foi ninguém outro do que o próprio Stálin, àquela altura em processo de superação dos impulsos expurgatórios internos que abalaram a URSS e ocupado em negociar o pacto de não-agressão com Hitler.

O filme obteve sucesso de público, e Aleksandr Dovjienko foi contemplado com a permissão para residir na capital ucraniana e assumir a direção artística do estúdio de Kiev. Foi agraciado com o prêmio Stálin, primeira classe, em 1941, e eleito para a Câmara de Vereadores de Kiev.

Ucrânia em chamas

Em 22 de junho de 1941 a Alemanha rompeu o pacto e invadiu a URSS. Stálin parecia não acreditar que os nazistas abririam uma nova frente com tal amplitude. Sua reação inicial beirou o colapso nervoso: passou três dias isolado na datcha e só falou pelo rádio no dia 3 de julho, conclamando a nação para a Guerra Patriótica contra o invasor. Na primeira fase da guerra, quando os alemães tinham a iniciativa, ocorreu o que os historiadores se referem como desestalinização espontânea, que encorajou um relativo apoio a identidades não-russas, incluindo a ucraniana, como parte da resistência ao invasor.

A vitória soviética na batalha de Stalingrado, em fevereiro de 1943, reverteu esse quadro – e as políticas em relação a nacionalidades voltaram com força redobrada. Aleksandr Dovjienko, empenhado na produção de documentários mobilizadores do esforço de guerra, foi vítima dessa mudança de curso. Em agosto de 1943 um roteiro seu, “Ucrânia em Chamas”, foi submetido ao Comitê Central – e na apresentação constava: “Epopeia cinematográfica consagrada ao sofrimento da Ucrânia sob a opressão nazista e à luta do povo ucraniano pela honra e liberdade do povo soviético”.

O texto descrevia a tragédia diária de uma família kolkhoz durante a ocupação alemã, enquanto a resistência local lutava contra o invasor e o Exército Vermelho era incapaz de conter o avanço alemão. No final de novembro, o Comitê Central decidiu vetar a produção do filme.

Em seus diários, Aleksandr Dovjienko conta que soube por terceiros do desagrado de Stálin com o roteiro. Poucos meses mais tarde, Nikita Khruschov, então responsável pelo Partido Comunista na Ucrânia, foi um dos signatários de resolução condenando o diretor por graves erros políticos, excluindo-o dos comitês de que fazia parte, do jornal Ukraína e do cargo de diretor artístico do estúdio de Kiev. Aleksandr Dovjienko foi acusado de “nacionalismo estreito e medíocre”, implicando que somente os ucranianos lutavam contra os alemães – e, por conseguinte, estimulando sentimentos patrióticos na Ucrânia.

Em 30 de janeiro de 1944, Stálin convocou o diretor, Khruschov, membros do Politburo e personalidades ucranianas para uma preleção: o roteiro continha ideias que “tentavam revisar o leninismo, era contra o nosso partido, contra o poder soviético, contra os kolkhozianos e contra nossas políticas de nacionalidade”. Aleksandr Dovjienko não apenas foi contra a luta de classes, ele se opôs à política do Partido de liquidar os kulaks como classe: não percebeu, enfim, que a luta contra os alemães também era guerra de classes, conflito entre opressores e oprimidos. Sobraram ainda acusações de falsidades sobre o Exército Vermelho e os líderes do Partido, descritos, segundo Stálin, como “carreiristas, pessoas egoístas e estúpidas, isoladas da sociedade”.

A decisão de vetar “Ucrânia em chamas” veio logo depois da exibição, em outubro de 1943, com boa recepção na imprensa, de A batalha pela nossa Ucrânia Soviética, com roteiro e supervisão artística de Aleksandr Dovjienko – realizado com base em material de cinejornal, inclusive de origem alemã, capturado pelos soviéticos.

Malgrado a frustração, o diretor assinaria em 1945 a direção do documentário Vitória na margem direita da Ucrânia, em coautoria com Iúlia Solntseva e narração do próprio Aleksandr Dovjienko, também feito com imagens captadas por cinegrafistas de atualidades. A batalha pela nossa Ucrânia Soviética foi exibido nos Estados Unidos em 1944, com o título que seria do documentário vetado, “Ukraine in Flames”. Um crítico do jornal New York Times notou que, embora as cenas de batalhas tivessem uma “semelhança aflitiva” com as tomadas habituais dos cinejornais, “são os rostos dos civis, velhos e jovens, gravados com tristeza, desafio e coragem, que fazem de “Ucrânia em chamas” um documento vital”.

Epílogo

Completamente isolado, Aleksandr Dovjienko passou os nove anos que restavam de vida a Stálin tentando racionalizar o infortúnio grotesco de que fora vítima. Em seus diários, assumiu erros no roteiro de “Ucrânia em Chamas”, mas em nenhum momento duvidou da própria honestidade. Sentir-se perturbado com o destino de seus compatriotas ucranianos não o tornava um nacionalista radical: orgulhar-se de sua identidade ucraniana não era antitético com o internacionalismo comunista. Abalado mais uma vez, escreveu, na intimidade dos diários: “Chega de sofrimento e arrependimento dos meus pecados contra Stálin. Eu devo começar a trabalhar e provar a ele com meu trabalho que sou um artista soviético … e não um talento odioso com uma “ideologia limitada”. Devo me controlar, [envolver] meu coração, minha vontade e meus nervos em aço e… criar um roteiro e um filme digno de nosso grande papel em uma grande era histórica”.

Aleksandr Dovjienko ainda realizou uns poucos filmes e dedicou-se ao ensino de cinema. Contra sua vontade, continuou residindo em Moscou – e impedido de retornar à Ucrânia. Faleceu em 1956.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Referências


Adapting to the Stalinist Order: Alexander Dovzhenko’s Psychological Journey, 1933–1953, George O. Liber, EUROPE-ASIA STUDIES, Vol. 53, No. 7, 2001

Journal of Ukrainia Studies, vol. 19, nº 1, 1994, Special Issue: The Cinema of Alexander Dovzhenko

http://rayuzwyshyn.net/dovzhenko/Introduction.htm

Laurent, Natacha. L’Oeil du Kremlin: cinema et censure en URSS sous Staline, Privat, 2000.


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