Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre a antologia recém-lançada organizada por Camilla Cattarulla e Giorgio de Marchis
1.
A editora Bandeirola publicou uma interessante coletânea de contos fundadores da literatura fantástica latino-americana, tendo como tema comum o fim do mundo, o apocalipse.
Dois autores argentinos, dois brasileiros e um mexicano foram os escolhidos pela dupla de pesquisadores Camilla Cattarulla e Giorgio de Marchis. Ela é professora titular de língua e literatura hispano-americanas na Universidade de Roma, enquanto ele é titular de literatura portuguesa e brasileira, na mesma universidade.
Ambos assinam um substancioso ensaio sobre utopias, distopias e catástrofes na literatura do continente, completando o volume com informações preciosas. Analisam a conjuntura política e social da época em que os contos foram publicados, onde o avanço científico e tecnológico muitas vezes convivia – e ainda convive! – com modelos coloniais e escravistas de sociedade.
Joaquim Manuel de Macedo, o autor de A Moreninha, abre a coletânea com o conto O fim do mundo. Publicado no suplemento do Jornal do Commercio, em 1857, parte de um argumento explorado posteriormente à exaustão na ficção científica: o mundo vai acabar. Em tom satírico, Joaquim Manuel de Macedo evoca o cônego de Liège (famoso por profetizar o fim do mundo num 13 de junho de 1857, por causa de um cometa) e consegue fazer uma escada até a Lua construída com… juros bancários!
Na volta, encontra todos cozidos pela passagem do tal cometa. O protagonista passeia pelas ruas do Rio de Janeiro, entrando em teatros e até na Câmara Municipal, vendo afetos e desafetos imóveis como frangos assados.
Aluízio Azevedo, partindo da mesma ideia, cria uma ficção mais elaborada e sombria. Demônios, de 1891, mostra um Rio de Janeiro afundando-se em lodo e fungos gigantescos, onde o protagonista tenta encontrar a sua amada para que juntos refaçam uma nova humanidade. Num clima dantesco, eles vão pouco a pouco se metamorfoseando em… bom, vale a pena a leitura.
2.
Leopoldo Lugones, um dos mestres de Jorge Luiz Borges, escolhe como fim do mundo uma chuva de cobre incandescente. Um personagem recluso, dedicado apenas a curtir os prazeres da literatura, da mesa farta e de sua adega, descreve o cataclismo em A chuva de fogo, publicado em 1906. Abrindo com uma citação bíblica que remete a Gomorra, Leopoldo Lugones reelabora o mito primordial do apocalipse através de uma visão desencantada e um gesto final inesperado.
O mexicano Amado Nervo destoa do conjunto pela originalidade do enredo. Antecipando Orwell, publica em 1906 o conto A última guerra, onde animais se rebelam contra a humanidade opressora. Futurista, a ação se passa milênios depois da última Revolução social, ocorrida em 2030. Existem duas classes, a humana, dominante, e a dos animais, que são servos, embora já dominem uma linguagem própria e um discurso articulado.
O argentino Roberto Arlt encerra a coletânea com A lua vermelha, de 1933. Explora também o contraste entre classes sociais, numa distopia plena de imagens delirantes, onde os ricos vivem no alto de edifícios enormes, dançando e namorando, quando de repente garçons, músicos e cozinheiros largam seus afazeres e abandonam seus postos de trabalho. Como bem aponta a professora, o conto foi escrito sob o impacto da crise de 1929, que colocou em cheque políticas e convicções em todo o mundo. Todos caminham num cortejo fantasmagórico rumo ao previsível final.
Os organizadores da coletânea destacam outros autores e obras que ajudaram a construir um acervo ficcional distópico ou fantástico no continente. Do pioneiro Manuel Antonio de Rivas, frade mexicano que em 1773 descreveu uma viagem à Lua, passando pelo argentino Holmberg, que em 1875 criou uma história com extraterrestres. Nesse mesmo ano o português naturalizado brasileiro Augusto Emilio Zaluar publicou seu romance O Doutor Benignus, considera a primeira obra de ficção científica publicada no país.
3.
Como definir o fim do mundo, num continente onde nações e povos foram exterminados de forma apocalíptica? Um cronista inca ou maia descreveria o fim do mundo através de guerras, fogo e doenças. Terrível foi o fim do mundo para os habitantes de Hiroshima e Nagasaki, que viram o céu se transformar em fogo e as pessoas derreterem à sua volta.
O fim do mundo teve como um de seus sinônimos o Holocausto, revivido sadicamente por Israel na Palestina do nosso século. O mundo acaba todos os dias, desde os tempos imemoriais, para povos, animais e biomas. Depois de exterminada a última nação indígena, quem virá?
Vale observar que todos os escritores dessa coletânea são brancos, viveram em cidades “modernas”, e ali desenvolveram sua ficção. Não há povos nativos, incas, maias, astecas, tupis ou guaranis nos enredos. Não há floresta, caatinga, pampa ou cerrado. Animais, só os do quinto milênio, do mexicano Nervo, ou os do zoológico (tigres, elefantes) no conto de Roberto Arlt. É um curioso recorte, que talvez seja mais explicado pela psicologia que pela história.
Há de se considerar, por óbvio, que publicar livros até meados do século XX só era possível nas capitais federais (Rio de Janeiro, Buenos Aires, Cidade do México), com raras exceções. E os autores escolhidos, filhos da classe média, dedicaram-se a analisar, e muitas vezes criticar, a classe dominante.
Aluízio Azevedo é o único que se debruçou sobre o proletariado e o lumpesinato, em obras como Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). Mas todos os cinco militaram no jornalismo, muitas vezes mantendo colunas periódicas, ora como cronistas, ou comentaristas de costumes, ora em suplementos literários.
Viver da escrita, desde aqueles tempos, nunca foi ficar escrevendo poemas ou prosa na tranquilidade do lar. A militância política, num cenário urbano em transformação física e social, acabou inspirando as visões apocalípticas e distópicas representadas nesta curiosa antologia.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência

Camilla Cattarulla e Giorgio de Marchis. Apocalipse: Ficção científica latino-americana, a origem. São Paulo, Ed. Bandeirola, 2025, 160 págs. [https://amzn.to/4azGjKu]






















