Antônio Cícero — em memória da vida

Imagem: Ron Lach
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Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO*

Os poemas e as canções, especialmente na voz de Marina Lima e Adriana Calcanhotto, seguirão como prova da persistência de sua memória em todos/as nós

Após vários dias sem deixar de pensar em Antônio Cícero, acordando com trechos de suas composições na cabeça, entendi que deveria escrever. Faço isso não para me apartar de suas canções, nem porque acredite que os que ainda seguem vivos devem lançar uma última palavra sobre aqueles que já foram, mas porque a carta deixada pelo compositor e filósofo antes de praticar a eutanásia nos interroga sobre o que é uma vida com dignidade.

Albert Camus abre O mito de Sísifo dizendo que só existe uma questão filosófica realmente séria e ela é o suicídio, pois julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. Camus também nos lembra que “cultivamos o hábito de viver, antes de adquirir o hábito de pensar” (CAMUS, 2019, p.15),1 o que explicaria o recuo do corpo diante do aniquilamento. Mas apesar disso, não são raros os casos de suicídio — essa espécie de salto no absurdo, segundo a filosofia camusiana.

Assim foi com Antônio Cícero, julgando que a sua vida não valia mais a pena. Na carta deixada, ele diz “(…) como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e morrer com dignidade”.2 O que tornou a sua vida insuportável foi sofrer com Alzheimer, impedindo-o de realizar aquilo que lhe era essencial: escrever bons poemas e ensaios de filosofia, concentrar-se para ler e conviver com os amigos.

Dignidade, para Antônio Cícero, possuía estas qualidades, pois compreendia que viver não é apenas um hábito e sim um exercício do espírito — com essa palavra não remeto ao plano transcendente, mas àquilo que se produz na vida humana e não se reduz ao que é material, tal é o caso do próprio sentido da vida. Esse movimento desloca a dignidade do valor da vida (muitas vezes considerado intrínseco) para as condições dessa própria vida, tomada aqui em sentido particular.

Nesse sentido, a elaboração sobre o que é uma vida com dignidade abarca a todos/as nós, inclusive quem compõe as classes econômicas menos favorecidas e geralmente está privado desse tempo de cuidado de si em função das jornadas exaustivas de trabalho. Sobre esse ponto, cabe pensar a necessidade da luta anticapitalista para que a própria elaboração da “dignidade” seja menos abstrata a quem não possui tantos recursos financeiros, para que ela não seja pensada estritamente em garantir o pão na mesa, mas sim em criar múltiplos significados para a vida, tais como criar histórias, formas de arte, modos de organizar a revolta coletivamente, etc.

Entretanto, caso o suicídio se apresente como a única via para o sujeito, enfatizo o campo em que ele deve ser pensado: não da moralidade, mas do jogo de forças. Que Antônio Cícero tenha passado alguma dificuldade e se sobreposto a ela é evidente, como é para qualquer vida na lida cotidiana, mas que em dado momento a sua condição com a memória tenha o impedido de ser quem se é despertou o limite da própria consciência, determinou o gesto definitivo. Dessa consciência a essa decisão há todo um desenrolar impossível de ser descrito, em perpétuo silêncio para nós. Trata-se de um jogo de forças porque não basta recorrer a nenhum adjetivo para dar conta desse gesto, nem exaltá-lo e nem condená-lo, é preciso pensar enquanto um acontecimento.

Em Lógica do sentido, Gilles Deleuze escreve sobre o que quer dizer querer o acontecimento: “‘A meu gosto pela morte, diz Bousquet, que era falência da vontade, substituirei um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade’. Deste gosto a este desejo, nada muda, de certa maneira, salvo uma mudança de vontade, uma espécie de salto no próprio lugar de todo corpo que troca sua vontade orgânica por uma vontade espiritual, que quer agora não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece” (DELEUZE, 1969, p. 175, tradução nossa).3

Essa mudança de vontade, esse salto, Gilles Deleuze chama de intuição volitiva ou transmutação. Poderíamos pensá-la na afirmação da vida na morte de Antônio Cícero, seu gesto que não permite o avanço do Alzheimer e a consequente falência da vontade para opô-la a um desejo de morrer, de afirmar a vida sob certas condições. Aqui, me abstenho de emitir juízos de valor sobre as condições materiais que o possibilitaram encerrar a própria vida com dignidade na Suíça, apenas sublinho o fato de que mesmo em ótimas condições financeiras é possível que alguém siga com seu corpo sobre a terra sem a menor elaboração de um sentido mais profundo da vida. Com isso, mais uma vez, aproximo “dignidade” a um desenvolvimento filosófico e/ou espiritual da vida e menos ao pertencimento a uma classe econômica alta.

Essa transmutação da vontade não se resolve na decisão do sujeito, é preciso um agenciamento capaz de levar isso ao cabo: a permanência do próprio desejo nessa difícil decisão, a autorização da equipe médica, o apoio dos familiares e amigos próximos, o instante anterior à morte que nesse caso dá a chance de uma despedida lúcida do mundo. Na letra de uma de suas composições mais famosas, Antônio Cícero diz que espera acontecimentos e nos lembra que “todo amor vale o quanto brilha”. Em sua decisão final ele não encarnou a espera, mas se tornou senhor de seu próprio acontecimento.

Os poemas e as canções, especialmente na voz de Marina Lima e Adriana Calcanhotto, seguirão como prova da persistência de sua memória em todos/as nós, seus apreciadores, sem jamais conseguir responder por onde Antônio Cícero nos prende, por onde ele foge e o que pretende de nós.4

* Amanda de Almeida Romão é mestranda em filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Notas


  1. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2019.
  2. Disponível em «https://www.cartacapital.com.br/cultura/a-carta-deixada-por-antonio-cicero-antes-da-morte-assistida-na-suica/».
  3. DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
  4. CÍCERO, Antônio, LIMA, Marina. Acontecimentos. In: LIMA, Marina. Marina Lima. Los Angeles: EMI-Odeon, 1991. 1 LP. 1 CD. Faixa 6.

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