Por LUIZ RENATO MARTINS*
Comentário sobre a trajetória do artista plástico, cujas obras podem ser vistas em duas mostras precursoras da 34a. Bienal de São Paulo
Para Neil Davidson (1957-2020) [i]
Desde os trabalhos de Winckelmann (1717-1768) e Herder (1744-1803) em meados do século 18, o universalismo, por um lado, e o nacionalismo, por outro, reivindicam a superioridade dos seus valores artísticos ante os do oponente. Embora remonte à era do Esclarecimento, a querela se desdobra ainda hoje, pois em parte – de modo insciente e a despeito de seus próprios termos – reflete os ritmos e as consequências desiguais do processo de desenvolvimento sistêmico e globalmente combinado da modernização capitalista, em curso desde o mercantilismo. Assim, para aferir a persistência da querela, basta recordar da polêmica do pós-modernismo e do multiculturalismo contra a concepção do crítico de arte formalista norte-americano Clement Greenberg (1909-94) acerca do modernismo.
Apesar do caráter acre e acirrado do confronto entre “universalistas” e “localistas,” ambos os lados têm muito em comum e compartem, por exemplo, a noção de autonomia estética, fundada na crença da imunidade da forma estética ante a materialidade do processo histórico geral. Este trabalho não entrará nessa disputa, cujos argumentos são marcadamente anti-dialéticos de ambos os lados.
Ao invés, partirei aqui de um comentário de Trotski (1879-1940), de 1922, acerca do Futurismo. Nele, Trotski observou que os “países atrasados” refletiram mais de uma vez – “com maior força e brilho” – as realizações dos “países avançados”, do que fizeram estes. A distinção, mesmo sem desenvolvimento ou prova, consta como um dos argumentos iniciais do ensaio intitulado “O Futurismo”, firmado em 08.09.1922.
O ensaio foi incluído e referido com destaque nas introduções, de setembro de 1923 bem como da segunda edição de julho de 1924, de Literatura e Revolução. Nele, Trotski afirmou: “observamos um fenômeno repetido mais de uma vez na história; os países atrasados mas com um certo nível de desenvolvimento cultural refletem com maior claridade e força em suas ideologias as conquistas dos países adiantados. Assim, o pensamento alemão dos séculos XVIII e XIX refletiu as conquistas econômicas dos ingleses e as conquistas políticas dos franceses. Desse modo, o futurismo alcançou sua mais clara expressão não nos Estados Unidos ou na Alemanha, mas na Itália e na Rússia” (TROTSKY, 2015, p. 285, grifos meus).
O que está em jogo nessa observação breve, e sem seguimento, de Trotski? A apropriação de formas avançadas pelos assim chamados “países atrasados” e o reuso delas em moldes periféricos e com poder superior de esclarecimento. De fato, e como é notório, países periféricos sofrem o impacto incessantemente e em todos os domínios das formas geradas nas economias capitalistas avançadas e são forçados a responder a elas. Em geral o fazem pela importação das formas avançadas numa escala rebaixada, comprando assim tecnologia ultrapassada ou para outros contextos e fins, bem como ideias inapropriadas ou fragmentadas e incompletas, vindo a utilizá-las de modo indevido e impreciso.
Porém não é o momento de subordinação, e sim o caso oposto, que quero discutir aqui. Ou seja, precisamente aquele aventado por Trotski no ensaio de 1922 sobre o futurismo, ao observar o proveito crítico e reflexivo superior extraído em certos casos por “países atrasados” de “formas avançadas” apropriadas aos países hegemônicos. Para tanto, vou extrair exemplos da obra do artista visual brasileiro Antonio Dias (1944-2018).
Foi na mostra Opinião 65 (MAM-RJ, 12.08-12.09.1965), no Rio de Janeiro, que seu trabalho irrompeu com grande impacto não apenas por responder frontalmente ao golpe, mas por fazê-lo evitando a cilada do nacionalismo que tinha capturado a maior parte da esquerda pré-64, debilitando-a previamente ante a iminência do golpe.
