Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
A razão moderna desaba sob o peso de sua própria farsa, e o espelho quebrado reflete uma sociedade em ruínas
“A direita aprendeu a vestir a máscara da revolta” (Pedro Fiori Arantes; Fernando Frias; Maria Luiza Meneses. A Rebelião dos Manés).
O tempo bloqueado e a emergência do ressentimento
Em a arquitetura da dependência, o tempo é categoria central: a modernidade periférica vive aprisionada em um tempo histórico bloqueado, administrado pelo Estado e colonizado pela racionalidade do capital. Paulo Arantes (2014) descreve esse colapso como o “novo tempo do mundo” – um presente perpétuo, sem horizonte de emancipação. Francisco de Oliveira (2003), por sua vez, já havia intuído que a razão dualista do Estado brasileiro transforma a coexistência entre arcaico e moderno em fundamento de dominação.
Pedro Arantes e seus coautores, em A Rebelião dos Manés, mostram o resultado subjetivo dessa temporalidade congelada: a rebelião do ressentimento. O povo que espera – e nunca vê o prometido futuro chegar – transforma a frustração em crença, e a impotência em catarse destrutiva. O “mané” é o habitante da espera histórica: filho do Estado gestor da postergação, produto do tempo colonizado que identifico como a arquitetura da dependência.
Enquanto a arquitetura da dependência descreve o estado como mediador da espera coletiva, A Rebelião dos Manés mostra o instante em que essa espera explode. O tempo morto se converte em movimento caótico. O que antes era paciência institucional torna-se fúria simbólica. A dependência, que parecia pacificada, revela sua dimensão explosiva e trágica.
Ruy Mauro Marini (1973) e Theotônio dos Santos (1978) compreenderam que a dependência é forma necessária do capitalismo global. Mas no século XXI, a superexploração deixa de ser apenas econômica: ela é ontológica. O trabalho e o tempo de vida são capturados pela lógica financeira e digital – aquilo que chamo de “colonização do tempo social”. O futuro é antecipado como dívida, o presente administrado como gestão.
É nesse vácuo temporal que germina o sujeito da rebelião descrito por Pedro Arantes: o cidadão precarizado, despossuído de narrativa e sentido, que reencontra no delírio coletivo um simulacro de pertencimento. O “mané” é o trabalhador superexplorado convertido em militante da própria servidão. Ele carrega, em sua crença destrutiva, a ontologia do colapso.
Marini identificou a dependência como estrutura do capital; eu revelo sua forma temporal; Pedro Arantes mostra sua expressão estética. A barbárie política do presente é a forma sensível da dependência: uma racionalidade esgotada que já não convence, mas ainda governa — e que, ao perder o poder de prometer, precisa produzir fé, medo e espetáculo.
O Estado como gestor da espera e da catástrofe
Na arquitetura da dependência, o Estado brasileiro é descrito como gestor da espera — aquele que transforma a postergação em método de governo. Paulo Arantes (2014) vê nele o “operador do adiamento”, o poder que administra o presente para impedir o futuro.
A Rebelião dos Manés revela o que acontece quando esse Estado perde o controle da espera: o adiamento se converte em revolta, e o ressentimento em forma de fé. O “mané” destrói os palácios do poder não para abolir o Estado, mas para restituir-lhe a função perdida: a de pai e guardião. Sua insurreição é filial – deseja o castigo e a autoridade. O Estado dependente, incapaz de oferecer emancipação, produz súditos que exigem submissão.
O bolsonarismo é, nesse sentido, a expressão invertida da dependência: promete libertação enquanto reinstaura o autoritarismo; mobiliza o povo em nome da pátria, mas apenas para reafirmar o poder oligárquico. O Estado neoliberal e o Estado messiânico são, ambos, momentos da mesma arquitetura – dois rostos da mesma racionalidade dependente.
Aníbal Quijano (2000) demonstrou que a dependência é também epistêmica. O saber do centro governa o pensar da periferia. A arquitetura da dependência amplia essa tese ao mostrar como a universidade, o fundo público e a ciência reproduzem a colonização cognitiva: o conhecimento administrado como capital simbólico.
A Rebelião dos Manés expõe o resultado dessa colonização cultural em outro nível: a captura do imaginário popular pela estética do ressentimento. As redes sociais – templos da pós-verdade – convertem o ódio em método de pertencimento. O “mané” não é ignorante; é educado pela pedagogia da catástrofe.
A “colonização do saber” e a “colonização da fé” são partes da mesma forma social. A dependência epistêmica produz o mesmo efeito que a dependência econômica: substitui a reflexão pela crença. Assim, o sujeito periférico, esvaziado de historicidade, reencontra na figura messiânica um substituto para o sentido perdido.
A estética da destruição e a razão esgotada
Pedro Arantes, arquiteto e pensador da forma, interpreta Brasília como metáfora da crise da razão moderna. A cidade, criada como utopia racionalista, é tomada pelo irracional coletivo. O mármore de Niemeyer e o delírio digital do bolsonarismo colidem num mesmo espaço-tempo.
Essa leitura ecoa diretamente o meu diagnóstico: o moderno brasileiro sempre foi um moderno sem emancipação. A racionalidade do Estado é estética do atraso – uma beleza que encobre a violência fundadora. Em ambos os livros, a arquitetura é símbolo e sintoma: o edifício racional desaba sob o peso da irracionalidade que o sustentava.
A rebelião destrói o que a razão dependente havia construído. Mas essa destruição não é o oposto da razão – é seu produto. O vidro quebrado do Congresso é o espelho em que se reflete a crise da modernidade periférica. O gesto do “mané” repete, em ato performático, a ruína teórica da razão dualista. A estética do ressentimento é, no fundo, a coreografia da dependência.
