Por Julian Rodrigues*
Alfredo Bosi constituía com Antonio Candido o cânone da teoria literária brasileira, mestres humanistas e socialistas que inspiraram gerações
Em 2017 foi-se o mestre dos magos: professor dos professores, sir Antonio Candido. Agora perdemos também Alfredo Bosi. Tenho certeza que um bando de gente boa por aí foi tomada por uma sensação de orfandade.
Aqui já aviso que não há qualquer intenção científica, o artigo é mesmo só para registrar meu testemunho subjetivo da influência intelectual – e diria até moral, do professor Alfredo Bosi.
Mineiro, iniciando o curso de Letras na Universidade Federal de Viçosa, no início dos anos 1990. História Concisa da Literatura Brasileira, editada pela Cultrix passou a ser meu livro de cabeceira. Peguei até o exemplar velhinho agora, para folhear, matar saudade, enquanto escrevo.
Tive a sorte e o privilégio de ser aluno de extraordinárias professoras e professores. Mas, uma brincadeira recorrente entre nós, alunos, era : um dia vamos pra USP ver uma aula do Alfredo Bosi (porque Antonio Candido já estava mais velhinho).
“O ser e o tempo na poesia” foi uma obra mais difícil de estudar, a despeito de menos extensa. Apreender as camadas dos textos, as sínteses formais-conteudísticas – um baita desafio. Entender o tanto de conhecimento que fundamentava cada análise do autor – aquele amálgama de filosofia, história, sociologia, estética, linguística, teoria literária, ensaio, intuição.
Erudição e elegância – ideias apresentadas de maneira sintética sem prepotência ou adornos inúteis. Um paradigma de como escrever.
Todavia, para nós graduandos entusiasmados, quase imberbes, um marco “epistemológico” foi mesmo poder ler o recém-lançado “Dialética da Colonização”. Que livro, senhoras e senhores, que livro!
Cada ensaio parecia organizar e dar sentido às nossas leituras sobre a formação histórica desse Brasil de meu deus e suas tentativas de produzir literatura.
Em uma linguagem talvez menos rígida, talvez ainda mais elegante, o professor meio que explica quase tudo.
Eu nunca tinha entendido direito o que foi esse Brasil colonial. E agradeço para toda vida Bosi ter desvendado definitivamente para mim a natureza nos liberais brasileiro.
Canônico o ensaio “A escravidão entre dois liberalismos”, um trechinho: “filtragem ideológica e contemporização, estas seriam as estratégias do nosso liberalismo intra-oligárquico em todo o período em que se construía o Estado nacional”.
Nada mais atual. Nossos liberais limpinhos agora estão a filtrar os arroubos neofascistas de Bolsonaro para manter seus privilégios e a agenda de destruição das políticas sociais.
Possivelmente, considerando os critérios produtivistas dos lattes da vida de hoje, um livro monumental como esse pontuaria menos que um artiguete qualquer, que fosse escrito em inglês- publicado em alguma revista internacional cheia de estrelinhas (se bem que é pior ainda, na área de humanas, há menos ainda opções de revistas estreladas).
A reverência pelos mestres formadores – para além das memórias redivivas crava também lamento e apelo. Um desejo de voltar aos tempos da delicadeza, da ousadia, da coragem de estudar-explicar o mundo por inteiro.
Fico lembrando de tanta gente imensa: Sérgio Buarque de Holanda, Pagu, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Nise Silveira, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Nelson Werneck Sodré, Paulo Freire, Alfredo Bosi, Octávio Ianni, Lélia Gonzales.
Ao chorar pelo mestre Bosi e celebrar sua vida é inevitável sentir um gosto de vácuo amargo na boca. A universidade virou mesmo uma coleção de gente pesquisando coisas minúsculas para produzir industrialmente artigos irrelevantes?
Desistimos de pensar grande? De ter a pretensão saudavelmente grandiosa – de ler tudo, conhecer tudo para poder contribuir com um pedacinho que seja – nessa estrada humana do saber, da ciência, das artes?
Bosi: católico, humanista, teoricamente eclético talvez tenha sido mais radicalmente humanista e anti-capitalista que tantos por aí. Um ícone.
Viva Antonio Cândido e Alfredo Bosi – que nos deram régua e compasso. O desafio agora é pisar, sem vacilar, sem desviar o rumo. Andar trilhas abertas pelos nossos mestres.
*Julian Rodrigues é professor, jornalista e ativista dos movimentos LGBTI e de Direitos Humanos