Em que consistia a nova síntese proposta por Dias ante o esquema dualista nacional x estrangeiro? Precisamente na apropriação dialética dos materiais da pop art para reintroduzi-los combinados a signos de violência e desfechos trágicos, de moldes periféricos. Notem, por favor, que a noção de “arte negativa”, de acordo com uma anotação feita num caderno de Dias, três anos depois, já se encontra intuída e realizada nessas pinturas de 1965, tal como outra ideia também formulada e anotada em 1968, a de “pintura como crítica de arte” – uma denominação possivelmente paralela à de “arte negativa” (DIAS, 1967-69; MIYADA, 2019, pp. 234-7).
Examinemos concretamente o exemplo de uma operação de pintura negativa, num trabalho pertencente à série denominada Dazibao (1972) (DIAS, 2010, pp. 126-7). Nessa série, a cor vermelha funciona como um instrumento de corte. De fato, por meio do vermelho, os jornais são reconstruídos, e Dias não apenas constrói uma pintura proveniente das negações (como anunciou na anotação de 1968 referida acima) mas também elabora sínteses que antecipam, a seu modo, a resposta que viria a dar numa entrevista em Köln (Colônia), Alemanha, em junho de 1994. Nela, à pergunta da entrevistadora – de por que utilizava formas geométricas combinadas a palavras –, ele respondeu: “(…) para mostrar esta totalidade que existe fora do quadro, e que de lá o invade” (DIAS, 1994, pp. 54-55).
De fato, contemporâneo à nota sobre a “arte negativa”, Do It Yourself: Freedom Territory (Faça Você Mesmo: Território Liberdade, 1968),[ii] um trabalho anterior aos Dazibaos, trouxera também operações negativas – não de modo isolado, mas combinadas à afirmação do seu nexo intrínseco com a realidade. Assim, entre 1968 e 1969, Dias, ao lado de Hélio Oiticica (1937-1980), estabeleceu princípios e o programa detalhado de um modo de trabalho ligado ao que Oiticica denominou de “arte ambiental”, precisamente para aludir à permeabilidade permanente do trabalho de arte à realidade.
Tomem nota, por favor, de que tal noção é estritamente contemporânea e responde ao assim chamado “linguistic turn (virada linguística)”, em curso naquela altura no ambiente universitário anglo-americano e com paralelos também no pós-estruturalismo francês, sem falar, é claro, nos ecos periféricos de tais vogas. Pois bem, em Do it Yourself: Freedom Territory – cuja estrutura foi claramente expropriada da chamada arte minimalista –, ambos, o solo da prática artística tanto quanto aquele da experiência do observador vinham conjugados, assim como o próprio trabalho, na forma de um pedaço de piso quadriculado por meio de uma fita adesiva. Incluídas no espaço do trabalho, designado como território livre, mas exposto a ataques, vinham algumas pedras que traziam uma plaqueta de metal pendurada, recordando as peças de identificação que os soldados trazem ao pescoço. Nas plaquetas – um sinal de origem aqui convertido em signo de finalidade – vinha escrito: To the Police (1968).
De tal modo, inversão e ironia – vale dizer, coisas arrebatadas aos outros –, eram convertidas em armas do artista e, logo, também do público. No curso do ato de expropriação, as perspectivas da liberdade e do combate nutriam-se reciprocamente.
Do it Yourself:…, ao lado de Anywhere Is My Land (1968), assim como de alguns outros trabalhos em moldes similares – e muito distintos dos trabalhos do ciclo anterior na chave “contrapop”, digamos assim –, foram todos feitos nos primeiros anos do exílio na Europa. Em resumo, além de aludir ao exílio, tais trabalhos eram claramente baseados em estruturas poéticas abertamente conflitantes com os temas escolhidos.
Desse modo, Dias, ao invés de buscar a forma única e adequada para o seu trabalho, como é usual na arte, capturava formas hostis ou no mínimo inóspitas, que apropriava ou sequestrava da arte conceitual e da arte minimalista. Utilizava-as para contrabandear dialeticamente memórias e observações de um exilado do Terceiro Mundo. O resultado de tal antítese era contraditória e simultaneamente distanciado e dramático.
A série The Illustration of Art, desenvolvida de 1971 a 1978 basicamente no exílio, era analogamente feita de procedimentos da arte analítica, incessantemente expostos, afetados e alterados por fatores externos ou “invasões”, para emprestar outra vez o termo do próprio Dias – visivelmente cumpliciado ao fenômeno que convertia todos os seus trabalhos em atos de um incessante processo de sabotagem da “forma pura”.