Em a arquitetura da dependência, o estado aparece como espelho da sociedade dependente – forma política que reflete e reproduz a subordinação estrutural. Em A Rebelião dos Manés, o espelho se quebra. O povo não se reconhece mais no reflexo do Estado; vê no espelho apenas a própria deformação.
Essa cisão simbólica entre representação e pertencimento é a crise da dialética política brasileira. A direita ocupa o lugar da insurgência, enquanto a esquerda assume o papel da ordem. O espelho rachado de Brasília é a imagem concreta da razão dualista em colapso. O país, que vivia da convivência entre moderno e arcaico, agora vive a confusão entre eles: o moderno se torna arcaico, e o arcaico se veste de modernidade.
Pedro Arantes chama esse fenômeno de “inversão estética dos papéis históricos”. Eu nomeio-o “racionalidade colonizada”. Ambos descrevem o mesmo impasse: uma sociedade em que o pensamento crítico perdeu a capacidade de mediar o real. A dependência deixou de ser apenas estrutura – tornou-se psicologia coletiva.
A rebelião dos manés pode ser lida como o momento em que a Arquitetura da Dependência se manifesta em sua totalidade sensível. No ato de destruição, concentram-se todas as dimensões analisadas por João dos Reis: o tempo bloqueado, a razão esgotada, o Estado gestor da espera, o fundo público capturado e a consciência precarizada.
O “mané” não destrói apenas edifícios; destrói a ilusão da modernidade. Ele revela, na cena da barbárie, o núcleo racional da dominação: um povo educado a esperar e, quando cansa de esperar, a obedecer. O 8 de janeiro é o ápice da pedagogia da dependência – a forma política da espera transformada em gesto de fé.
Como ensinou Walter Benjamin (1940), “cada documento de cultura é também documento de barbárie”. A rebelião dos manés é esse documento: o testemunho de um país que confundiu a emancipação com a destruição. A arquitetura racional de Brasília e a arquitetura simbólica da dependência desabam juntas – espelhos quebrados de uma mesma razão.
A pedagogia da catástrofe e a lucidez crítica
Ambos os livros convergem na necessidade de uma ética da lucidez. Se a dependência é a forma da dominação, e o ressentimento sua consequência estética, resta à crítica recuperar o poder da consciência.
Pedro Arantes fala em “pedagogia da catástrofe”; eu, em “ética da lucidez”. Em ambos, o pensamento é convocado a resistir dentro da forma – a transformar o desespero em método. Paulo Arantes (2014) já advertia: “pensar é sustentar o olhar sobre o que já não tem remédio”.
A lucidez é o oposto do cinismo. Ela reconhece o colapso, mas não renuncia à razão. O intelectual do Sul, como diria Dussel (1998), não pode fugir do mundo; precisa habitá-lo criticamente. A arquitetura da dependência oferece o mapa teórico dessa tarefa; A Rebelião dos Manés, sua urgência histórica.
O México foi o laboratório da Teoria Marxista da Dependência. Pedro Arantes mostra que Brasília se tornou o “laboratório do ressentimento”. Entre o México dos anos 1970 e o Brasil de 2023, há continuidade histórica: ambos são cenários experimentais do capitalismo dependente, em que o povo é objeto de políticas e sujeito de frustrações.
Se o México foi o campo de teste da teoria, Brasília é o campo de teste da catástrofe. A rebelião dos manés é o resultado empírico do processo que a TMD já havia previsto: a superexploração do trabalho e a alienação política produzem sujeitos despossuídos de tempo e de sentido. A barbárie é, portanto, a forma contemporânea da dependência.
O encontro entre a arquitetura da dependência e A Rebelião dos Manés revela uma tarefa comum: reconstruir o pensamento crítico latino-americano diante do esgotamento da modernidade e da captura do imaginário.
Eu ofereço a teoria – o edifício conceitual da dependência enquanto totalidade; Pedro Arantes traz o retrato – a ruína simbólica dessa mesma totalidade. Um pensa o fundamento; o outro, a forma visível do colapso. Ambos convergem na necessidade de refundar a razão pública, de restituir à política sua dimensão ética e histórica.
A dependência não termina no diagnóstico; é convite à reconstrução. Se o Estado é o gestor da espera, e o ressentimento, sua herança, o pensamento crítico deve tornar-se o artífice da urgência – aquele que devolve movimento ao tempo e sentido à história.
O Brasil que surge dessas duas obras é um país suspenso entre a lucidez e o delírio, entre a espera e a rebelião. A arquitetura da dependência mostra o edifício invisível da dominação; A Rebelião dos Manés, o instante em que esse edifício desaba sobre si mesmo.
No espelho rachado de Brasília reflete-se a mesma estrutura que, nas páginas de João dos Reis, se ergue como categoria teórica: a dependência como forma total da vida social. A rebelião é o eco dessa estrutura – sua caricatura trágica, sua consequência estética, sua denúncia inconsciente.
A lucidez, nesse cenário, não é consolo, mas tarefa. É o dever de compreender o que se tornou o país quando o moderno envelheceu antes de nascer. É o compromisso de reconstruir a razão a partir das ruínas.
Talvez aí se encontre a última esperança da América Latina: pensar o colapso como método, a barbárie como advertência e a lucidez como forma de resistência.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP].
Referência

Pedro Fiori Arantes; Fernando Frias; Maria Luiza Meneses. 8/1: A Rebelião dos Manés: ou esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo, Editora Hedra, 2024, 184 págs. [https://amzn.to/4iJEbSq]
Bibliografia
ARANTES, Paulo Eduardo. O Novo Tempo do Mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-Americano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da Razão Dualista. São Paulo: Boitempo, 2003.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2000.
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