Por ARI MARCELO SOLON*
Comentário sobre a nova biografia do filósofo
L’azione política del filosofo é a segunda biografia de Alexandre Kojève escrita por Marco Filoni. Eu gostava do título da primeira: Il filosofo della domenica [Bollati Boringhieri, 2008]. À medida que evocava a filosofia estética de Hegel, na parte em que abordava a pintura flamenga e dizia que “este é o fim da História, todos estão felizes, não precisam de mais nada”.
Essa segunda versão é bem menos utópica. Começa mostrando toda a contribuição que Kojève fez para a elite cultural francesa ao dar, entre 1933-1936, o famoso curso sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel.
Alexandre Koyré, o grande fenomenólogo, havia se ausentado, ido para o Cairo e, em seu lugar, tendo como impulso o artigo de Koyré – “Hegel em Jena” –, Kojève faz uma interpretação radical da Fenomenologia do espírito, a partir do seu Capítulo IV, “A Dialética do Senhor e do Escravo”. Nesse sentido, feitos que marcaram toda uma geração de intelectuais franceses, o desejo do desejo, o desejo do reconhecimento, a dialética do amo e do escravo são ensinados em Paris [KOJÈVE, Alexandre. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947].
Marco Filoni mostra que esse Hegel não é apenas o parisiense, mas o russo, tal era a influência dos filósofos (da religião) russos, tais como Vladimir Soloviov, autor magistral de Uma história do Anticristo [A Story of Anti-Christ. Fredericksburg / Kassock Bros], em torno da meditação sobre Sophia como encarnação da alma humana.
Filoni aponta que “Sophia” foi o tema do manuscrito de mil páginas, que Georges Bataille conservou escondido na Bibliothèque Nationale de France, junto com os manuscritos a ele confiados por Walter Benjamin.
A influência russa não se dá apenas pela religião do inexiste, de vertente budista, mas, também, a filosofia da ação, isto é, o cerne dessa segunda biografia de Filoni. Afinal, em Hegel, a ação como negação é a característica do homem via trabalho.
O que é o fim da história para Kojève? Será o fim da história de matriz hegeliano-marxista, mas que culmina na visão stalinista, tal como escreve Jeff Love, em The black circle?
Será o fim da história a la Kant, de seu amigo Éric Weil [Hegel et l’Etat. Vrin, 1970], após a desilusão com o hegeliano-marxismo?
Com certeza não é o fim da história dos neoliberais, tais como Francis Fukuyama [The End of History and the Last Man. The Free Press, 1992], que distorceram a interpretação de Hegel.
Entre a visão hegeliano marxista e a visão stalinista, com razão e em nota de rodapé, Filoni deixa entrever a ironia kojeviana, afinal, o que é a filosofia sem ironia?
E, mesmo o tema controvertido de Kojève, como espião da KGB, merece, à moda kojèviana, apenas uma nota de rodapé para retratar o intuito persecutório da DST francesa, que demonstra mais que a filiação de Kojève à KGB, um fascínio total da DST pela obra do filósofo que fez parte da elite administrativa do pós-guerra na França.
Particularmente, preferiria aprender a obra Il filosofo della domenica, porque não precisava saber como está nessa segunda obra como Kojève se parecia com Vichy. Na realidade de Vichy, diante da realidade do fascismo desse, Kojève, membro ativo da resistência francesa e com ações ousadas na linha de fronte, dentro do exército e tentando virar o exército nazista a favor da resistência, com seus hábeis conhecimentos linguísticos, também faz uma ponte com o único intelectual de Vichy que era algo resistente.
Daí se explica que o livro de Kojève O conceito de autoridade [La notion de autorité. Gallimard, 2004], que é uma continuidade da fenomenologia do direito de Kojève, infelizmente, considera a autoridade de Pétain legítima. Quem considera Carl Schmitt, conhece esses doces de sua obra, pois se trata de uma influência direta, apesar de que, em 1955, Kojève começa a se interessar pela obra de Schmitt e é convidado para falar em Düsseldorf, trata-se dos dois Maquiavéis do século XX.
Esta segunda edição também me ensinou que, além do Hegel-Marx de Kojève, temos a importante influência da escola durkheimiana, afinal, o realismo de Kojève também é o realismo sociológico de Durkheim. O conceito de dom/dádiva de Marcel Mauss permite Kojève superar Schmitt, à medida que o “nomos” do capitalismo não é tomar como origem da palavra nomos, mas “doar”. O capitalismo que doa, uma nova forma do capitalismo pós-colonial.
Entretanto, esse capitalismo, também, hegelianamente é superado, não por Stalin, mas pelo formalismo ritualista da vida oriental.
Esperamos ansiosamente a publicação de “Sophia”. Sophia é uma das emanações divinas, a esfera da sabedoria. Será que Kojève, que defendia uma elite ateísta, como fala Filoni em relação ao império latino para liderar os países católicos. No fundo, não aceita a secularização da Sophia?
Não seria o fim da história de Kojève, de fato, 1806, quando Hegel vê Napoleão entregar em Jena, não apenas as balas de canhão, mas, também, o Code civil e a Declaração dos Direitos Humanos?
O fim da República das Letras, de Pierre Bayle [Nouvelles de la Republique des Lettres], não geraria uma nova era do fim da exploração e da liberação dos oprimidos?
Se Sophia é da essência da Filosofia, talvez nos próximos anos nos revelem um fim da história de revelação da justiça na terra.
O livro é tão perfeito que, apesar de ter tirado o melhor título, “o filósofo do domingo”, termina com a filosofia do domingo, do realista católico G. K. Chesterton [CHESTERTON, G. K. The man who was Thursday], no livro em homenagem à quinta-feira.
*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prismas).
Referência
Marco Filoni. L’azione politicadel filosofo: La vita e Il pensiero di Alexandre Kojève. Turim: Bollati Boringhieri, 2021.