A série A Ilustração da Arte estendeu-se inclusive para além de uma viagem com estadia de três meses no Nepal em 1977. Lá, Dias instalou-se em comunidades rurais que faziam papel artesanalmente. Mas evoco só rápida e sumariamente a imersão do trabalho de Dias num modo de produção pré-capitalista ou primitivo. Igualmente, apenas evocarei sumariamente o estágio seguinte transcorrido no Brasil – logo, num outro contexto que não o de um modo pré-capitalista, e mais propriamente denominado, a meu ver, de “desenvolvimento no subdesenvolvimento”, segundo a fórmula elaborada noutras circunstâncias pelo economista André Gunder Frank (1929-2005).
De fato, meu objetivo aqui, ao mesmo tempo em que pautado, como apontei no início, pela reflexão sobre as contradições do processo de desenvolvimento desigual e combinado, é principalmente o de estabelecer o nexo entre as operações negativas, que são reiteradas provocativamente por Dias, com o vetor histórico principal do seu trabalho, consoante o empenho estratégico de reconstrução do realismo.[iii]
Nesse sentido, passemos ao exame do novo ciclo produtivo do trabalho de Dias após seu retorno ao Brasil no final dos anos 1970, que foi deflagrado em Milão em 1980. Sob muitos aspectos, o estágio brasileiro (no Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba, co-atuando com o crítico e parceiro Paulo Sérgio Duarte), ainda se deu no campo do projeto A Ilustração da Arte, que havia sido, como vimos, elaborado na contramão da arte de linha analítica. Já no início do ciclo seguinte, ora em foco, deparamos mudanças táticas cruciais não só no tocante à direção das operações negativas, que miram novos alvos – mas também no teor visual das formas objetivas concebidas por Dias.
Empresto a noção de “forma objetiva” da crítica literária de Roberto Schwarz, para quem a forma objetiva compreende uma “substância prático-histórica” e nessa condição condensa esteticamente o “ritmo geral da sociedade” (cf. SCHWARZ, 1999, pp. 30-31 e, de modo geral, pp. 28-41).[iv]
Penso que, de fato, estamos diante da descrição de um processo reflexivo contíguo ou paralelo ao que Dias referiu ao descrever, nas suas palavras acima citadas, a “totalidade” que, de fora da tela, “invade o quadro”. Ou seja, a descrição, segundo Schwarz, da tradução estética de um “ritmo geral da sociedade” em “substância prático-histórica” de uma forma artística, então designada como “forma objetiva”, refere-se a um processo similar de comunicação ou passagem de materiais ou conteúdos sócio-históricos para formas estéticas correlatas, o que, nos termos postos, veio renovar o debate do realismo.[v]
A proceder a hipótese do paralelismo das formulações, ambas atinentes à passagem de materiais extra-estéticos para formas estéticas, as formas objetivas cunhadas por Dias – na forma de operações negativas –, no caso em questão, estampam antes de tudo os traços próprios do combate entre as forças que invadem o quadro, como dizia Dias, e a resposta artística a elas, gerando formas novas – tal como as de dois corpos misturados numa luta corporal.
Aplicada nesses termos, a noção de forma objetiva ajuda a esclarecer as mudanças que apareceram quando Dias voltou a se estabelecer em Milão, em 1980. Assim, após a “superação dialética” – ou seja, mediante a incorporação do objeto negado – do ciclo da produção artesanal de papéis (ligado à estadia nas comunidades artesãs no Nepal, que foi desdobrada com a inclusão de novos materiais no momento de retorno ao Brasil), desta feita no retorno a Milão delineia-se um novo conjunto de formas objetivas, à base de papelão de embalagem, jornais etc. A guinada rumo a materiais baratos, processados com maior rapidez e de origem industrial aparece combinada a um punhado de elementos à primeira vista inerentes ao léxico expressionista. Como explicar tal combinação? É o que interessa estabelecer. Vale dizer, para ficar nos termos de Dias, quais seriam as forças que desta vez (em Milão, 1980) vinham lhe tomar espaços e ocupar os quadros?
De fato, no mundo externo ao das telas, o thatcherismo e o reaganomics constituíam as forças em ascensão. O monetarismo extremado achava-se à frente de dura ofensiva contra as estruturas sindicais e os direitos sociais. Além disso, em todo o Ocidente anglo-americanizado, subjetividade e sociabilidade encontravam-se sob uma espécie de processo de colonização pela forma-dinheiro.
