Por JULIAN RODRIGUES*
Os desafios do movimento LGBTI em meio à onda neofascista
O governo Bolsonaro não é um governo “normal” – está fora do âmbito do arco democrático-liberal. Trata-se de um movimento neofascista, com conexões internacionais. É disruptivo, autoritário. O programa ultraliberal de Bolsonaro (Guedes) permitiu sua vitória em 2018 – havia uma expectativa entre as elites de que poderia ser contido. Não foi o que aconteceu.
A destruição operada pelo bolsonarismo não tem precedentes. Trata-se não só do ataque às liberdades democráticas e aos direitos sociais, ambientais, trabalhistas como também à promoção do discurso de ódio e da discriminação como políticas de governo. A cultura, a educação, o meio ambiente, a pluralidade e os direitos das mulheres, negros e LGBTI são alvos prioritários dos ataques neofascistas.
O bolsonarismo firmou uma forte aliança com o fundamentalismo religioso, com os mercadores da fé e com a direita cristã (não só evangélica). Desde pelo menos 2010 há uma ascensão conservadora, que cresceu entre 2013 e 2015, quando a falácia da “ideologia de gênero” foi o gatilho que amalgamou o pânico moral e retirou dos Planos Educacionais quaisquer menções às políticas de igualdade de gênero de diversidade sexual e de gênero.
A “cruzada anti-gênero” não é invenção de Bolsonaro ou Malafaia. Está articulada internacionalmente, tanto com a cúpula da Igreja Católica – que elaborou o conceito, quanto com os governos e movimentos reacionários na Europa, EUA e toda América Latina. Paradoxalmente, essa cruzada obscurantista acontece no momento em que o movimento LGBTI conquistou suas três principais bandeiras. Junto ao STF. Conseguimos, desde 2011: (a) casamento igualitário; (b) liberdade identidade de gênero; (c) criminalização da discriminação contra LGBTIs. Para não mencionar a vitória na doação de sangue, as decisões que barraram leis da “escola sem partido” entre outras.
Nossas conquistas no Poder Executivo, em todos os níveis, se concentraram entre 2003 e 2012. A começar pelo ousado e inédito Brasil sem Homofobia em 2004, passando pela Conferência LGBT em 2008 – e a criação de órgãos, planos e políticas em diversos Estados e municípios. Dois destaques: Rio Sem Homofobia e as políticas do governo de Fernando Haddad, do qual tive o privilégio de participar na elaboração das políticas e na criação do Transcidadania (foi o que mais investiu, chegando a R$10 milhões no último ano de governo).
Ao mesmo tempo, a situação só piora no Congresso Nacional, que nunca aprovou nenhuma lei pró-LGBT em todos esses anos.
A década de 2000 foi marcada pelos avanços no governo Federal e nos executivos. A década de 2010 foi marcada pelas vitórias no Judiciário. A situação é muito contraditória porque além dos avanços no Judiciário, conquistamos também muita visibilidade positiva e aprofundamos nossa articulação com o mercado. Sobretudo com a mídia. A visibilidade positiva das LGBTI cresceu.
Ao mesmo tempo, cresceram o preconceito e os discursos de ódio promovidos pelas lideranças cristãs reacionárias articuladas com Bolsonaro. Uma rede de vereadores, deputados estaduais, deputados federais, “influencers” digitais se dedica diuturnamente a atacar as LGBTI, a inventar e propor leis restritivas, a disseminar discurso de ódio.
O “pânico moral” continua firme e forte, mobilizando milhões de trabalhadoras, pobres, periféricos, pessoas do povo que se assustam com os discursos deles. Gayzismo, ditadura gay, mamadeira de piroca, transformar meninos em meninas, femininazis, e todo tipo de manipulação. As políticas educacionais estão no centro da guerra por direitos hoje, contra o avanço neofascista e fundamentalista religioso.
A extrema-direita veio para ficar. Derrotar o Bolsonaro nas urnas em 2022 é bem menos difícil do que derrotar o neofascismo, que hoje é uma corrente de massas no Brasil.
Os direitos sexuais e reprodutivos, a luta feminista, a luta LGBTI são alvos prioritários do bolsonarismo. Mas nós também estamos entre os setores mais organizados e dinâmicos da sociedade civil. Temos bala na agulha para enfrentar essa direita tresloucada. Simultaneamente somos “saco de pancada” e também uma barreira civilizatória. Nos cabe um papel fundamental: ajudar a interromper o avanço dessas ideias autoritárias, racistas, machistas, homofóbicas e transfóbicas.
O que fazer?
O cenário da comunidade e do movimento LGBTI de maneira ampla mudou demais. O primeiro passo é tentar entender tais transformações para nos reposicionarmos. É preciso reforçar a centralidade, organicidade, unidade, foco, discursos e estratégias comuns. Sob o risco de nos dispersarmos em uma sopa digital. A “lacrolândia” (onde predominam o individualismo, a vaidade, a caça de cliques, a despolitização, a falta de rigor acadêmico, a ausência de pactos coletivos) não pode ser a direção concreta, objetiva do nosso movimento. Um baita desafio aí.
A comunicação nas redes, criando o “gabinete do amor”, uma “Plataforma do Respeito” deve ser um esforço coletivo e central do movimento. Outro foco do movimento deve ser a formação ativista. Para uma nova geração militante e orgânica, é preciso uma formação que não seja aquela disponibilizada fragmentariamente por influencers digitais. Temos que ter uma política de formação de ativistas, nacionalmente articulada.
A prioridade, obviamente, é fazer todos os esforços para derrotar Bolsonaro. Agora ou nas urnas. No segundo turno, o movimento deve se engajar no apoio ao candidato anti-bolsonarista, que provavelmente será Lula. No DataFolha de 15 de setembro, Lula aparece com 60% de intenções de voto entre homossexuais e bissexuais – um verdadeiro ícone LGBT.
As cruzadas anti-gênero tem o foco nas políticas educacionais. Cabe ao movimento organizar uma estratégia de incidência política com foco aí um Plano de Promoção da Igualdade de Gênero e do Respeito à diversidade sexual e de gênero na Educação.
Estamos sentindo o efeito de um fortíssimo backlash, conceito que não tem uma boa tradução em português. Trata-se da reação, de onda conservadora ressentida – poderoso sentimento que gera uma contra-mobilização. Como aquelas ondas fortes que nos jogam de volta à areia da praia.
A pauta LGBTI não está restrita aos círculos da esquerda/centro-esquerda – é abraçada e disputada pelos neoliberais progressistas, pelo mercado, pela Globo, Facebook, partidos de centro-direita e direita liberal. Ou seja, cresce a polarização, mas também a possibilidade de alianças.
“Nestes últimos vinte anos
Nada de novo há
No rugir das tempestades
Não estamos alegres,
É certo,
Mas também por que razão
Haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
É agitado.
As ameaças
E as guerras
Havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
Cortando-as
Como uma quilha corta
As ondas.”
(Vladimir Maiakóvski, 1927).
*Julian Rodrigues é professor e jornalista. Membro do Conselho Nacional do MNDH e da Aliança Nacional LGBTI.