Em suma, a nova situação veio dispor lado a lado a ascensão do capital fictício e um revival da pintura (transvanguarda, bad painting, particularmente neoexpressionismo e assim por diante), sempre flutuando em rios de dinheiro. Logo, que tipo de antítese se punha, naquela altura, entre os termos do capitalismo tardio em curso de mutação, e o novo discurso pictórico de Dias também em acelerado processo de mutação? Como se articulavam um e outro?
Clichês neoexpressionistas surgiam assim combinados a materiais heterogêneos: elementos da pintura bizantina, resíduos de materiais variados – pigmentos industriais, solventes, óxidos e também alguns signos emblemáticos: ossos, armas, ferramentas, bandeiras, cifrões, circuitos desenhados a ouro etc. Ao invés de tintas/cores, resíduos de materiais vinham utilizados para realçar a opacidade dos suportes. Mais que isso, as telas eram preparadas mediante operações negativas, tais como a lavagem de superfícies entintadas ou a subtração (por raspagem ou outro processo) de elementos antes adicionados. Apresentava-se assim um expressionismo de laboratório, muito controlado e meticuloso.
Grandes superfícies – nas quais acidentes e irregularidades de textura se configuravam como partículas de um sistema – surgiam recorrentemente impregnadas do pó cinzento-prateado do grafite, uma das “cores” recorrentes dos trabalhos de Dias nesse período. Como essa era, e ainda é, a cor em geral das armas (punhais, fuzis e aviões) e também a cor dominante dos carros feitos no período, via-se bem de onde vinham tais formas objetivas e para onde ia a reforma geral da sensibilidade aí aludida. Como se pode ver facilmente nas ruas ainda hoje, o uso ostensivo de signos de griffes – como novos uniformes – gera incessantemente “exércitos de consumidores”.
As operações negativas tinham na mira também a pintura anterior de Dias. Assim no ciclo da Nova Figuração, grosso modo 1964-67, os trabalhos de Dias, quando negavam a pop art e respondiam ao golpe militar, apareciam coalhados de corpos espedaçados e de sinais de dor.[vii] Já agora, com Dias operando na contramão da hegemonia do neoexpressionismo, os signos e emblemas de antes foram também negados e substituídos por ferramentas, ossos e cifrões. Enfim, cederam lugar a símbolos descarnados do trabalho – vivo ou morto – e da acumulação primitiva, a recordar o pouco que restou da vida sob a hegemonia neoliberal.
A inclusão recorrente de jornais nas telas de Dias elaboradas após o retorno a Milão veio se por nessa altura como um signo distintivo, marcante e emblemático, a evocar sem dúvida o episódio inicial da colagem na história da arte moderna, dentro do capítulo do cubismo. Mas não apenas isso, pois as operações negativas também comparecem aqui. Assim enquanto a colagem cubista era constituída de operações basicamente aditivas, já nos trabalhos de Dias após o retorno a Milão as operações correspondentes eram claramente de subtração. Analogamente, em lugar da reconstrução cubista das antigas naturezas-mortas e da parafernália agradável e característica da vida boêmia, feita de copos, garrafas, instrumentos musicais, páginas de partituras e assim por diante, destacavam-se nas cenas de Dias ossuários e signos de ausência ou morte – para resumir, vestígios de remoções e extinções planejadas.
Em termos de formas objetivas, as pinturas de Dias traziam também outros elementos para funcionar como chamarizes. Eram os constructos em ouro, cobre ou metais brilhantes apresentados em formas ovais, circulares ou de circuitos dourados. Além de tais ícones ou duplos da auréola e da forma-moeda, havia uma outra família: a dos contêineres e frascos de perfume (que vinham referidos nos títulos das obras). A menção a essências aromáticas, que era certamente irônica – em vista da famigerada planaridade ou bidimensionalidade da pintura, celebrada pelo “linguistic turn” –, também evocava no caso a aura ou o fetiche da mercadoria. Alusões a frascos de veneno e à morte completavam tal panóplia de época. Todos esses itens, assim como os receptáculos ou formas da subjetividade e as superfícies douradas, operavam como clichês da mitologia da supremacia global das forças de mercado. Assim, tais vultos apareciam isolados em áreas amplas ou campos pigmentados, monopolizando todas as atenções – feito os logotipos e emblemas de marcas nos céus e horizontes urbanos e viários atuais.
Além disso, várias “moedas pictóricas”, tais como pinceladas, empastes ou coisas símiles, entravam na cena evocando o modo de ser das subjetividades. Tudo isso aludia ironicamente à subjetividade contemporânea. Que tipo de subjetividade aparecia assim implicada? O eu que se expressa em tal pauta de símbolos era decerto o eu que calcula. O neoexpressionismo nessa chave consistia no expressionismo do investidor. Assim, seu discurso se assemelhava ao dos novos gerentes e gestores, ao dos especialistas em “capital humano” e outras questões corporativas, ao dos jornalistas especializados em investimentos e finanças.
As formas objetivas do neoexpressionismo dissecado por Dias apareciam despidas então de todo sentido subjetivo aparente, para aparecerem como mera fantasmagoria pertinente a um regime de subjetividade perdido e esvaziado. Sinais glaciais de subjetividades vazias, voltavam a circular, mas só como trabalho morto e maquinal. Figuravam a expressão da subjetividade automática do capital – uma subjetividade narcísica que calculava os lances e simulava riscos segundo o império exclusivo do próprio interesse.
Desse modo, os elementos do neoexpressionismo capturados pela ironia de Dias como reflexos da irreflexão surgiam exibindo o seu próprio vazio. Assim, o neoexpressionismo segundo Dias desvelava, malgrado si, sinais de histeria. Como um gozo deslocado e representado, tal estilo constituía a reencenação de uma manifestação da subjetividade que não se dera porque, em seu lugar, a substância existente era apenas a do trabalho morto.
Para resumir e fixar antes de concluir, a consciência do circuito da arte, ou seja, da economia própria de tal modo de circulação constituiu constantemente o objetivo estratégico imediato das ações de Dias. Desse modo os conflitos endógenos das práticas artísticas fetichizadas precedem no seu trabalho – como uma via ou encruzilhada incontornável – todos os demais conflitos neles encontrados. Consoante a isso nenhum dos seus trabalhos apresenta superfície ou técnica homogêneas. Logo, incessantemente confrontada e golpeada por fatores heterogêneos, a recepção é instada a se dar aos saltos e a se empenhar para conquistar dialeticamente diferentes pontos de vista e graus de reflexão.
Assim postos, os trabalhos de Dias, radicados na dimensão histórica – distinguida seja como história geral seja como história da arte –, combinam domínios que na tradição formalista dominante da historiografia moderna foram considerados como intrinsecamente distintos ou postos como continentes incomunicáveis.
Na combinação da experiência imanente do olhar com a da reflexão histórica, impulsionada por títulos ou legendas, o observador é levado a reconstruir as partes de um processo histórico muito mais amplo do que os trabalhos visuais que depara. Vale dizer, de tal posição, o observador depara “a totalidade, que existe fora do quadro, e que de lá o invade”. E invasão – quero acrescentar – que ocorre de modo desigual e combinado conforme afirmava a tese de Trotski, e também segundo ressaltavam os trabalhos de Dias (no mínimo desde a mostra da Nova Figuração), ao combinarem elementos de temporalidades históricas visivelmente heterogêneas.
Por último, sugiro que considerem e observem, para concluir este trajeto em torno de operações negativas e formas objetivas, algumas montagens da última fase da obra de Dias:
Figura 7: Antonio DIAS, HISTÓRIA RESUMIDA PARA CRIANÇAS, 2006, acrílica, pigmento, malaquita, folha de ouro e cobre sobre tela, 120 × 420 cm.
Figura 11: Antonio DIAS, MANIVELAS, 2011, acrílica, óxido de ferro, folhas de ouro e de cobre sobre tela, 90 × 120 cm.
Nesses trabalhos, a pintura abandona todo resquício da superfície quadrangular tradicional (forma que por si comportava forte poder de evocação da totalidade, segundo hábitos arraigados na tradição visual ocidental), para, em lugar disso, adotar construções e esquemas.[viii] O que sugerem esses novos arranjos espaciais? Em resumo e para adiantar, apenas enumero, pois estamos diante de coisas que hoje saltam à vista de todos: operações especiais e complôs – campos operacionais, enfim, nos quais cada porção é constituída como um teatro de ações específicas. Algo vem à mente nesse sentido?
Emprego propositalmente termos utilizados na mídia em geral para referir atos correntes de terrorismo de Estado. Com efeito, é só revisitar os títulos acima e outros das últimas obras de Dias e se conclui que esse artista – que fez dos jornais material de trabalho corrente ao longo de boa parte de sua obra – estava de fato se referindo a uma modalidade de eventos globalmente correntes na era atual.
Posso assim esboçar e arriscar uma interpretação acerca das raízes do último ciclo das formas objetivas, da obra de Dias? Penso que o núcleo da temática essencial de seu ciclo derradeiro – inerente, em síntese, ao que Naomi Klein designou como a época do “capitalismo de choque” – consiste basicamente de: vistas aéreas de alvos para bombardeios; práticas genocidas e técnicas de destruição de massa, bombas corrosivas e soluções químicas detersivas; e práticas de interrogatório ao modo daquelas aplicadas em Abu-Ghraib. É o que posso dizer do último momento desse trabalho, cujo autor foi, de modo constante, aguda e vividamente ligado ao seu tempo – até ser ceifado pela doença letal que o levou para a nossa memória.
*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019).
Revisão e assistência de pesquisa por Gustavo Motta.
Publicado originalmente, sob o título “Arte Negativa e sequestros dialéticos na obra de Antonio Dias”, em Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.13, n. 38, p. 50-69.
Referências
Várias dezenas de trabalhos importantes de Antonio Dias podem ser vistos atualmente em duas mostras precursoras da 34a. Bienal de São Paulo. Das duas, a maior (Antonio Dias: Derrotas e Vitórias, curadoria Felipe Chaimovich) ocorre no MAM-SP e fica aberta até 21.03.2021. Ela apresenta obras da coleção do próprio artista, estrategicamente emblemáticas de seus distintos ciclos, do primeiro ao último. Sintética, abrangente e vigorosa, a mostra oferece a visão clara do todo da obra. Introduz os ainda não iniciados à potência crítica e plástica do trabalho de Dias. Mas serve também otimamente, ao observador já familiarizado, para distinguir e conjugar os momentos de inflexões estratégicas e achados críticos do duelo inteligente e irreverente, que Dias manteve sempre com as correntes internacionais dominantes, ao longo de sua carreira.
Paralelamente, no pavilhão principal da Bienal, a mostra Vento (preliminar da 34a. Bienal), com curadoria de Jacopo Visconti e Paulo Miyada, reúne trabalhos de 21 artistas que estarão em setembro na mostra principal da Bienal. Nela estão expostas outras obras de Dias: o conjunto de dez urnas cúbicas pretas, intitulado Cabeças(1968), e três telas pretas, todas realizadas no exílio em 1970-1. Essas peças, que antecipam o tom das duas dezenas de pinturas pretas de Dias a serem exibidas em setembro, são também ótimos exemplos das operações negativas com que o artista subvertia e corroía as correntes artísticas então dominantes. No caso dos trabalhos expostos no segundo andar do pavilhão da Bienal, as operações alvejam a arte minimalista, então na moda nos EUA. Em tempos de dependência entronizada e de resignação generalizada à situação de fragmento, cada um desses trabalhos é ácido e tônico, ao mesmo tempo (LRM).
Referências bibliográficas
BANDEIRA, João (curador). Entre Construção e Apropriação: Antonio Dias, Geraldo de Barros, Rubens Gerchman nos Anos 60. Catálogo da mostra no Sesc Pinheiros, São Paulo 05.04 – 03.06.2018. São Paulo, SESC, 2018.
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem [1970]. In: O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004a, pp. 17-46.
____. De cortiço a cortiço [1973/1991]. In: O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004b, pp. 105-129.
DAVIDSON, Neil. Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente. Trad. Pedro Rocha de Oliveira; org., rev. crítica e posfácio por Luiz Renato Martins; intro. por Steve Edwards; pref. por Ricardo Antunes. São Paulo, Ideias Baratas / Ed. UNIFESP, 2020 (no prelo).
DIAS, Antonio. Caderno [Notebook], 1967-69.
____. Em Conversação: Nadja von Tilinsky + Antonio Dias. In: Vv. Aa.. Antonio Dias: Trabalhos / Arbeiten / Works 1967-1994. Darmstadt/São Paulo, Cantz Verlag/Paço das Artes, 1994, pp. 50-64.
____. Antonio Dias: Anywhere Is My Land. Catálogo da mostra na Pinacoteca do Estado de São Paulo (S. Paulo, 11.09 – 07.11.2010), curador geral Hans-Michael Herzog, edição trilíngue: inglês, português e espanhol, textos por Sônia Saltzstein e Hans-Michael Herzog. Zurich / Ostfildern (Alemanha) / São Paulo, Daros Latinamerica / Hatje Cantz / Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
____. Antonio Dias. Textos por Achille Bonito Oliva e Paulo Sergio Duarte. São Paulo, Cosac & Naify/ APC, 2015.
____. Antonio Dias: Potência da Pintura. Catálogo de exposição (Porto Alegre, 14.03 – 18.05.2014, curador Paulo Sérgio Duarte). Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo.
MARTINS, Luiz Renato. Trees of Brazil. In: The Long Roots of Formalism in Brazil. Edited by Juan Grigera, translated by Renato Rezende, introduced by Alex Potts. Chicago, Haymarket, 2019, pp. 73-113.
____. Muito além da forma pura. In: DAVIDSON, Neil. Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente. Trad. Pedro Rocha de Oliveira; org., rev. crítica e posfácio por Luiz Renato Martins; intro. por Steve Edwards; pref. por Ricardo Antunes. São Paulo, Ideias Baratas / Ed. UNIFESP, 2020 (no prelo), pp. 283-348.
MIYADA, Paulo (org.). AI-5 50 Anos: Ainda Não Terminou de Acabar. Catálogo de mostra homônima. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2019.
SCHWARZ, Roberto. Adequação nacional e originalidade crítica [1991/1992]. In: Seqüências Brasileiras: Ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 24-45.
____. Duas Meninas. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
TROTSKY, Leon. Literatura y Revolución [1923/1924]. Nota preliminar, selección de textos, traducción y notas de Alejandro Ariel González; introducción de Rosana López Rodriguez y Eduardo Sartelli. Buenos Aires, ediciones Razón y Revolución, 2015.
Notas
[i] Trabalho apresentado, sob o título Negative Art and Dialectical Kidnappings in Antonio Dias’ Work, em 06.09.2019, dentro do painel “New Directions in Cultural Analysis”, na conf. Uneven and Combined Development for the 21th Century: A Conference (05-07.09.2019, University of Glasgow), coord. Neil Davidson, apoio Socialist Theory and Movements Research Network e Historical Materialism Journal.
[ii] A estrutura quadriculada, traçada com fita adesiva, foi montada pela primeira vez, em 1969, no Museu Nacional de Arte Moderna, de Tóquio, como parte da mostra Contemporary Art: Dialogue Between the East and the West. A instalação compreende, como montagem, um outro trabalho (adiante descrito): To the Police, denominado em separado, mas quase sempre montado articuladamente à instalação.
[iii] Sobre o movimento de construção de um novo realismo, em resposta ao golpe de 1964, ver MARTINS, 2019.
[iv] Para a origem da ideia de “forma objetiva” e do processo de tradução estética do “ritmo geral da sociedade” no romance brasileiro, ver CANDIDO, 2004a [1970], pp. 28 e 38; bem como CANDIDO 2004b [1973-1991], pp. 105-29. Para a formulação concretamente exemplificada e discutida da “forma objetiva” como “nervo social da forma artística”, ver SCHWARZ, 1997, p. 62.
[v] Para uma discussão mais alongada e detalhada da dialética cultural e artística entre países periféricos e hegemônicos na chave proposta por Trótski e a renovação do debate do realismo, no âmbito histórico do debate brasileiro sobre a “formação”, ver MARTINS, 2020.
[vii] Para imagens dos instigantes trabalhos do ciclo da Nova Figuração, principalmente daqueles em papel, que foram em geral muito menos expostos do que as já bem difundidas pinturas do período, ver exemplos ao longo do catálogo DIAS, 2010; ver também BANDEIRA 2018.
[viii] Para reproduções de outros trabalhos do período mais recente, ver DIAS, 2014; e DIAS, 2015.